Uma análise dos primeiros passos do novo governo na área ambiental. Desmatamento zero é possível, mas requer ações transversais, retomar mecanismos de fiscalização e desarmar os ruralistas. Valores da floresta serão essenciais.
O novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva já deu passos importantes para o começo da reparação dos destroços deixados por Jair Bolsonaro (2019-2022). Logo no primeiro dia, houve uma enxurrada de decretos presidenciais, reorganizações administrativas e declarações públicas sobre a floresta amazônica, os direitos indígenas e as questões ambientais. Para manter nossos leitores atualizados, SUMAÚMA analisou discursos e documentos para responder a algumas das principais perguntas sobre o que os primeiros dias sinalizam.
A análise é de Jonathan Watts e Talita Bedinelli, integrantes do coletivo Sumaúma, publicada por OutrasPalavras, 11-01-2023.
Eis a análise.
Lula e sua nova ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, almejam o desmatamento zero. Isso representa um avanço importante após o aumento de 59,5% na destruição do bioma ocorrido durante o governo Bolsonaro. É também um avanço em relação aos governos anteriores de Lula, que visavam apenas o combate ao desmatamento ilegal. A concretização dessa ambiciosa meta será um desafio, visto que o modelo histórico de desenvolvimento econômico do Brasil tem sido o de abrir novas fronteiras.
Os cientistas têm alertado que é essencial evitar que a degradação da Amazônia chegue a um ponto sem retorno, quando a floresta já não será mais capaz de se regenerar. Hoje, 17% da Amazônia está desmatada e outros 17% degradados. O ponto sem retorno estaria entre os 20% e os 25% de desmatamento. Muito próximo, portanto. Assim, ainda que seja uma meta difícil devido aos interesses conflitantes da frente ampla que elegeu Lula e das forças contrárias aglutinadas na extrema-direita que se mantém ativa no país, zerar o desmatamento é inescapável. Para que isso aconteça, porém, será necessário muita pressão interna e externa.
Lula não os citou nominalmente, mas afirmou querer “acabar de uma vez por todas com a devastação de nossos biomas, sobretudo a Amazônia”. Esta é uma questão a se observar com atenção. Nos governos anteriores, Lula protegeu a Amazônia em detrimento do Cerrado, que se consolidou como a principal fronteira agrícola do país. Desta vez, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, insistiu que o governo deve investir mais esforços em outros biomas. Isso é importante porque eles estão interconectados, como os órgãos de um corpo humano. A falha de um pode levar ao colapso de outro.
O movimento mais progressista do novo governo é a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, uma das principais líderes das populações tradicionais do Brasil. Isso dá mais poder e uma plataforma maior aos povos originários do que em qualquer outro momento desde que os primeiros europeus invadiram o Brasil há mais de 500 anos. O novo ministério abrigará o principal órgão indigenista brasileiro, a Funai, que foi sensível e sensatamente rebatizada para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em vez de Fundação Nacional do Índio. A mudança era um pedido antigo das lideranças indígenas, já que o termo “índio” é considerado pejorativo e genérico, não representativo da diversidade de povos existentes.
A Funai terá sua primeira líder indígena, a respeitada advogada e ex-deputada Joenia Wapichana – uma guinada em relação a seu antecessor, um delegado de polícia branco ligado ao agronegócio. Em um símbolo ainda maior da mudança, Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado de Raoni Metuktire, o cacique Raoni, a maior referência indígena no Brasil, que denunciou ao mundo a tragédia do governo Bolsonaro e acabou atacado pelo ex-presidente brasileiro e seus seguidores.
“[Os povos indígenas] não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação”, disse o novo presidente em seu primeiro discurso ao público. Anteriormente, ele havia insinuado ao Congresso que seu governo ampliaria as terras indígenas: “Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica. Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas.”
Lula mencionou brevemente a necessidade de “combater as mudanças climáticas” em seus discursos de posse e disse que se envolveria mais com a comunidade internacional. Dentro do governo, os rótulos também mudaram. O Ministério do Meio Ambiente foi renomeado como Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. No entanto, não há um novo superministério que coordenará a política climática em todos os departamentos do governo, como chegou a ser discutido. A ministra Marina Silva afirmou, porém, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que a questão climática será transversal ao governo e haverá estruturas específicas sobre o tema em ministérios como os da Fazenda e da Justiça. Será necessário observar de perto se essa transversalidade, fundamental no momento em que há pouco tempo para evitar o pior, acontecerá na prática cotidiana do poder.
A principal contribuição do Brasil aos esforços internacionais para estabilizar o clima será deter o desmatamento. Se isso for feito, já representará um grande sucesso. O avanço no reflorestamento seria uma conquista adicional. Há preocupações, porém, de que Lula também pressione por uma maior exploração das reservas de petróleo e gás, e há incerteza sobre sua posição em grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas e novas estradas, que são uma ameaça à natureza e ao clima. Lula anunciou em seu discurso de posse o retorno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que nos governos anteriores do PT foi responsável, por exemplo, pela volta das grandes hidrelétricas na Amazônia, como a desastrosa Belo Monte. O que será o PAC de Lula 3 ainda é uma incógnita.
Esta é a pergunta crucial. Em seu discurso de posse no Congresso, Lula deixou uma linha clara: “O Brasil não precisa desmatar para expandir a fronteira agrícola, mas sim replantar 30 milhões (de hectares de) áreas desmatadas. Não há necessidade de invadir nossos biomas.” Ele estava dizendo ao parlamento, dominado pelo agronegócio predatório, que a floresta estaria fora dos planos de expansão e seria preciso voltar sua atenção para terras subutilizadas ou abandonadas, já desmatadas, se quisessem expandir as áreas de cultivo. Para o bem ou para o mal, essa foi uma sugestão de Katia Abreu, ex-chefe do lobby agropecuário, que se tornou aliada do partido de Lula e chegou a ser ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Embora pareça promissor, o diabo estará nos detalhes. Como as “terras degradadas” serão classificadas? Como as proteções serão aplicadas? O governo estará disposto a fechar as brechas que até hoje permitiram que grileiros lavassem e legitimassem terras desmatadas ilegalmente?
Sim, outro dos primeiros decretos de Lula foi revogar uma medida do governo anterior que incentivava o garimpo ilegal em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental. Assessores dizem que nas próximas semanas e meses, as autoridades federais irão ocupar áreas de mineração ilegal, expulsar invasores e destruir equipamentos. Entre os casos mais graves estão as invasões garimpeiras nos territórios Yanomami, Munduruku e Kayapó. A questão, entretanto, pode ser mais complicada e exigir um trabalho de inteligência policial mais efetivo e transnacional, já que a porteira aberta para a mineração ilegal na Amazônia trouxe junto o crime organizado, que comanda o tráfico de drogas e de armas no país e viu no ouro uma nova chance de negócio.
O último relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com dados de 2021, mostra que os conflitos no campo se agravaram. Trinta e cinco pessoas foram mortas naquele ano, contra 20 no ano anterior. A impunidade para crimes ambientais e invasões de terras, maior acesso a armas e as ações e falas do ex-presidente Bolsonaro multiplicaram a tensão na Amazônia. Não tolerar a violência significa reconstruir e ampliar as estruturas de fiscalização, fortalecer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e garantir maior segurança aos povos que lutam pela floresta em pé. Eles podem ser pequenos em termos de poder político e econômico, mas Lula está reconhecendo sua estatura moral e a importância de sua luta. Ele também está restabelecendo o Estado de direito e a presença do Estado na Amazônia: “Incentivaremos, sim, a prosperidade na terra. Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei. Não vamos tolerar a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao país”.
O principal objetivo de Lula é deter, e não reverter, o desmatamento. Deter o desmatamento é crucial e já dá ao Brasil uma posição ambiental mais progressista do que a da maioria dos países do mundo. Mas a crise climática impõe a necessidade também de reversão do que já foi destruído. Um dos decretos assinados pelo presidente ao assumir o cargo restabeleceu a obrigatoriedade do Estado de destinar 50% da receita de multas ambientais ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, que poderá aplicar o dinheiro em reflorestamento e outros projetos. Além de reduzir a fiscalização e, com isso, as multas aos infratores, Bolsonaro também perdoou punições dadas aos invasores da floresta, o que passou uma clara mensagem de impunidade e causou uma perda de mais de 18 bilhões de reais aos cofres públicos, segundo relatório da equipe de transição. Este primeiro decreto é um começo. Mas o governo pode – e deve – fazer muito mais.
Outro decreto do dia da posse de Lula autorizou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) a arrecadar novamente doações para o Fundo Amazônia para ações de combate ao desmatamento e promoção do uso sustentável da floresta. O fundo é financiado principalmente pelos governos da Noruega e da Alemanha, que já começaram a liberar recursos que haviam sido bloqueados durante os anos Bolsonaro. A equipe de transição também pediu ao Congresso mais 536 milhões de reais para o Ministério do Meio Ambiente.
Em comparação com os últimos 4 anos, sim, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Os valores centrados na vida da Amazônia são mais presentes do que nas administrações anteriores de Lula, porque a natureza e o clima se deterioraram drasticamente. Lula enfatizou que as mudanças climáticas, a conservação dos ecossistemas e os direitos indígenas são de interesse nacional. Mas ele precisará equilibrar isso com “crescimento econômico”, mencionado com ênfase em seu discurso. Muitas batalhas políticas estão por vir e é preciso manter a pressão sobre o novo governo para que ele não volte aos velhos modelos destrutivos de desenvolvimento às custas da natureza que marcaram os mandatos anteriores do PT.