27 Junho 2023
"O mundo moderno, mediante grandes revoluções no nível do trabalho e no nível político, mudou profundamente tanto a concepção da autoridade quanto a visão dos sujeitos de autoridade. As novas aquisições que o mundo tardo-moderno obteve em matéria de 'divisão de poderes' e no nível da 'dignidade feminina' já incidiram sobre o corpo eclesial".
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 26-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Initium ut esset, homo creatus est” (Agostinho)
A temporada sinodal, que diz respeito ao caminho universal, aos percursos continentais e nacionais, às vezes também aos itinerários diocesanos, oferece uma oportunidade preciosa para refletir a fundo sobre a experiência sacramental, com retomadas profundas, nas quais se cruzam a reavaliação e a requalificação.
Muito se poderia dizer sobre cada sacramento: das dinâmicas de iniciação e de cura, da relação entre os cinco primeiros sacramentos e as dinâmicas dos dois últimos, matrimônio e ordem. Não há dúvida de que, nos últimos encontros sinodais, precisamente este aspecto ganhou maior atenção: eucaristia e penitência em relação ao matrimônio, nos dois sínodos sobre a família, enquanto hoje se faz notar a demanda de participação no governo da Igreja e no ministério ordenado de leigos casados e de mulheres.
Para entender melhor o que está em jogo nas discussões sinodais, gostaria de mostrar alguns pontos de evidência, em que a doutrina tradicional é forçada a se expressar de forma mais eficaz e mais fiel, de acordo com aquela “índole pastoral” que o Vaticano II providencialmente redescobriu.
Uma primeira advertência, que hoje estamos amadurecendo muito graças ao duplo sínodo sobre a família, pode ser assim expressada. A tradição latina, a partir do século XII, mas não antes, começou a pensar os sacramentos como “coisas”. Certamente “coisas sagradas”, mas mesmo assim coisas. Antes disso, não era difícil encontrar listados não os sacramentos, mas sim os sujeitos envolvidos no caminho de iniciação, de cura e de vocação/serviço.
Pensar a Igreja como o conjunto de catecúmenos, de neófitos, de participantes da missa e da oração, de penitentes, de enfermos, de casados e de ministros a serviço da Igreja parece ser uma perspectiva tão antiga quanto nova, capaz de desinserir todos aqueles mecanismos burocráticos e clericais que bloqueiam a experiência eclesial. Homens e mulheres a caminho rumo à comunhão com o Deus de Jesus Cristo.
O segundo ponto de evidência está ligado à ampliação de uma noção clássica, que sabe desde sempre que os “media salutis”, as mediações da salvação, são “para a humanidade”. No entanto, os homens e as mulheres não são apenas os destinatários da salvação, mas também estão radicalmente envolvidos na mediação. Por isso, deveríamos acrescentar a “propter homines” também “per homines”. A humanidade não está apenas “no fim do sacramento”, mas está em seu interior.
Para alguns sacramentos, isso é extraordinariamente evidente, mesmo que muitas vezes o esqueçamos. Tomás de Aquino repete incansavelmente que, na penitência e no matrimônio, o sujeito não é apenas “destinatário do dom da graça”, mas está implicado com seu corpo, com sua vontade, com sua palavra, dentro da estrutura essencial do sacramento.
E é óbvio que, se um sacramento implica o sujeito em seu interior, ele é afetado pelas mudanças que o sujeito vive no nível histórico, cultural, de consciência e social. O “contrato” que institui humanamente a lógica matrimonial não é um conceito teológico, nem mesmo quando se transforma em pacto ou aliança. O modo de pensar sobre as “partes” do contrato não é autoevidente. E isso muda o modo de viver e de celebrar o sacramento.
O mesmo vale para a penitência, em que os atos do penitente são “matéria” do sacramento. A expressão “atos do penitente” é uma fórmula sintética de dimensões visíveis e invisíveis que o sujeito reelabora a fundo no sacramento. Se isso se formaliza demais, o sacramento evapora. Dizer que os sacramentos são também “per homines” significa assumir a humanidade de Cristo e da Igreja como parte constitutiva do sacramento.
No sínodo dos bispos sobre a sinodalidade, o debate nacional, continental e universal mostra bem algumas coisas importantes: se o objeto do debate é a “forma sinodal” da Igreja, é evidente que o modo de exercer a autoridade e os sujeitos que a exercem tornam-se, para o bem ou para o mal, o centro das atenções.
Na consciência de que se trata de tornar a Igreja dócil aos desígnios do Espírito Santo, as formas que essa docilidade pode assumir dependem de uma compreensão em parte nova de como se exerce a autoridade e de quem são os sujeitos habilitados a exercê-la.
Os desafios vêm, em grande parte, de experiências extraeclesiais. O mundo moderno, mediante grandes revoluções no nível do trabalho e no nível político, mudou profundamente tanto a concepção da autoridade quanto a visão dos sujeitos de autoridade.
As novas aquisições que o mundo tardo-moderno obteve em matéria de “divisão de poderes” e no nível da “dignidade feminina” já incidiram sobre o corpo eclesial. Bastaria ver a progressiva reorganização das “ordens” para perceber que, em duas gerações, a práxis que remontava, grosso modo, a 1.500 anos atrás, e que havia continuado quase de modo imperturbável durante a Idade Média e o início da modernidade, sofreu uma reavaliação radical em pelo menos três pontos relevantes:
- o cursus que iniciava com a tonsura e terminava nos sete graus com o sacerdócio dividido em dois: de um lado, os ministérios instituídos, do outro os três graus do ministério ordenado;
- o episcopado, que por muitos séculos permanecera fora do sacramento, como ofício titular da “potestas iurisdictionis” foi reintegrado como plenitude do sacramento da ordem;
- a distinção entre “potestas ordinis” e “potestas iurisdictionis”, a primeira atribuída ao sacramento, a segunda ao ofício episcopal, é substituída por uma participação diferenciada nos “munera Christi” (profecia, reino e sacerdócio) que compete a toda pessoa batizada, a todo ministro instituído e a todo ministro ordenado.
Essa profunda reavaliação implica também, paralelamente, uma elaboração nova do modo de exercer a autoridade – com uma nova emergência do “colégio” dos presbíteros e dos bispos – e dos sujeitos titulares dessa autoridade.
A queda da reserva masculina nos “ministérios instituídos”, realizada pelo Papa Francisco em 2021, é o último sinal dessa mudança de paradigma na forma de pensar a autoridade e os sujeitos. As mulheres também podem se tornar “leitoras” e “acólitas”.
O efeito parece menor, mas simbolicamente o fato é da máxima importância: atesta uma mudança de perspectiva, que recebe aquilo que o Papa João XXIII havia registrado em 1963, com sua última encíclica, Pacem in terris: ou seja, a entrada da mulher no “espaço público” (mulier in re publica interest). Isso pode mudar toda a teologia católica em torno do sujeito do ministério ordenado.
A pergunta que se fez na história sobre a mulher era dominada pela assimilação cultural do feminino ao incapaz (no nível público). Uma “minoridade pública” do feminino era um dado evidente da cultura comum europeia até o século XIX. A Igreja permaneceu vítima dessa ideologia. Às vezes ela se mostra tão afeiçoada a isso a ponto de confundir a fidelidade a uma ideologia com a fidelidade ao evangelho. Uma mediação será necessária, levando em conta que a passagem da sociedade fechada para a sociedade aberta não é de forma alguma idêntica nos cinco continentes. Por isso, uma palavra “central” passará necessariamente por uma unidade na diferença.
A autoridade da mulher não é um tema que pode ser definido apenas pela tradição eclesial: porque o homem, assim como a mulher, são “animais que têm a palavra” e se definem em relação a Deus, ao próximo e ao mundo, e só nessa relação se encontram e se realizam. Sendo “à imagem e semelhança de Deus”, nem o homem nem a mulher são “programados”. Esse é um núcleo de fé muito mais decisivo do que palavras de autoridade sobre o ministério sacerdotal.
Por esse motivo criatural, a Igreja não tem o monopólio sobre a autoridade da mulher. Pensar assim significaria ficar preso a uma compreensão da Igreja como “societas perfecta” e como “societas inaequalis”, em que as diferenças de status (clérigos/leigos e masculino/feminino) seriam a forma pela qual Deus ainda pode ser acreditado: em suma, uma das formas mais embaraçosas daquele antimodernismo que considera que não ter que lidar com a cultura para alimentar a fé.
A Igreja que se identifica com a “sociedade da honra” desconfia de toda nova igualdade e vincula o evangelho a diferenças sociais cristalizadas. Em vez disso, como “sinal dos tempos”, a mulher “sem complexos de inferioridade” deriva do desenvolvimento histórico moderno e apresenta fatos novos com os quais a Igreja aprende algo essencial. A substância do ministério ordenado é a autoridade de ambos os sexos, não o único sexo de autoridade. Essa antropologia e sociologia da sociedade da dignidade condiciona na raiz o saber sacramental e dogmático sobre o ministério ordenado.
Negar isso significa ou sair da história ou identificar-se apenas com uma história passada. Seria uma redução pesada do significado da criação, na qual “initium ut esset homo creatus est” [para que houvesse um início o homem foi criado] (Agostinho).
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Sínodo e sacramentos: entre a sociedade de honra e a sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU