19 Janeiro 2023
"Após o Capitólio de Washington em 6 de janeiro de 2021, o ataque à sede da central sindical CGIL em Roma em 9 de outubro de 2021, as bombas de Natal e a ocupação das sedes dos Três Poderes em Brasília, parece que as democracias estejam cada vez mais longe de vencer a disputa que decidiria quem é o melhor aliado do capitalismo e, na melhor das hipóteses, estarão condenadas, nos próximos anos, a conviver com as ameaças do terrorismo de direita", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 18-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que eu pensava em 1º de janeiro? Assisti à cerimônia de posse do presidente Lula, com a constante preocupação de possíveis reações violentas da extrema direita, assombrado pela lembrança do dia 22 de novembro de 1963, quando John Kennedy foi assassinado em Dallas, no Texas.
João Filho, jornalista do The Intercept Brasil, escreveu que “a posse de Lula não é o começo do paraíso, mas a saída do inferno”; mas a continuidade da insana contestação do resultado eleitoral me mostrou que o inferno parecia continuar, resistindo aos importantes pronunciamentos de Lula e também à narração feita de belos e sugestivos símbolos do protagonismo popular.
Em suma, além de assumir a presidência em um contexto econômico desastroso, após as violências, as destruições e os saques do governo anterior, Lula continuava a ser ameaçado pelas mobilizações da extrema direita. Eu não conseguia apagar da memória a tentativa de explodir um caminhão de combustível perto do aeroporto de Brasília em 23 de dezembro e também a continuidade inconteste dos acampamentos que a imprensa unanimemente insiste em definir como legítimas manifestações democráticas que setores das Forças Armadas, da Polícia Federal e da Polícia Militar permitiram, apoiaram e protegeram.
O que eu estava pensando em 8 de janeiro? Depois da ocupação e devastação da sede dos Três Poderes em Brasília, tive a mesma impressão do sociólogo Rudá Ricci. É a hipótese um tanto extravagante de que o governo federal possa ter decidido não enfrentar os invasores, apesar de os serviços secretos terem informado Lula, inclusive nos mínimos detalhes, sobre as reais intenções da marcha "bolsonarista".
Desconfio que Lula e o ministro da Justiça, Flávio Dino, teriam fingido confiar no serviço de segurança pública garantido pelo inconfiável Governo do Distrito Federal e assim teriam levado os "bolsonaristas" - nesse jogo de xadrez que é a política - a se iludir com a facilidade da marcha golpista, fortes e seguros do apoio do governador Ibaneis Rocha, dos militares do quartel-general de Brasília e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR).
Lula e Dino teriam apostado - e era um risco a enfrentar naquela situação extrema - na presunção do adversário de poder dar o xeque-mate: ao contrário, o resultado da violência dos vândalos foi o realinhamento de toda a imprensa e de grande parte da opinião pública contra a extrema direita e a favor do governo.
Em poucos minutos, os "bolsonaristas" e seus apoiadores - escondidos, mas nem tanto - deveriam ter se transformado em perigosos terroristas puníveis com o rigor da lei. Houve, de fato, uma retirada precipitada da frente de oposição da nova direita, com políticos, empresários, militares e policiais preocupados com as consequências políticas e criminais de suas escolhas. Em suma, tive a impressão de uma batalha habilmente e vitoriosamente conduzida por Lula.
Agora, nestes últimos dias, surgem muitas perguntas que ainda permanecem sem resposta. A primeira: é possível a reconciliação nacional quando uma parte significativa da população apoia movimentos não democráticos e vive numa realidade paralela?
A segunda: a nova prioridade que a situação impõe ao Governo - a de defender o país da violência da extrema-direita - não pode atrasar a agenda das políticas públicas urgentes, a começar pelo combate à fome e à insegurança alimentar 15,5% (33,1 milhões pessoas) da população?
A terceira. Ao apoiar as lutas dos indígenas, dos quilombolas, dos agricultores tradicionais, dos movimentos sociais das periferias urbanas, uma questão – ou uma série de questões – ainda mais perigosa se coloca: podemos imaginar um cenário em que a proteção e o controle sobre os movimentos populares no campo e nas cidades aumentarão como forma de salvaguardar a democracia? A narrativa de terrorismo e dos terroristas defendida hoje pela esquerda reformista pode ser ambivalente e tender a atacar todos aqueles que questionam a ordem constituída, tanto da direita quanto da esquerda? A articulação do poder judiciário que hoje ataca a direita não poderia, mais cedo ou mais tarde, voltar-se contra os movimentos que lutam para defender a vida?
A quarta: é possível que as mobilizações da extrema direita possam continuar? Se a repressão do Estado não conseguir derrotar rapidamente a organização subversiva, poderá reforçá-la e favorecer uma maior radicalização da militância de direita?
Quinta pergunta: esse movimento de extrema-direita é necessariamente “bolsonarista” ou poderia sobreviver sem Bolsonaro, com novas lideranças regionais, ainda em gestação?
Sexta pergunta: existe a possibilidade de um cenário ainda mais funesto com a fundação de um novo partido de direita que possa dar unidade e comando a essa base violenta? A Marcha sobre Roma de 28 de outubro de 1922 - que parece ter inspirado a estratégia da extrema-direita em Brasília - foi, de fato, uma manifestação armada subversiva, organizada por um partido, o Partido Nacional Fascista, para favorecer o golpe de Estado e a ascensão ao poder de Mussolini.
Além da conjuntura, existem processos estruturais. O contexto atual é mais uma vez marcado pelo protagonismo político indevido das Forças Armadas, que, após os crimes anistiados da ditadura civil-militar (1964-1985), voltam à ribalta, cúmplices durante quatro anos de um governo antidemocrático e tendencialmente golpista.
Hoje continuam a se impor com a presunção de constituir um poder moderador, mas, ao contrário, acabaram por trair a Constituição de 1988, ressuscitando o papel de partido orgânico de extrema direita, com influência na Polícia Federal e nas Polícia Militar, para combater os movimentos sociais, considerados comunistas e inimigos de classe.
A Nota conjunta dos comandos militares às instituições e ao povo brasileiro de 11 de novembro de 2022 e a nomeação para o Ministério da Defesa de José Múcio Monteiro que, durante a ditadura, foi membro do partido dos militares, a ARENA, mostram exemplarmente a constante capacidade de chantagem das Forças Armadas, que sempre foram um perigo para as instituições democráticas.
Uma última pergunta: existe o cenário para um fim antecipado do governo Lula?
Há um aspecto estrutural a considerar aqui. A direita brasileira não é exceção na América Latina; existe, de fato, uma "internacional da nova direita" que, em todo o mundo ocidental, usa os mesmos códigos, as mesmas acusações contra os inimigos, as mesmas inspirações religiosas cristãs, protestantes e católicas, e é uma direita que usa a violência como instrumento fundamental da luta política. Uma direita, que mostra seu vínculo constitutivo com o sistema capitalista, revelando, sem artifícios e subterfúgios, a violência estrutural do capitalismo.
Após o Capitólio de Washington em 6 de janeiro de 2021, o ataque à sede da central sindical CGIL em Roma em 9 de outubro de 2021, as bombas de Natal e a ocupação das sedes dos Três Poderes em Brasília, parece que as democracias estejam cada vez mais longe de vencer a disputa que decidiria quem é o melhor aliado do capitalismo e, na melhor das hipóteses, estarão condenadas, nos próximos anos, a conviver com as ameaças do terrorismo de direita.
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O Brasil depois do 8 de janeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU