16 Agosto 2023
O programa é importantíssimo, mas 57% dos recursos dependerão da iniciativa privada. Falta ao Estado recuperar seu protagonismo em torno de um projeto de desenvolvimento. Isso requer mais investimento, sem as travas da austeridade “suave”.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 15-08-2023.
O anúncio oficial da nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi cercado de muita expectativa e publicidade. A intenção do governo é criar um clima positivo a respeito das possibilidades da retomada do crescimento das atividades econômicas, assim como ocorreu nas edições anteriores de 2007 e 2010 do programa, sob o segundo mandato de Lula.
Os números apresentados pretendem causar um grande impacto na sociedade e na opinião pública de forma geral, em razão da magnitude das cifras. O total dos valores envolvidos aponta para R$ 1,7 trilhão. Ora, caso se tratasse efetivamente de investimentos e despesas públicas diretas para um único exercício seria razoável considerar uma alavancagem macroeconômica de relevância. Afinal, aquilo que o economês chama de “multiplicador do gasto público” entraria em ação de forma bastante incisiva e as consequências positivas para o crescimento do PIB seriam inequívocas.
No entanto, a análise calma e detalhada no momento posterior ao anúncio recomenda certa cautela na avaliação da proposição. A primeira questão é relativa à duração temporal do programa anunciado. Apesar das dificuldades na exposição da proposta, o que pode ser deduzido é que se trata de um cronograma de desembolsos com um horizonte temporal superior a 4 anos. Seriam R$ 1,4 trilhão para o quadriênio 2023/26 e mais R$ 0,3 trilhão para o período pós-2026. Assim, a grosso modo, poderíamos considerar um fluxo anual médio de R$ 350 bilhões para o atual mandato de Lula.
Apesar de números elevados e que podem causar alguma impressão à primeira vista, a realidade é um pouco diferente. Algum padrão de variáveis similares pode ajudar na comparação. Caso consideremos o valor total das despesas incluídas no Orçamento Geral da União (OGU) para 2023, por exemplo, o montante do PAC 3 fica ainda mais modesto. A parcela anual do programa representa pouco mais de 6,7% do total de R$ 5,2 trilhões previstos para os dispêndios orçamentários do governo federal para o presente ano.
Um outro aspecto a ser levado em conta refere-se à natureza heterogênea das informações divulgadas e da adição de componentes aparentemente distintos na busca de chegar ao valor trilionário. É o procedimento que a sabedoria popular chama de somar laranjas e abacaxis. O resultado fica complicado de ser compreendido. Assim, de acordo com as informações oficiais, a composição do programa seria a seguinte:
PAC 3 – Origens dos recursos
R$ bilhões | % | |
Recursos orçamentários federais | 371 | 0,22 |
Recursos empresas estatais | 343 | 0,20 |
Recursos financiamentos federais | 362 | 0,21 |
Recursos setor privado | 612 | 0,36 |
TOTAL | 1688 | 1,00 |
Fonte: Casa Civil
Como se pode perceber, a expectativa é que o capital privado participe com mais de um terço do total dos investimentos previstos ao longo dos anos (36%), em sua grande maioria por meio do modelo de parceria público privada (PPPs). Por outro lado, os recursos a serem financiados pelo governo federal também devem ser para projetos a serem implementados pelo setor privado. Considerando-se tal hipótese, percebe-se que mais da metade dos valores (57%) vai depender diretamente do interesse e da disposição do capital.
Apesar das ponderações acima, o fato é que não se pode negar a importância de tal iniciativa do governo Lula. Qualquer medida que venha a abandonar de uma vez por todas a postura liberal de Paulo Guedes deve ser vista com bons olhos. Deixar a retomada do crescimento da economia e a busca por um caminho desenvolvimentista apenas nas mãos da iniciativa privada e à espera da ação das chamadas “livres forças de oferta e de demanda” não resolveria os graves problemas que o Brasil atravessa. Para isso são necessárias políticas públicas direcionadas, política industrial orientadora e um espírito de vanguarda ser atribuído ao setor público em diferentes etapas da atividade da economia.
No entanto, a forma como o PAC atual foi elaborado tampouco supre as necessidades de recompor os estragos provocados desde 2016, após o golpeachment contra Dilma Rousseff. As gestões de Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes fizeram terra arrasada do país, de nossa economia e de nossa população. Recuperar a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas exigem muito mais do que simplesmente apresentar uma coletânea de programas e projetos. Ao que tudo indica, falta ainda a vontade política expressa de postular claramente pela recuperação do protagonismo do Estado no processo econômico, estabelecendo prioridades e formulando programas estratégicos de médio e longo prazos.
