15 Março 2023
Revelações sobre a suposta gestão inadequada de Karol Wojtyla em casos de abuso sexual enquanto era arcebispo na Polônia reacenderam o debate sobre a pertinência da canonização dos papas.
O comentário é de Isabelle de Gaulmyn, editora-chefe do La Croix International e ex-correspondente vaticana, em artigo publicado por La Croix International, 09-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
João Paulo II é realmente santo? Pode soar como uma pergunta estranha, dado que ele foi canonizado em 2014. Mas é uma pergunta que algumas pessoas estão fazendo, depois que um canal de televisão polonês transmitiu uma reportagem investigativa que criticava o falecido papa pela sua suposta gestão inadequada de casos de abuso sexual clerical ocorridos de 1964 a 1978, quando ele era arcebispo de Cracóvia.
Isso é suficiente para questionar a santidade de João Paulo? Talvez devêssemos distinguir os níveis. Depois de ter negado por muito tempo a relevância dos abusos sexuais na Igreja, os bispos poloneses estão apenas começando a fazer as contas com a extensão desse fenômeno e com seu caráter sistêmico. Devemos, portanto, esperar que seja realizado um verdadeiro trabalho jurídico, eclesial e histórico. O fato de o cardeal Karol Wojtyla ter minimizado a gravidade dos acontecimentos e ter enviado padres criminosos de uma paróquia para a paróquia nos anos 1970 é sintomático de sua geração, sujeito a outros elementos que podem ser descobertos.
Na realidade, ser santo não significa ser perfeito ou não ter defeitos. A história religiosa demonstrou isso amplamente... Mas resta a questão de saber se o papa polonês deveria ter sido canonizado tão rapidamente, sem respeitar o período normal de espera. E isso por outras razões além do modo como ele dirigia a Arquidiocese de Cracóvia.
A questão é se os papas deveriam ser canonizados. No mínimo, a Igreja deveria agir com precaução. Declarar que alguém que administrou e se tornou a realidade encarnada da Santa Sé é santo necessariamente mistura política – e até ideologia – com santidade.
Ao longo do século passado, canonizar papas tornou-se uma “moda”. Antes disso, o fenômeno era relativamente raro. A decisão de canonizar ou não um papa morto é sempre uma questão política que está ligada ao seu sucessor vivo. Assim, quando o Papa Francisco canonizou Paulo VI em 2018, ele o fez para reforçar a mensagem do Vaticano II.
É claro, a Igreja canoniza uma pessoa, não um pontificado. E João Paulo II foi uma personalidade notável. Mas, mesmo assim, é difícil separar as duas coisas, e há grupos de pressão no Vaticano que buscam capitalizar com a beatificação/canonização deste ou daquele papa, por motivos mais políticos do que espirituais.
De forma mais ampla, a tendência para as canonizações papais é um sinal tanto do aumento do poder do papado desde o fim do século XIX quanto de uma falta mais recente de confiança na força do catolicismo.
A pressa em canonizar papas é ainda mais paradoxal porque os santos eram originalmente proclamados pela devoção popular. E o Vaticano até impôs protocolos estritos (como inquéritos diocesanos, períodos de espera, a prova dos milagres...) para evitar a manipulação do processo de santificação.
Hoje, provavelmente também deveríamos rever a tradição do catolicismo de declarar santos, mas não para suprimi-la. Ter santos é uma bela herança do cristianismo popular, uma forma de fazer com que o “povo” se sinta mais ligado a uma instituição que às vezes é muito distante, encarnando-a em uma forma de proximidade humana.
Ninguém é santo pelo que faz, mas pelas qualidades de fé que manifestou. No entanto, se existe uma ligação entre abuso sexual e santidade, ela indubitavelmente se encontra aqui: a crise que estamos atravessando revela de forma aguda o perigo de querer criar “super-heróis” no catolicismo, segundo uma compreensão falha de santidade.
Procuramos “pastores” desesperadamente e seguimos “pais fundadores” cegamente, sob o risco de perder todo o pensamento crítico. A infantilização resultante foi, sem dúvida, uma das causas dos fenômenos de controle que descobrimos nos últimos anos.
Então, santos, sim... desde que lembremos que é para isso que todos fomos chamados!
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João Paulo II é realmente santo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU