Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo. Democracia e dignidade humana: aporofobia na perspectiva jurídico-constitucional brasileira. Tese apresentada no curso de Pós-graduação em Direito, setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direitos Humanos e Democracia. Curitiba, 2023, 132 folhas.
Filipe Luna Jucá de Castro. Casas de papelão: o que é a rua para quem vive nela? Dissertação apresentada no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília, como requisito obrigatório para obtenção do grau de Mestre em Direitos Humanos e Cidadania. Brasília, 2023, 246 folhas.
O artigo é de José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012. É membro da Ordem dos Advogados do Brasil, professor titular da Universidade de Brasília, coordenador do projeto O Direito Achado na Rua, publicado por Jornal Estado de Direito, 15-11-2023.
Comecei a elaboração deste texto como arguição a Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo, na defesa de sua tese Democracia e dignidade humana: aporofobia na perspectiva jurídico-constitucional brasileira, na qualidade de membro da Banca Examinadora que a avaliou.
Coincidentemente, no dia anterior à defesa, numa articulação da qual faço parte, se instalava mais uma sessão dos Diálogos sobre a Justiça e Paz, que nesta ocasião (dia 06/11), pautará o tema – “Os pobres e o futuro da humanidade: o pedido de reconexão do Papa Francisco”. E para fomentar essa conversa, o DJP recebeu o Padre Júlio Lancellotti, pároco da Paróquia de São Miguel na Mooca (SP), Gilberto Carvalho, Secretário Nacional de Economia Popular e Solidária e o Padre Miguel Martins, responsável pelo Centro Cultural Brasília. Ana Paula Inglez Barbalho, membra da Comissão de Justiça e Paz de Brasília, é a responsável por mediar esse diálogo. Padre Júlio sempre com foco no seu serviço pastoral recuperou o fundamento da aporofobia nos termos propostos por Adela Cortina, recuperados pelo autor da tese (cf. as apresentações aqui)
Participante do debate, o atual secretário nacional de Economia Popular e Solidária, Gilberto Carvalho, se mostrou preocupado com os rumos do governo, da esquerda e da Igreja Católica, da qual é membro. No seu entender, tanto a igreja a que pertence quanto as forças de esquerda se distanciaram da população mais carente, deixando o caminho aberto para uma direita, inclusive religiosa, com “uma militância ferrenha que se expressa de maneira absurda nas redes sociais e que faz a cabeça dos pobres”. Para ele “Só tem um jeito de dar governabilidade — investir na conscientização e na participação popular”.
Compartilhei com meus colegas de Comissão Justiça e Paz o momento comovente, depoimento emocionado do padre Júlio, dizendo de sua teologia da derrota, quase epifania, em face da objeção até de paroquianos sobre como ser fraterno, lembrou ao ajoelhar-se, cabeça sobre o altar, quase como um Paulo, se deixando esvaziar de sua individualidade para se realizar cristicamente, pela fé. Aproveitei para mencionar que o Henrique estaria no dia seguinte defendendo a tese de doutorado cujo empírico colhera na vivência pastoral com o povo de rua.
Ao preparar a arguição também tive em mente as inferências retidas do debate que se estabelecera, semanas antes, na apresentação e defesa na UnB, da Dissertação de Mestrado de Filipe Luna Jucá de Castro. Casas de papelão: o que é a rua para quem vive nela?
Integrei ambas as Bancas Examinadoras. Da tese, juntamente com as professoras e professores Larissa Liz Odreski Ramina, Orientadora – Departamento de Direito Público, Universidade Federal do Paraná; Paulo Ricardo Opuszka, Coorientador – Departamento de Direito Privado, Universidade Federal do Paraná; Vera Karam de Chueiri, Departamento de Direito Público, Universidade Federal do Paraná; Priscila Caneparo dos Anjos, Departamento de Direito Público, Universidade Católica de Brasília. Da dissertação juntamente com a professora e professores Vanessa Maria de Castro (orientadora), David Sanchez Rubio, Universidade de Sevilha e Wellington Lourenço de Almeida, Universidade de Brasília.
Chamo a atenção para a proximidade temática entre os dois trabalhos, com a singularidade de tangenciamento que os autores estabelecem em suas abordagens, por seu enlace com os direitos e a dignidade humanas.
Os resumos dos respectivos trabalhos expõem esses tangenciamentos:
A democracia e a dignidade humana são fundamentos da ordem constitucional do Brasil e funcionam como elementos sensíveis na legitimação do ordenamento jurídico nacional. O objetivo da tese é examinar o sistema constitucional brasileiro, a partir do fenômeno da aporofobia. Visa, assim, identificar os instrumentos hábeis à concretização da dignidade humana e ao enfrentamento da violência aporofóbica. A aporofobia se caracteriza por ser um processo de violência discriminatória que exclui o pobre do debate público democrático. O ódio ao pobre é uma realidade histórica da sociedade brasileira e um desafio a ser superado pela democracia constitucional inaugurada com a Carta Magna de 1988.
Os códigos segregatícios investigados neste trabalho – aporofobia, racismo, sexismo e xenofobia – se interseccionam, produzindo múltiplos processos de violência segregatícia, o que impacta, disruptivamente, na legitimidade de todo o sistema. Os objetivos fundamentais da República instituíram um planejamento estratégico e impositivo a ser concretizado pelo Estado, com vistas a implementar um modelo de sociedade baseado na inclusão e parametrizada na justiça social. A qualidade da democracia e a legitimidade do sistema dependem da materialização desses objetivos princípios.
Por ocasião da pesquisa empírica, foi possível demonstrar que a aporofobia e as demais categorias discriminatórias atuam na psiquê dos coletivos subalternizados, provocando privação de autoestima, perda de sentimento de pertencimento social, descrença no Estado e baixo interesse pelo debate público democrático. Os dados coletados também demonstram que os entrevistados mantêm sonhos de vida e perspectivas de reconhecimento social. A experiência de campo comprovou que a discriminação social é uma grave transgressora do princípio da dignidade humana, com consequência direta na qualidade da democracia e na legitimidade do ordenamento jurídico do país.
Este estudo de mestrado em Direitos Humanos busca compreender o fenômeno da população em situação de rua, focando na vida de pessoas que têm apenas a rua como espaço de moradia. O objetivo é analisar o significado da rua para esses indivíduos, suas estratégias de sobrevivência e como eles se percebem nesse contexto.
A pesquisa destaca a necessidade de não universalizar as diversas situações que levam alguém a viver nas ruas, indo além das questões socioeconômicas, culturais ou de saúde mental. Com base em dados limitados sobre a população de rua no Brasil, o estudo argumenta que a ausência de estatísticas adequadas contribui para as múltiplas violências enfrentadas por essa população e para a negação de seus direitos humanos.
A pesquisa enfatiza a importância de ouvir as histórias de vida das pessoas em situação de rua, permitindo que elas expressem não apenas suas dores, mas também suas vidas e potencialidades. O trabalho se baseia em experiências de campo, incluindo entrevistas com quatro pessoas em situação de rua no Bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
Essas experiências pessoais do autor, suas interações e relacionamentos com pessoas em situação de rua, bem como seu envolvimento em projetos sociais relacionados ao tema, moldaram sua abordagem de pesquisa. A dissertação segue uma abordagem interdisciplinar, indo além das perspectivas jurídicas e legais para compreender a complexidade do fenômeno da população de rua.
O autor destaca a importância de uma escuta atenta e ativa para compreender as histórias e experiências dessas pessoas, contribuindo para uma visão mais abrangente dessa realidade. O trabalho é dividido em seis partes, que abordam dados, marco teórico, metodologia, resultados, análise e discussões sobre o tema.
Ambos os autores querem compreender o significado da rua como espacialidade para as interações sociais e como se constituem as subjetividades que se manifestam nesses espaços.
Ambos querem interpretar o fenômeno sócio-histórico da situação de rua e apreender o imaginário social acerca dessa realidade. Enquanto Filipe, na Dissertação, em sua motivação sensível, busca se colocar em contato com os fóruns de rua, participar de reuniões do Movimento Nacional de População de Rua, no âmbito dos espaços que estuda e se aproximar dos sujeitos para a escuta de suas percepções;
Henrique, também sensível, parte da inferência teórica para esquadrinhar o que denomina códigos segregatícios, decalcá-los na completude de um enquadramento interseccional apreensível na moldura teórica da aporofobia conforme a desenhou Adela Cortina e definir sua condição subjetiva traduzida de suas próprias vozes (entrevistas) e vivências interpretadas no serviço pastoral promovido pelo padre Julio Lancelotti e voluntários, em condições de interpelar o sistema constitucional brasileiro.
Os roteiros descritivo-analíticos dos dois trabalhos demarcam o roteiro de suas proximidades-singularidades.
Parte I – A questão estética
I.I A Escassez de Dados – O Invisível Quantificado
I.II – A Situação de Rua Para Além dos Números
Parte II – O fenômeno: pessoas vivendo nas ruas da história
II.I. A Construção Histórica da Situação de Rua
II.II. – A Situação de Rua no Brasil:
III. O Imaginário Social e a Violência Histórica
Parte II.
Entre a Rua e a Lei:
V. Direitos Humanos em Situação De Rua:
Parte III – Espaços e vidas: o que é a rua?
III.I. A Cidade Pulsante:
III.II. Direito à Cidade: Direito de quem e para qual cidade?
III.III. Entre O Público e o Privado
III.IV. O Passado Visível no Presente – A vida privada de sentidos:
III.V. Casa e Rua/Rua e Casa:
Parte IV. Pesquisa de campo e o caminho metodológico:
IV.I. Botafogo: Um bairro, um clube, uma vida.
IV.I.I. Um capítulo à parte: Um instante de felicidade chamado Dingo.
IV.I.II. Um dia após o outro: a Vida e o luto que na rua é verbo.
IV.II. Mineiro – “Eu tenho que sorrir mesmo sem o dente, porque o sorriso vem de dentro pra fora.”
IV.III. Barba: “O falar são como janelas que se abrem e formam frases no entender daqueles que ouvem” IV.IV. Sr. L. – “Porque ficção eu já tô cheio de ficção, eu sou uma ficção, né?”
Parte V – Os resultados da pesquisa de campo:
V.I. O Perfil dos Entrevistados
V.II. Temas Emergentes nas Entrevistas
V.II.I. A questão da Violência: Ruas perigosas
V.II.II. Cansaços e Descansos:
V.II.III. Perdas, ausências e rupturas: os laços
V.II.IV. Companhias, amizades e conversas: Os novos laços na rua
V.II.V. O olhar “de fora”: As quatro paredes do preconceito .
V.II.VI. O álcool, as drogas e a rua: o que vem antes?
V.II.VII. O acolhimento público: A ordem sem progresso
V.II. VIII. A distância entre os direitos e os humanos na rua:
V.II.IX. A comida que nem sempre vem
V.II.X. Higiene x Limpeza: Por que não existem banheiros públicos?
V.II.XI. Alegrias e Felicidades, Palavras e Sorrisos: Nem tudo são lágrimas
V.II.XII. Os desafios da rua:
V.II.XIII. Rua: Os significados
Parte VI – Discussões e considerações finais
VI.I. Entre O Sujo E O Limpo: Uma População Sem Acesso A Banheiros
VI.II. Pessoas Em Situação De Fome No Rio De Janeiro
VI.III. Afinal, O Que É A Rua Pra Quem Mora Nela?
VI.IV. Considerações Finais
Introdução
2 Aporofobia: um desafio a ser vencido
2.1 Como entender a Aporofobia: o ódio ao pobre numa perspectiva multidimensional
2.2 Interseccionalidade em códigos: aporofobia, racismo, sexismo, xenofobia
3 Inclusão social – A chave do problema: uma análise jurídica
3.1 Objetivos da república como planejamento estratégico e impositivo da Constituição Federal
3.2 Dignidade Humana e Justiça Social
3.3 Qualidade da Democracia e legitimidade constitucional
4 Ilustração do impasse: elementes de comprovação da aporofobia na experiência com a pastoral do povo da rua
4.1 Pressupostos metodológicos
4.2 Entrevistas propriamente ditas
4.3 Análise de dados: o que dizem
Conclusão
Guardo profunda conexão motivacional e temática com os dois trabalhos acadêmicos objeto deste Lido para Você. Aliás, com alguma incidência, tenho oferecido opinião sobre a matéria que estudam.
Em artigo numa coluna de opinião que subscrevo, procurei corroborar que a realidade da população de rua Brasil, confirma a constatação de que há um estado de coisas inconstitucional, nos termos inferidos pela tese de Henrique.
Recupero, nessa constatação, matéria do Diário do Centro do Mundo (acesso em 11/12/2022), dando conta de um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, revelando que a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% desde 2019, chegando a 281,4 mil pessoas sem-teto, que foram afetadas diretamente pela pandemia de Covid-19. A pesquisa divulgada na última quinta-feira (8), ainda aponta que em uma década, o aumento foi de 211%, superior ao crescimento da população geral no Brasil, de 11%.
Esse é um aspecto de uma realidade que dá a medida das ações que o novo governo, de corte democrático-popular, precisará implementar para atribuir função social ao seu programa. A mobilização para aprovar a chamada PEC da “transição” dá a medida da responsabilidade social que o novo governo assume, depois do caos produzido pela necropolítica da gestão que melancolicamente se encerra.
Foi preciso, nesse descalabro, convocar a institucionalidade instalada noutros âmbitos do Estado, no Legislativo para encaminhar medidas que preservassem a população carente, sobretudo na fase aguda da pandemia, que ainda traz ameaças, sobretudo em defesa da moradia (cf. o artigo da Deputada Natália Bonavides em coautoria com Lorena Cordeiro: A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (Org.) Direitos Humanos e Covid-19 vol. 2 Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022), para aprovar a lei e para derrubar o veto imposto pelo Presidente da República. Cito o trabalho de Natália também porque, conterrânea de Henrique, apreende a realidade na mesma espacialidade (diz Paulo Freire “a cabeça pensa a partir do chão que pisamos”) desafiadora.
O próprio Supremo Tribunal Federal, como mostra Henrique, entre outras intervenções, acabou por estabelecer a salvaguarda dos direitos fundamentais e da cidadania, especialmente na ADPF 976-DF, que discute Estado de Coisas Inconstitucionais com a População em Situação de Rua. De fato, o Relator ministro Alexandre de Moraes, pediu informações ao presidente da República, aos governadores dos estados e aos prefeitos das capitais sobre a situação da população em situação de rua, para reunir dados para instruir a análise das medidas cautelares formuladas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, em que são pedidas providências para minorar as “condições desumanas de vida” dessas pessoas. O pedido de informações, a serem prestadas no prazo legal de cinco dias, está restrito aos prefeitos de capitais por razões de viabilidade e da celeridade do rito. Em seguida, os autos devem ser remetidos, sucessivamente, à Advocacia-Geral da União (AGU) e à Procuradoria-Geral da República (PGR), para que se manifestem.
Na ADPF, a Rede Sustentabilidade, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) sustentam que há um estado inconstitucional de coisas em relação à população de rua, com violação de diversos preceitos fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais à vida, à igualdade, à saúde e à moradia. Pedem a concessão de medida cautelar para determinar que os Executivos federal, estaduais e municipais promovam ações para preservar a saúde e a vida dessa parcela da população e, no mérito, que seja determinada a adoção de providências legislativas, orçamentárias e administrativas a fim de auxiliar as pessoas em condição de vulnerabilidade.
O ministro Alexandre de Moraes convocou audiência pública referente à ação, tendo recepcionado propostas e denúncias para, escritas ou na própria audiência, contribuírem para o encaminhamento da questão. Ele sugeriu três eixos para balizar as manifestações:
1. Evitar a ida para a situação de rua;
2. Tirar as pessoas em situação de rua e;
3. Respeitar os sujeitos vulnerabilizados e evitar violência.
Entre as contribuições tornadas possíveis com a Audiência, ponho em relevo as que foram levadas a conhecimento na ADPF pela socióloga Paula Regina Gomes. Paula Regina é vice-presidenta da Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil.
Além disso, ou antes disso, ela desenvolve uma Dissertação de Mestrado, no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, sob a orientação da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos). A pesquisa da dissertação, prestes a ser defendida, tem o sugestivo título “Rueira brasília – educação popular em direitos humanos. Vulnerabilização social e luta por direitos no contexto da violência”.
Pedi a Paula um resumo do trabalho que ela prontamente preparou:
“Rueira Brasília é uma pesquisa no campo dos direitos humanos orientada pela construção dialogal entre conhecimentos e saberes, que parte da realidade da violência e violação de direitos vivida pela população em situação de rua do Distrito Federal, pelos princípios da educação popular em direitos humanos, voltada para elaboração de propostas de melhorias das políticas públicas articulada com a promoção da participação social.
Fundamentada na teoria crítica dos direitos humanos e na perspectiva metodológica da etnometodologia a partir do método etnográfico da técnica da pesquisa de campo, associou a pesquisa-ação à observação participante. Interpretativa e de intervenção social abrangeu dados qualitativos e quantitativos com a preponderância da análise qualitativa.
A produção de dados aconteceu entre os anos de 2018 a 2022 com a aplicação de questionários, entrevistas, oficinas de aprendizado colaborativo, registro de denúncias, diários de campo e dados secundários em fontes oficiais, sendo recortada pela pandemia do novo coronavírus norteando uma análise comparativa.
Com a sistematização dos dados foi traçado um perfil socioeconômico e da violência vivida pela população em situação de rua, com a categorização dos principais tipos definindo uma matriz de opressão interseccional.
A partir daí temos a interpretação de soluções de melhorias construídas em diálogos de mundos fomentando o sujeito de direito no exercício cidadão. Assim, temos as principais contradições entre as políticas públicas concebidas e as praticadas a partir do conceito de violência institucional. As conclusões apontam os resultados da intervenção social com os avanços e desafios para a luta emancipatória por direitos humanos”.
Esses fundamentos, juntamente com um profundo conhecimento que a pesquisadora tem da realidade desse tema, ela levou para seu depoimento no STF. Na Audiência ela sustentou estarmos diante do “cenário do aumento da fome, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas que não tem garantido o que comer, representando 14 milhões de novos brasileiros nessa condição. O cenário do aumento da população em situação de rua consta na Nota Técnica 73 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que aponta um aumento expressivo de 140% da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020. Somado ao efeito da invisibilidade social desse segmento no planejamento das políticas públicas por falta de dados quantitativos e quantitativos precisos e qualificados. Cabe reconhecer que as políticas públicas atualmente não estão preparadas para atender as necessidades desse grupo social”.
Necessário, pois, “melhorar as políticas públicas para de fato abranger e promover condições efetivas para superar o quadro de violações e ausência de acessos que marcam a realidade da população em situação de rua. Trata-se de uma trajetória histórica de exclusão social e violências apontando para um processo de extermínio social. É de conhecimento notório daqueles que atuam e pesquisam diretamente com a população em situação de rua o cenário cotidiano de extrema violência e violação de direitos humanos que na maioria das vezes não são alcançados pelos instrumentos públicos oficiais devido a um processo de invisibilização social e de falta de mecanismos adequados para a especificidade dessa realidade que nega acessos e direitos. Assim, se faz fundamental a superação das assimetrias sociais garantindo a sua participação direta para mudar esse quadro inconstitucional de coisas qualificando as políticas públicas de forma territorializada”.
Em conclusão ela argumentou ser “imprescindível garantir uma política habitacional, com várias tipologias de moradia, que dê conta da complexidade de realidades sociais; uma política de soberania e segurança alimentar que dê condições para superação da fome e da desnutrição; uma política de assistência social que seja transformadora e norteada pelas melhores práticas de direitos humanos, adotando, inclusive renda básica; uma política pública de saúde que seja inclusiva e especializada, ampliando os consultórios na rua e garantindo celeridade para os pedidos de exames e cirurgias, com a construção de novos equipamentos voltados para a saúde mental; uma política pública de educação que garanta condições para o aprendizado; uma política pública de trabalho e renda que promova efetiva inserção no mercado de trabalho; uma política de segurança pública que seja inclusiva e garantidora de direitos humanos dos vulnerabilizados; uma política de direito a cidade que reconheça a condição de exclusão social e não promova a subtração dos poucos pertences daqueles que quase nada tem e que precisam desse pouco que é essencial para garantir da vida. A população em situação de rua representa um segmento social complexo recortado pela diversidade de minorias sociais que trazem o peso da opressão e da discriminação. É preciso que todas as políticas públicas e a atuação do sistema de justiça reconheçam e promovam ações reparatórias diante dos marcadores das diferenças sociais que reverberam as assimetrias sociais através do racismo, do machismo, do elitismo, da opressão contra LGBTQI +, dos idosos, dos jovens e das crianças, das mães e das mulheres em situação de pobreza extrema”.
Há, também no social, um engajamento consciente para dar cobro a essa situação e para superá-la. Naquela altura, o padre Júlio Lancellotti, numa ação do Observatório de Aporofobia com apoio da Pastoral do Povo de Rua, conduzia em São Paulo um Ato contra a Aporofobia, para a retirada de pedras da Biblioteca Cassiano Ricardo, “representando um marco da luta contra a aporofobia e a arquitetura hostil”.
Tenho dito, por isso, que a marreta do padre Júlio Lancellotti é uma símbolo real de atualização da Declaração Universal de Direitos Humanos. De minha parte e a propósito da recente aprovação da lei, celebrei o reconhecimento do Legislativo à exigência de prioridade desse tema central na agenda dos direitos humanos, com a aprovação da Lei que recebeu o seu nome.
Padre Júlio é um exemplo vivo de ação pastoral social, seguindo o magistério do Papa Francisco. Agora em novembro, por ocasião do XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022, ele lançou a mensagem para o VI Dia Mundial dos Pobres. Ele fala de duas dimensões da pobreza a que devemos estar atentos, distinguindo: “A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspectivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer”.
De outra parte, ao contrário, ele alude a uma outra dimensão da pobreza que requer discernimento político: “A pobreza libertadora[que] é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade”.
Seguindo a ética do Evangelho e de sua mensagem, conforme Francisco, o caminho que nos incumbe e que devemos escolher trilhar, é descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e a outra pobreza que liberta e nos dá serenidade.
Essa perspectiva de pobreza como condição de libertação, repercute no impacto que essa disposição emancipatória, carrega, por exemplo, para o Supremo Tribunal Federal.
A decisão ainda é provisória, em sede liminar. O Relator, ministro Alexandre de Moraes determinou que os estados, o Distrito Federal e os municípios passem a observar, imediatamente e independentemente de adesão formal, as diretrizes do Decreto Federal 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua. A decisão liminar, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, será submetida a referendo do Plenário.
Na decisão o ministro concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.
Ele também determinou que estados e municípios efetivem medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens das pessoas em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Além disso, devem proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
Na decisão, o ministro observou que, embora exista desde 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua contou com a adesão, até 2020, de apenas cinco estados e 15 municípios. Segundo o relator, apesar de passados mais de 13 anos desde a edição do decreto, os objetivos ainda não foram alcançados. “Esse grupo social permanece ignorado pelo Estado, pelas políticas públicas e pelas ações de assistência social. Em consequência, a existência de milhares de brasileiros está para além da marginalização, beirando a invisibilidade”, afirmou.
O ministro Alexandre ressaltou que análise efetuada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) constatou que, entre 2012 e 2020, ocorreu um aumento de 211% na população em situação de rua em todo o país, percentagem desproporcional ao aumento de 11% da população brasileira no mesmo período.
Segundo a decisão, o plano deverá conter um diagnóstico atual da população em situação de rua, com identificação de perfil, procedência e suas principais necessidades. Deverá prever, também, a criação de instrumentos de diagnóstico permanente desse grupo de pessoas, além de meios de fiscalização de processos de despejo e de reintegração de posse no país, e a elaboração de medidas para garantir padrões mínimos de qualidade de higiene e segurança nos centros de acolhimento.
Entre outras medidas, o ministro Alexandre de Moraes deu prazo de 120 dias para que governo federal elabore plano de ação e monitoramento referente à implementação da política nacional para a população de rua.
A manifestação do Ministro configura o estado de coisas inconstitucional que caracteriza a condição de absoluta redução do direito à dignidade a que incumbe ao Estado e às políticas públicas prover, conforme uma audiência pública que o próprio Ministro instalou em novembro de 2022, para debater o tema. Com duração de dois dias, a audiência teve a participação de 81 representantes do Executivo, do Legislativo, da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Advocacia-Geral da União (AGU), de órgãos públicos e entidades da sociedade civil. A íntegra da decisão, pode ser conferida no sítio do STF.
A decisão o ministro relator Alexandre de Moraes cita pontualmente o padre Julio Lancellotti como marcador de seu posicionamento, exatamente para se colocar na mesma disposição de combate à aporofobia, a aversão a pessoas pobres.
Em matéria da Agência Brasil, o padre Lancellotti, que sobre esse tema já foi referido por mim aqui no Brasil Popular se manifestou: “O Estado, em todos os níveis, sabe dar que resposta? Fazer albergue. Sabe dar que resposta? Higienismo. Retirar as pessoas e agredir. Então é preciso ter discernimento para encontrar respostas para uma população que é tão diversa”. Para Lancellotti,“a medida marca posição diante de governos hesitantes em assumir responsabilidades com essa população. “É uma decisão histórica, uma decisão que o STF toma em relação a uma população que nunca tem acesso à Justiça. Tornou-se uma questão de Justiça, de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de uma população completamente esquecida e descartada. É muito importante. Nasceu da decisão do ministro a partir da audiência pública em que todos foram ouvidos, por isso é muito boa”.
No meu texto cito o querido amigo Jacques Távora Alfonsin: “Essa é uma tarefa complicada ou impossível para os povos que o STF acaba de reconhecer como cidadãos, “sujeitos de direito”? Não é. Só não será se toda essa militância, livre de qualquer preconceito ideológico, perca a fé no que ensinava nosso querido e amado mestre Paulo Freire, quando ele desafiava nossa criatividade em pensar e agir: Há sempre um “inédito viável” à nossa disposição, dizia ele, que só depende da nossa ousadia em não se submeter a todo um sistema socioeconômico que nos oprime e aparenta ser “normal”, “natural”, inquestionável e invencível”.
Para esse inédito viável apontam os dois trabalhos. Na tese, Henrique, para além dos aspectos teóricos articulados no interseccional tão necessário à perspectiva aporofóbica, se orienta para identificar diz ele, o fio de Ariadne que percorra os meandros do constitucional para inserir no programa da Constituição, o objetivo de superação da pobreza.
Para o autor, “Esse núcleo ético-moral de proteção integral ao ser humano, que entende cada indivíduo como um ser dotado de capacidade jurídica, socialmente relevante e politicamente livre, independentemente da diversidade que o identifique, encontra nos direitos humanos sua quididade, seu furor existencial, o espaço axiológico através do qual está constituído e regulado seu ethos, tendo na Declaração Universal o grande projeto global de sociedade”.
Me reconheço na adequada citação que o Autor faz, me colocando no tema – p. 46-47 – “Acerca desse tema, José Geraldo de Souza Júnior entende “os direitos humanos como um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista”, cujo objetivo é orientar “projetos de vida e percursos emancipatórios”. Na visão do autor, esses direitos possibilitam a construção de sociedades resilientes, de representação jurídica destinada à “formulação de projetos de sociedade” com tessituras abertas, dialógicas e de lutas sociais por dignidade”.
Mas se o Autor me coloca nesse rol, junto com tantos e tão qualificados formuladores, é preciso que eu me distinga deles, no limite que me parece ser, mesmo em Armatya Sen e Martha Nussbaun e sua assimilação expressa a teorias de justiça, Ralls, entre elas, que se contêm, no arco da concepção liberal, ao fim e ao cabo, ao limite do estrutural, do funcional, do instrumental.
Diz o Autor:
Sousa Júnior fornece o mapa dessa trilha, que denomina de Direito Achado na Rua, ao propor uma nova compreensão do fenômeno jurídico, a partir da integração dos movimentos sociais e de suas práxis no interior do debate público. Com essa integração, essas representatividades passariam a funcionar como elemento estruturante e instituidor de direito.
Nessa dinâmica, os valores representados pelas causas sociais operariam como forças paradigmáticas, servindo de oriente para a construção de um direito emancipatório e resiliente, oposto à lógica de instrumento de subordinação. Para o autor, deve-se compreender o direito como uma “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Observe-se, desde já, que Souza Júnior não se opõe ao sistema jurídico positivado, antes lhe reconhece validade e defende sua legitimidade, porém ressalva que tanto a legislação, quanto as ações estatais, devem ter como fonte a Constituição, que se encontra estruturada numa tessitura aberta, plural e dialógica que objetiva reconhecer e garantir lugar de fala aos mais variados segmentos que compõe o tecido social nacional e que representam, por excelência, a luta pluralista e democrática do projeto de desenvolvimento criado pela Carta Republicana de 1988.
E ele prossegue:
Ora, garantir lugar de fala aos grupos subalternizados e às suas representações sociais é, de per si, uma manifesta conformação da dignidade humana à realidade jurídica estabelecida pela Constituição, encaixando-se, portanto, dentro da lógica de liberdade e capacidade defendida por Sen e, mais especificamente, no rol de capacidades fixados por Nussbaum. Ademais, ao integrar os coletivos subalternizado, especialmente os pobres, no debate público sobre realização da dignidade humana e da justiça sócia, incorpora-se, por efeito gravitacional, esses grupos à agenda de desenvolvimento político, econômico e social instituído pela Constituição, ao tempo que se lança a pedra angular para o enfrentamento da violência discriminatória, com destaque para a aporofobia, pelo “cultivo da ética democrática” que, segundo Cortina (1), deve ser fundada numa liberdade sagrada e igual, “obtida por meio do diálogo e do reconhecimento mútuo da dignidade”.
Eles são os sujeitos e sujeitas periféricos, de que trata Tiaraju Pabblo D’Andrea – Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, sociologicamente sensíveis ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.
Até se constituírem nos processos de luta por reconhecimento da dignidade material de que se querem investir, conforme Herrera Flores, que o Autor considera, e que, nessa luta instituinte vão reinvindicar e realizar, em ação coletiva, os direitos (cf. O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023).
No último artigo que publiquei, para fazer parte do livro – A constituição da democracia em seus 35 anos / (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
No meu texto, parto do fundamento que a Constituição não é o texto no qual se representa, mas aqueles fatores que a promovem (conforme indicava no século XIX Ferdinan de Lassale) e que por isso ela se realiza ao impulso da “Disputa por Posições Interpretativas”. Tomei como referência o entendimento elaborado pelo constitucionalista Gomes Canotilho que reinvindica no campo da teoria da constituição e do direito constitucional, a necessidade de teorias de sociedade e de justiça que possibilite orientar as exigências do justo sob outros modos de considerar o direito, apontando para um constitucionalismo achado na rua: “Do outro lado da rua, ‘o direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1988; Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008; Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real. Entrevista in C & D – Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Sindjus, nº 24, junho, 2008).
Claro que pressuponho que essa disputa é movida diretamente no social, por isso constitucionalismo achado na rua, algo que procurei demonstrar recentemente, ao prestar depoimento, como convidado, na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), para examinar a questão agrária brasileira e os conflitos que dela decorrem. A propósito, para além do depoimento seguido de debates que pode ser recuperado nos arquivos de mídia da Câmara dos Deputados, requisitei a juntada de texto-base da minha apresentação, que também publiquei para evitar que fosse adrede recortado para servir a interpretações enviesadas, conforme já constatei no relatório lido na sessão convocada para esse fim. Remeto, pois, ao meu texto íntegro (cf. aqui).
Mas há, igualmente, interpretações construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias à disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que deem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro. É o que propõe a tese.
Como sair da redução sociológica (Guerreiro Ramos), no sentido de que já a perspectiva segundo a qual os objetos são tomados os constitui, senão elaborando possibilidades empírico-epistemológicas para divisar subjetividades que se movam ativamente. O empírico estabelecido para a pesquisa dá conta disso? A amostra é suficiente? Os sujeitos das entrevistas percebem um potencial emancipatório que não se confine num “grito de excluído”? O próprio grito pode ser um início de movimento para quer ser sujeito.
A tese, na individualização das percepções, não logra divisar uma consciência de emancipação, aquela perspectiva que designa uma autorreflexividade que leve ao salto que a consciência proporciona para se transformar em ação política que modifique a realidade. A tese parece deslocar esse salto no encontro entre a consciência da exclusão pelo grito de excluído, o pedido de ajuda, de acolhimento e, no caso pastoral, a resposta evangelizadora que compreende a política como dimensão sublime da caridade, como está na Evangelii Gaudium.
A tese destaca – p. 120 – que são “as ações da Pastoral do Povo da Rua têm servido não apenas de acolhimento às pessoas em vulnerabilidade social, mas, sobretudo, como instrumento de empoderamento desses grupos sociais hostilizados, na medida que ela estabeleceu uma pauta de debate público sobre a violência discriminatória, com especial ênfase, conforme dito anteriormente, na aporofobia. Um dos resultados alcançados pelo sacerdote, que tem na inclusão social, e na não discriminação, sua grande bandeira de luta, foi a aprovação da Lei nº 14.489, de 21 de dezembro de 2022, que leva seu nome e cujo objeto é o combate à aporofobia decorrente da arquitetura urbana hostil”.
Interessante que a Dissertação, também se completa na descrição de uma realidade que não gera protagonismo, confinando os objetivos da pesquisa, ainda que “não só por investigar os significados próprios de se morar nesse espaço para a população em situação de rua, como também analisar como as vidas dessas pessoas são afetadas pelas violações de seus direitos humanos e em que medida essas violações influenciam nas estratégias de sobrevivência”.
Alcança nesse aspecto um nível narrativo sofisticado que faz a descrição se tornar dimensão explicativa do real (lembrando Engels, para quem a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação).
Mas e o lugar dos sonhos (pergunta da entrevista, na tese)? Quais são os seus sonhos (pergunta da entrevista, na dissertação)?
Uma variação de perspectiva para escapar à redução sociológica, talvez pudesse abrir variáveis. Penso na Revista Traços, um projeto cultural e de inclusão, que acolheu moradores de rua como “porta-vozes de cultura”, que não só fazem parceria para rendimentos econômicos, mas se expressam como subjetividade, no espaço editorial, como Priscila, a primeira Porta-Voz da Cultura a iniciar uma graduação, contando a sua história e seu sonho em ser juíza de Família:
A Revista Traços começou o ano com uma grande notícia para o time de Social da publicação, que há três anos mantém de pé o projeto de inclusão social de pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade. Com base na geração de renda e autonomia, a iniciativa oferece aos Porta-Vozes da Cultura, os vendedores da Traços, setenta por cento do valor de capa de cada exemplar. E foi assim que a Porta-Voz Priscila do Carmo Limoeiro, 29 anos, conseguiu se planejar para estudar, fazer a prova do ENEM e garantir, este ano, o ingresso na graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). As aulas começaram no dia 12 de fevereiro, mas Priscila já tem planos e sonhos a longo prazo: quer ser juíza de Vara de Família”. (Cfe. aqui)
Projeto bem sofisticado, conduzido por uma equipe técnica e politicamente experiente e com clareza acerca da concepção gráfica e filosófica do empreendimento. A Traços, eles explicitam e reeditam neste número especial, “é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta-Vozes (coordenados e orientados conforme um Código de Conduta), que ficam com 70% de valor de cada exemplar”
O modelo do projeto não é inédito. A Revista The Big Issue Japan ajuda e dá ofício para homeless. O projeto se inspira em experiência inglesa com uma proposta para ajudar moradores de rua. Está no país desde 2003 e oferece um ofício para quem não tem onde morar, como um incentivo para sair dessa situação, além de servir para que as pessoas voltem a socializar e aprendam um trabalho novo.
De certo modo essas experiências compõem o que já se designa como organização internacional dos moradores de rua. Uma das iniciativas mais bem-sucedidas internacionalmente são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados ou vendidos por moradores de rua, e têm sido tema de debates em conferências, que já ultrapassaram mais de dez realizações da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional que abrange as publicações do gênero.
Remeto aqui ao trabalho de minha colega de universidade, Arcelina Helena Públio Dias, atualmente entre seus retiros espirituais em mosteiros do mundo ou em Vila Boa de Goyaz, ou Goiás Velho, mas que na universidade e nos movimentos populares, desenvolveu projetos de formação em jornalismo comunitário.
Leia-se, a respeito o seu paradigmático texto O jornalismo comunitário como instrumento de mobilização social e gerador de renda para desempregados Uma experiência na formação de jornalistas populares.
Para Arcelina, “Revistas de rua no mundo lutam contra a exclusão. Revistas e jornais voltados para os problemas dos excluídos podem ser encontrados em quase todas as metrópoles do primeiro mundo. Semanais ou mensais, esses periódicos são vendidos pelas ruas, bares e metrôs, por desempregados, organizados em associações, o que lhes garantem, como renda, no mínimo, metade do valor de cada exemplar. A tiragem ultrapassa, na maioria das vezes, cem mil exemplares. O Street News, de Nova Iorque, e o Big Issue, de Londres, chegam a tirar meio milhão”. Ela participou ativamente, em Brasília, do surgimento, em final de 1997, da primeira revista pela inclusão social, vendida na rua por desempregados: NÓS – resultado de um curso de formação de jornalistas comunitários.
Para Filipe, na Dissertação, o escopo é acicatar uma atenção intelectual e política que mobilize o pensar e o agir para uma realidade que interpela: “defendo que compreender a complexidade do fenômeno da população de rua passa por escutar as histórias de vida das pessoas que vivem a rua como única realidade possível para moradia e que reinventam seus usos diariamente para forjar sua sobrevivência no cotidiano das cidades. Dessa forma, promover pesquisas que se voltem a analisar as relações dessa população com os espaços e estratégias de vida, me parece central para que se avance na oferta de políticas públicas adequadas, que considerem as carências dessa população e que enfrentem a situação de rua efetivamente, possibilitando uma vida digna, com garantia de direitos humanos e onde, enfim, se possa pensar na ideia de lar. Assim, o viver nas ruas no que chamo de “casas de papelão”, nos remete a fragilidade de uma população que luta pela vida e por um espaço de existência digno, mas que hoje vive tendo seus direitos humanos violados e suas histórias desconsideradas nas várias esquinas, ruas e marquises do cotidiano das cidades. E pesquisar sobre essa realidade, reconhecendo suas complexidades, contornos e pulsações, é propor um debate necessário que requer respostas urgentes para promoção de direitos humanos historicamente negados”.
Para Henrique, na Tese, do que se trata, é constatar que “a violência aporofóbica exclui os pobres do debate público em razão de processos discriminatórios dos quais são vítimas, provocando, na psiquê de cada qual, consequências diversas, como, a exemplo, a privação de autoestima, a perda de pertencimento a uma sociedade, a descrença no Estado e em suas instituições, bem como o ceticismo à democracia, aos direitos humanos e à sociedade, de um modo geral. E essa figuração sensitiva, colhida no campo empírico, e nas observações teóricas registradas na tese, elementos segregatícios determinantes para a deslegitimação do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. Portanto, cumprir os objetivos fundamentais da República, a partir da perspectiva da universalização da dignidade humana, é um desafio necessário para combater a aporofobia – e as demais hostilidades discriminatórias – e legitimar o sistema democrático constitucional do Brasil”.
Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti, notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Eis aí uma perspectiva que se insere no que temos chamado de constitucionalismo achado na rua. Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Políticos sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua (a propósito; e, no prelo: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al – orgs – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais. Coleção Direito Vivo vol. 8. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2024), vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).