A Constituição brasileira prevê a necessidade de um Plano Nacional de Desenvolvimento desde 1988, mas esse importante instrumento de planejamento governamental jamais foi implementado. Um programa digno deste nome exige um esforço nacional em torno do estabelecimento de seus possíveis eixos norteadores, com a definição de prioridades e os recursos necessários por parte do governo federal, em articulação com estados e municípios. Mas este movimento deveria significar muito mais do que uma simples recuperação de obras paralisadas ou de atendimento aos anseios das lideranças políticas locais. Recuperar a importante função planejamento do Estado brasileiro é algo muito mais complexo e que exigiria maior atenção e cuidado por parte do Executivo.
O volume de recursos tampouco deveria ser limitado pelas regras da austeridade fiscal restritiva. A título de comparação, vale a pena recordar que apenas o PAC 2, lançado em 2010, já previa um valor total de investimentos da ordem de R$ 1,6 trilhão com valores da época. Ora, se considerarmos tão somente a atualização inflacionária de tal montante, os valores chegariam a R$ 2,7 trilhões atualmente. Desnecessário dizer que ao longo destes 13 anos as necessidades de políticas públicas e de infraestrutura cresceram bastante, principalmente se levarmos em conta os 7 anos de destruição promovida pelo golpismo e pela extrema direita.
Mais uma vez o argumento apresentado para a falta de iniciativa mais ousada do governo no enfrentamento da questão refere-se à suposta ausência de recursos e à necessidade de apresentar uma postura de “responsabilidade fiscal”. Porém, o problema parece ser a incorporação da lógica da austeridade por parte do comando do Ministério da Fazenda na condução da política econômica. Esta orientação é bastante contraditória com o espírito da campanha de 2022 e com as promessas de Lula para seu terceiro mandato. No entanto, por incrível que possa parecer, essa abordagem conservadora e ortodoxa esteve desde o início na base da formulação da PEC da Transição e do Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Assim, ao recuar na proposta de promover a pura e simples revogação da EC 95 e do famigerado Teto de Gastos, Haddad recomendou a Lula que o mais correto seria a adoção de um novo modelo de austeridade.
Com isso, as verdadeiras necessidades de investimentos governamentais e despesas públicas não poderiam ser cumpridas em razão das limitações previstas no NAF. No entanto, a retórica continua enviesada pela narrativa do financismo. A lógica de obtenção de superávit primário a qualquer custo provoca, na verdade, a compressão das despesas não-financeiras e dos investimentos. E continuamos assistindo a novas temporadas da surrada série “contingenciamentos pela Esplanada”. A imprensa não para de repercutir os cortes em saúde, educação, assistência social e outras áreas de maior sensibilidade social. Ou seja, as rubricas do orçamento vinculadas às despesas financeiras continuam livres, leves e soltas para crescer como assim quiserem os responsáveis pela política econômica. Caso fiquemos tão somente com os volumes das despesas governamentais realizadas com o pagamento dos juros da dívida pública, apenas tais valores de gastos financeiros excedem os totais dos dispêndios previstos para o PAC 3. Uma loucura!
E não existe exigência da sacrossanta “responsabilidade fiscal” para com tais itens, onde claramente ocorre um direcionamento do fundo público para os setores privilegiados do topo da nossa pirâmide da desigualdade. Ao longo dos últimos 12 meses, por exemplo, foram gastos R$ 700 bilhões a esse título – o equivalente a 40% do R$ 1,7 trilhão previsto para o horizonte de 4 anos do novo PAC e que incluem também os investimentos do capital privado na conta. Caso sejam computados os valores acumulados e atualizados das despesas com juros no quadriênio 2019/22 o montante deste único item das rubricas orçamentárias supera a cifra de R$ 1,9 trilhão.
Despesas com juros – 2019/2022 (R$ bilhões)
ANO | Valor (R$ bi) |
2019 | 466 |
2020 | 380 |
2021 | 493 |
2022 | 586 |
Total |
1.925 |
Fonte:BC/STN (valores atualizados)
As intenções do governo com o PAC 3 podem até ser boas. As páginas oficiais na internet apontam para um programa que estaria
(…) “Baseado na articulação entre municípios, estados e federação, os objetivos do novo programa são gerar emprego e renda, reduzir desigualdades sociais e regionais, promover a neoindustrialização e ainda o crescimento com inclusão social e a sustentabilidade ambiental.” (…)
No entanto, entre o trilhão e os bilhões anunciados, resta uma avenida ser preenchida com os recursos capazes de suprir as reais necessidades de um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, sustentado por um programa estratégico capitaneado pelo Estado brasileiro. Porém, para que esse objetivo seja alcançado, o governo Lula precisa abandonar urgentemente as travas da austeridade fiscal e os dogmas neoliberais ainda presentes no discurso e na prática de alguns de seus representantes na economia.
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Novo PAC: é preciso mais que trilhão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU