12 Julho 2023
É a teologia da reserva masculina que é ideológica, e não a demanda de acesso das mulheres ao ministério da Igreja. Interpretar essa mudança como uma melhor compreensão do Evangelho implica repensar profundamente a relação entre doutrina, disciplina e palavra de Deus.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo é publicado por Come Se Non, 09-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cinquenta e duas mulheres terão direito a voto na assembleia do Sínodo dos Bispos em outubro. Embora tenha amadurecido em um contexto parassacramental, como é justamente um Sínodo, trata-se de um fato teologicamente importante e que muda muitas coisas.
A reserva masculina, que até poucos anos atrás parecia se fundamentar na “divina constituição da Igreja” e que os teólogos não secundários haviam lido como fruto de uma espécie de princípio (ou preconceito) da “perene hierarquia entre os sexos”, agora cai não só para o acesso aos ministérios constituídos, mas também no cerne do exercício episcopal do munus regendi.
Pode-se ler uma riqueza de comentários escandalizados, devido a uma suposta submissão da Igreja a uma mentalidade mundana e ao relativismo da igualdade. Pensada segundo modelos medievais e modernos, a Igreja seria uma espécie de guardiã da sociedade da honra e não deveria ceder às lisonjas da sociedade da dignidade, entre as quais brilha a “emancipação feminina”.
Mais interessante é descobrir em São Paulo, justamente em um dos autores mais citados para justificar a incompetência da mulher em ensinar, comandar e presidir, uma das inspirações originais para essa superação da reserva masculina. Com efeito, lemos em Gl 3,28 uma impressionante relativização das “grandes diferenças” de que vivem a cultura e a sociedade antiga, medieval e moderna: ou seja, a diferença étnica e religiosa, a diferença social e a diferença sexual.
O famoso texto diz: “Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo nem livre; não há mais homem nem mulher, porque todos vocês são um em Cristo Jesus”. Não se trata de uma negação das diferenças, mas de sua relativização “em Cristo”: o dom de graça que brota da fé em Cristo não se deixa condicionar totalmente nem pelas diferenças étnico-religiosas, nem pelas diferenças de autoridade social, nem pelas diferenças de gênero-sexo. Parece que esse pode ser o fruto de uma releitura tardo-moderna do texto paulino, influenciada pela nova cultura da sociedade aberta.
Mas isso não é totalmente verdade. Mesmo no mundo medieval, os grandes autores captavam nesse texto de Paulo o poder de uma profecia que ajudava a superar, na medida do possível, a força, para não falar da violência, das convenções religiosas, sociais e sexuais.
Podemos ler, muito brevemente, o valor que esse texto paulino teve no pensamento “sobre a mulher de autoridade” em dois teólogos como Tomás de Aquino e João Duns Scotus.
Quando Tomás aborda a questão sobre se uma mulher pode ser ministra do baptismo, ele utiliza um duplo argumento para poder admitir a autoridade da mulher como ministra do rito do batismo: por um lado, recorda o fato de que o batismo tem Cristo como ator principal, e não o ministro. Em segundo lugar, ele pode reconhecer, segundo Gl 3,28, que em Cristo não há nem homem nem mulher, e pode, portanto, admitir que a mulher, mesmo fora de qualquer espaço público, possa ser ministra do sacramento.
Essa dupla passagem indica a possibilidade de uma “mediação feminina” em um contexto de autoridade e sacramental. Obviamente, resta a questão da diferença entre o âmbito privado e o âmbito público, que determina uma rigorosa delimitação da autoridade feminina. Mas esse é o fruto não da revelação, mas da cultura antiga e medieval, que chega até ao século XIX e que será, pelo menos inicialmente, superada pelo reconhecimento da entrada da mulher “in re publica”, que se encontra em 1963 na Pacem in terris.
A diferença sexual, tão profundamente sentida no plano cultural, também não condiciona plenamente a autoridade de Cristo, no qual essa diferença também se torna relativa.
Igualmente interessante é o contexto em que João Duns Scotus utiliza o texto de Gl 3: ou seja, precisamente no início da questão sobre a ordenação da mulher, que, em seu “Comentário sobre as Sentenças”, é desenvolvida paralelamente à questão dos menores: o texto é citado evidentemente em apoio da hipótese positiva.
Duns Scotus rejeita essa possibilidade, afirmando que o caso da ordenação da mulher é um caso de “ordenação nula” e, para isso, utiliza outra passagem de Paulo (1Tm 2,12), em que se exclui a possibilidade de as mulheres poderem ensinar (Duns Scotus remete tal proibição não a Paulo, mas ao próprio Jesus)! No entanto, no momento em que Duns Scotus tem de responder ao argumento positivo oferecido pela passagem de Gl 3,28, sua resposta parece complexa:
“quantum ad gloriam consequendam et ad gratiam habendam, non est distinctio in lege Christi inter foeminam et masculum, quia tantam gratiam habere et tantam gloriam attingere potest illis, sicut iste; sed quantum ad gradum excellentem habendum in Ecclesia, bene decet esse distinctionem inter virum et mulierem in lege Christi, quia hoc consonat legi naturae” [Johannis Duns Scoti, Quaestiones in librum quartum sententiarum, d. XXV, q. II].
“Quanto à obtenção da glória e à recepção da graça, não há distinção na lei de Cristo entre mulher e homem, pois tanta graça podem ter e tanta glória alcançar aquelas como estes; mas, quanto ao grau mais alto a ser mantido na Igreja, é bom manter uma distinção entre homem e mulher na lei de Cristo, pois isso está de acordo com a lei natural.”
A interpretação do texto paulino, em Duns Scotus, não é tanto marcada pela diferença entre público e privado, mas sim entre ativo e passivo. Em comum com Tomás, o doctor subtilis tem uma compreensão da diferença entre homem e mulher em termos de “autoridade”, de subordinação da segunda ao primeiro. Por isso, também ele, como Tomás já fizera, tende a absolutizar uma “evidência cultural, social e civil”, que condiciona a leitura do texto paulino e a solução da questão teológica.
O que ocorreu nos últimos anos pode ser lido como uma hermenêutica mais profunda do texto paulino de Gl 3: as diferenças étnico-religiosas, as diferenças sociais não pesam mais há muito tempo no anúncio do Evangelho, há mais de 100 anos, pelo menos em boa parte do mundo.
Mas a diferença sexual continua sendo percebida e narrada como um “lugar de resistência”, que corre o risco de confundir a defesa da “reserva masculina” com a defesa do Evangelho. O caminho aberto para o acesso da mulher ao exercício da autoridade eclesial, que já superou a reserva masculina nos ministérios instituídos e no direito de voto para as participantes na assembleia do Sínodo dos Bispos, permite que se leia Gl 3,28 sem o condicionamento ideológico de formas culturais prepotentes, reconhecendo que esse condicionamento ocorreu muito mais no passado do que no presente.
É a teologia da reserva masculina que é ideológica, e não a demanda de acesso das mulheres ao ministério da Igreja. Interpretar essa mudança como uma melhor compreensão do Evangelho implica repensar profundamente a relação entre doutrina, disciplina e palavra de Deus.
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A reserva masculina, as mulheres que votam no Sínodo e um texto de São Paulo. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU