18 Julho 2023
"A exclusão da mulher dos sujeitos de válida ordenação tem caracterizado uma tradição muito longa, em profunda aliança com o preconceito comum, baseando-se em argumentos biológicos, antropológicos, sociológicos, escriturísticos e sistemáticos, hoje é necessário avaliá-los profundamente e considerar a hipótese que nenhum desses argumentos ainda tenha condições de justificar o impedimento".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 15-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muito tem sido escrito sobre o impedimento do sexo ao longo da história da igreja. Uma discussão dos pressupostos dessas opiniões parece hoje totalmente relevante para uma teologia sistemática do ministério ordenado. No livro que apresento aqui ofereço 24 variações sobre o tema. Publico aqui uma parte do primeiro capítulo, dedicado justamente ao “tema”, ao qual se seguem 24 variações. (ag)
Um fato, por si só, não prova nada além de si próprio. Que um fato indique um princípio só pode resultar por meio de um procedimento argumentativo bastante complexo. A Igreja desde sempre esteve envolvida nesse tipo de processos hermenêuticos complicados: vivenciou muitos fatos e arduamente os traduziu em princípios. Salvaguardando quase sempre aquela inquietação, aquela incompletude e aquela imaginação sempre necessárias nesses casos. Tal fenômeno também se referiu à concepção das autoridades e de seu exercício na experiência eclesial. Em cujo interior a questão da “exclusão do sujeito feminino da ordenação” permaneceu, por muitos séculos, objeto de uma evidência imediata, indiscutível, mas profundamente condicionada pela cultura pessoal e social de homens e mulheres.
De fato, bem cedo a Igreja teve que se organizar como “comunidade”. Toda comunidade precisa ser dirigida, regulada e administrada. Os modelos com os quais a Igreja concebeu as formas de suas auctoritates são numerosos. O que logo se firmou teve como evidência tanto a singularidade do ministro quanto sua masculinidade. Isso permaneceu como um pressuposto indiscutível em grande parte da experiência eclesial. E continuou a ser pacificamente eficaz, pelo menos até o Concílio Vaticano II. Com o último concílio, surgiram duas novidades fundamentais:
a) por um lado, a “singularidade” do sacerdote transformou-se na “pluralidade e colegialidade dos ministérios”. Uma mutação complexa investiu a compreensão do ministério em duas etapas:
– por um lado, recuperando um “ministério ordenado” em três graus (diaconato, presbiterado e episcopado)
– por outro lado, transformando os “graus inferiores do ordo” em “ministérios instituídos”, entendidos como categoria “aberta”.
b) por outro lado, a afirmação da necessária “masculinidade” do ministro encontrou seu limite intrínseco e constrangedor no “sinal dos tempos” da mulher na vida pública (“in re publica”). Uma evidência que atravessou os séculos, e que, de Aristóteles a São Tomás de Aquino, até o início do século XIX, considerou a mulher marcada por estrutural inferioridade e incapazes de autoridade pública, entrou em crise, dentro das lógicas da “sociedade aberta”. E a reserva masculina experimentou recentemente sua primeira grande superação.
Esse desenvolvimento confrontou a teologia católica com uma nova demanda de argumentação. Por um lado, pode parecer que a nova pergunta deveria ser formulada assim: “podemos incluir as mulheres entre os sujeitos de válida ordenação?”. Mas a tradição preferiu elaborar critérios de exclusão, identificando um sistema de “impedimentos”, que contemplava uma série de sujeitos, que por razões explícitas não se acreditava pudessem ser ordenados, de forma absoluta ou relativa. Na lista elaborada por São Tomás de Aquino, por exemplo a mulher aparece sempre no topo da lista dos “irregulares”, superando de longe os menores e os incapacitados, os escravos, os assassinos, os filhos naturais e os portadores de deficiência.
A pergunta clássica, portanto, não foi “por que deveríamos incluir as mulheres?”, mas “por que devemos excluir a mulher?”[1].
As estratégias com as quais a Igreja Católica tentou responder ao “sinal dos tempos” da mulher que entra com autoridade no espaço público não são respostas clássicas, pelo menos do ponto de vista formal, porque o mundo em que a Igreja viveu até o século XIX pensava exatamente como a Igreja: portanto naquele mundo ela não tinha que argumentar o que era pacificamente compartilhado e se o fazia, expressava nisso o “senso comum”, não uma verdade teológica. No entanto, é útil saber que a Igreja pré-moderna tendia a considerar todos os batizados como possíveis sujeitos de ordenação, exceto aqueles para os quais havia um “impedimento”, enquanto a partir do século XX (com o Código de 1917) se invertia o procedimento argumentativo e apenas o homem batizado (“vir”) é fixado como um “sujeito ordenável”, assumindo isso como uma evidência devida à especificidade teológica do sujeito eclesial. Assim surge a ideia de que a exclusão é eclesialmente óbvia e sem necessidade de argumentação (um fato, justamente), e que, ao contrário, dever-se-ia construir uma justificativa complexa para a inclusão também da mulher entre os sujeitos que podem ser ordenados.
Eu gostaria de permanecer fiel àquela lógica medieval e identificar bem a questão a ser enfrentada, formulando cuidadosamente a pergunta “por que deveríamos excluir a mulher da ordenação?” Essa forma de orientar a questão mantém-se mais fiel à tradição e, assim, aos nossos olhos, realiza uma grande inversão, ou seja, inverte o ónus da prova: não é a mulher que deve provar ser ordenável, mas é a Igreja que deve provar que não é ordenável [2].
[…]
Diante do magistério católico, que afirma que “não tem o poder para mudar a tradição da exclusão da mulher do ministério ordenado”, a teologia registra a posição e se pergunta três coisas:
a) É verdade que o magistério não tem o poder de incluir e, portanto, mantém intacto o poder de excluir? Na “teologia negativa” que o magistério católico adotou para não mais se envolver em uma lista de impedimentos, o que alimenta o efeito de positiva exclusão? Que poder resta após ter excluído ter poder? A história de um impedimento é suficiente para justificar essa nova forma de impedimento? É possível ser impedidos de remover um impedimento que não se consegue mais justificar, exceto porque “sempre foi assim”?
b) Quais são as argumentações teológicas que sustentam essa posição aparentemente apenas negativa? A busca das razões implícitas parece necessária, ainda que a sua avaliação conduza a curtos-circuitos argumentativos bastante alarmantes, que parecem oscilar entre a transformação de fatos em princípios e a elaboração de novos princípios apenas para salvaguardar os fatos adquiridos.
c) De que forma o “sexo masculino como substância do sacramento”, elaborado no início do século XX, é modificado por um número plural de ministérios? Se a “reserva masculina” é superada em um âmbito específico do ministério eclesial (como aconteceu desde 2021 para os “ministérios instituídos”), o que comporta essa mudança estrutural para as argumentações usadas no raciocínio teológico? Pode ser considerado um “precedente” que introduz uma nova maneira de entendimento e desenvolvimento na argumentação teológica?
Magistério e teologia se integram continuamente, em um diálogo muito articulado mesmo quando permanece abaixo do radar. A fragilidade de uma posição, que se sustenta apenas na autoridade, mas que não consegue fundamentar de forma convincente aquilo que afirma, assinala uma questão que interessa a todos enfrentar com pacata e paciente lucidez. Por isso, uma revisão fundamentada das argumentações que excluem a mulher do ministério ordenado parece hoje uma tarefa incontornável, que cabe a uma teologia responsável: responsável antes de tudo para com as mulheres, mas de forma mais geral para com o próprio status do pensamento e do sentir católico. Isso deve ser realizado sem nenhuma possibilidade de contornar o magistério, mas para chegar a uma revisão crítica de suas afirmações, mostrando os argumentos fortes e os fracos que a tradição nos oferece e diante dos quais é preciso tomar posição, no plano da razão como no plano da fé, sem confundir os dois níveis e sem separá-los. Pois a exclusão da mulher dos sujeitos de válida ordenação tem caracterizado uma tradição muito longa, em profunda aliança com o preconceito comum, baseando-se em argumentos biológicos, antropológicos, sociológicos, escriturísticos e sistemáticos, hoje é necessário avaliá-los profundamente e considerar a hipótese que nenhum desses argumentos ainda tenha condições de justificar o impedimento. E se não há mais impedimento, o caminho está aberto: não será certamente a estratégia da “substancialização” ou “sacramentalização” do impedimento, inaugurada no plano jurídico no alvorecer da canonística, mas retomada no século XX século com nova intenção sistemática, a torná-lo mais persuasivo ou mais eficaz.
[1] São Tomás de Aquino, Supplementum à Summa Theologiae, q. 39, a. 1. O título deste livro retoma literalmente o título desse artigo, para assumir a mesma postura que marcou grande parte do pensamento medieval e moderno sobre o tema, antes da “substancialização” e “sacramentalização” do sexo masculino, primeiro prefigurada pela canonística medieval em seus primórdios, mas inaugurada sistematicamente apenas pela teologia católica do século XX, com a iniciativa magisterial e a obediência (e/ou complacência) de uma parte significativa do pensamento teológico.
[2] É importante reconhecer que essa “prova” não pode ser simplesmente constituída por um “fato”. Sendo a exclusão da mulher um fenômeno social e cultural absolutamente datado, que só começou a mudar significativamente no século passado, é evidente que a “prova histórica” é uma prova fictícia. A Igreja não tem mérito algum em ter seguido uma cultura de discriminação e não pode trazer esta como “prova” do bom fundamento atual de sua própria práxis de reconhecimento do “chamado ao ministério ordenado”. Uma vez que os últimos documentos oficiais tendem a assumir fundamentalmente essa postura - considerando o fato da exclusão secular como uma vontade do Senhor e como fundamento do direito (divino) de continuar por esse caminho -, precisamente sobre esse ponto as 24 “variações sobre a tema” que proponho neste livro pretendem mostrar a fragilidade tanto desse caminho “factual”, como das tentativas de argumentar “segundo princípios” essa aparente lógica objetiva.
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Rumo a uma teologia do ministério ordenado feminino. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU