As eleições na Itália prejudicarão o Papa Francisco? Um governo de extrema-direita pode atacar sua mensagem central. Artigo de Massimo Faggioli

Giorgia Meloni (Fratelli d'Itália), Matteo Salvini (Lega) e Silvio Berlusconi (Forza Italia) na campanha das eleições italianas de 2018. Hoje, em 2022, é Meloni quem está ao centro da coalizão para ser chefe de governo. Foto: Presidenza della Repubblica | Wikicommons

23 Setembro 2022

 

“Com um governo de extrema-direita na ItáliaFrancisco seria forçado a encontrar uma maneira de conviver com líderes políticos que têm uma visão de mundo muito diferente e até uma linguagem diferente da dele. Um novo governo na Itália poderia facilmente fortalecer a oposição a Francisco e limitar severamente a recepção social e política da mensagem central de seu pontificado”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 21-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

As próximas eleições na Itália podem ser as mais importantes para o país em muito tempo. Eles provavelmente levarão ao cargo sua primeira chefe de governo de extrema-direita, Giorgia Meloni – líder do partido Fratelli d'Italia, que combina o descontentamento com as instituições republicanas com a nostalgia do fascismo de Benito Mussolini. Isto posto, é quase de importância secundária que Meloni também seja a primeira mulher à frente do governo na história italiana.

 

A campanha foi vulgar e inútil, e todas as questões substanciais – da guerra na Ucrânia às mudanças climáticas – foram ignoradas. Enfrentando a rejeição dos valores que informam o sistema constitucional italiano pós-1945, o Vaticano e a Igreja Católica na Itália têm sido extraordinariamente cautelosos em suas declarações. O Papa Francisco tem sido particularmente contido: o papa que confrontou diretamente as promessas de Donald Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México quase não foi ouvido, embora os planos de Meloni e seu aliado, Matteo Salvini, o líder da Lega, não sejam menos cruéis. Mas esta é uma situação diferente, e um Papa Francisco diferente: ele limitou a autonomia da Secretaria de Estado do Vaticano não apenas nas finanças da Santa Sé, mas também na tomada de posições sobre questões políticas. E, ao mesmo tempo, a revista Civiltà Cattolica, uma importante observadora da política italiana, administrada pelos jesuítas e examinada pelo Vaticano, não publicou nada sobre o que está em jogo nessas eleições – um desvio de sua cobertura em 2018 ou das eleições para o Parlamento Europeu em 2019.

 

Em 21 de setembro, poucos dias antes da eleição, a liderança do episcopado italiano emitiu orientações para os eleitores italianos com uma declaração de três páginas intitulada “Ouse ter esperança: um apelo às mulheres e homens de nosso país”. O documento incentiva a participação, lembra aos eleitores a necessidade de cuidar dos marginalizados, lista as muitas emergências que a Itália enfrenta e faz referência ao ensino social católico. Houve também uma declaração no final de agosto de bispos em áreas rurais e montanhosas se opondo a propostas de impostos que aumentariam a distância entre o norte rico e o sul mais pobre. A impressão geral é que os líderes católicos italianos, tanto a hierarquia eclesiástica quanto as organizações leigas, estão sobrecarregados pela lacuna entre a gravidade da situação e as forças à sua disposição, ressaltando a crescente irrelevância política da Igreja Católica na Itália. Nesta campanha, apenas partidos de direita estão tentando conquistar os votos dos católicos. A “falta de abrigo político” dos católicos italianos também pode ser atribuída à dificuldade de comunicação entre Francisco e os bispos italianos.

 

O novo presidente da Conferência Episcopal, Matteo Zuppi, cardeal de Bolonha, também é membro da Comunidade de Sant'Egídio. Alguns membros da comunidade estão concorrendo ao parlamento em uma chapa ligada ao Partido Democrata de centro-esquerda; isso pode estar influenciando o quão livremente Zuppi (eleito na primavera passada pelos bispos, mas por forte recomendação do papa) sente que pode falar durante a campanha. Os direitistas, que abandonaram todas as pretensões de deferência à hierarquia católica, podem levantar a questão de um conflito de interesses.

 

Além disso, Zuppi sabe que alguns clérigos na Itália e no Vaticano gostariam de um governo de direita que, embora anti-imigração, também bloquearia as políticas de estilo ocidental reconhecendo os direitos LGBTQIA+ e endurecendo as disposições da Lei 194 da Itália sobre o aborto. Setores do catolicismo italiano e do Vaticano ficariam bem com um governo italiano seguindo o roteiro do húngaro Viktor Orbán. O recente encontro entre Meloni e o cardeal Robert Sarah, um dos críticos mais sinceros de Francisco, parece confirmar o plano dos partidos de direita de contar com prelados tradicionalistas para legitimar sua ascensão ao poder.

 

A migração pode ser o único ponto real de atrito entre o Vaticano e um governo de direita. Mas pode haver uma reação mais silenciosa da Igreja Católica na Itália. A visibilidade e a influência do catolicismo são muito mais fracas do que na época da ascensão de Berlusconi, trinta anos atrás. Os eventos encenados para a mídia não podem esconder a anemia cultural e sociológica dos movimentos católicos ativos na política italiana (especialmente Comunhão e Libertação). Ao mesmo tempo, pergunta-se se os bispos e o Vaticano estão subestimando o significado de uma vitória da extrema-direita e da ascensão ao poder. A extrema-direita da Itália promove uma ideologia reacionária baseada no “modernismo católico paterno” – um estado robusto que protege e promove a família tradicional (“Deus, pátria e família”) e não é capitalista nem libertário. Mas descrever Fratelli d'Italia de Meloni meramente como “populista” obscurece suas origens e natureza neofascista. Vale lembrar que os neofascistas que chegaram ao governo nacional com Berlusconi em 1994 (então pelo partido Alleanza Nazionale) se esforçaram para se distanciar, pelo menos retoricamente, de Mussolini para ganhar legitimidade. Fratelli d'Italia não tem essa pretensão: as crises democráticas e constitucionais trouxeram à tona a nostalgia do fascismo na forma de apelos ao autoritarismo.

 

Entre 2018 e 2019, a tentativa de Steve Bannon e outros de estabelecer uma ponte para o iliberalismo católico em Roma e no Vaticano não deu em nada. Mas muita coisa mudou desde então, especialmente por causa da guerra na Ucrânia e das falhas ideológicas e geopolíticas que ela expôs. Com um governo de extrema-direita na Itália, Francisco seria forçado a encontrar uma maneira de conviver com líderes políticos que têm uma visão de mundo muito diferente e até uma linguagem diferente da dele. Um novo governo na Itália poderia facilmente fortalecer a oposição a Francisco e limitar severamente a recepção social e política da mensagem central de seu pontificado.

 

 

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