23 Agosto 2022
James Elkins não se define como religioso, mas “consciente do que significa a fé”. Dos Estados Unidos – ele leciona na School of the Art Institute of Chicago – ele explica que se converteu ao judaísmo ainda jovem, na faculdade. Depois, acrescenta, “tornei-me não observante, mas sou profundamente solidário com uma vida religiosa comprometida, porque senti o seu significado”.
A reportagem é de Lara Crinò, publicada em La Repubblica, 21-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É essa consciência, unida à vontade de desconstruir categorias e esquemas da história da arte, que Elkins põe em prática no seu trabalho crítico. Em “Dipinti e lacrime” [Pinturas e lágrimas] (publicado na Itália em 2007 pela editora Bruno Mondadori), ele contestava o museu contemporâneo como um lugar onde os visitantes “olham sem sentir” e evocava a experiência profundamente emotiva, até o choro justamente, que a visão da obra de arte provocava nos espectadores dos séculos passados.
Em outro de seus ensaios, agora traduzido pela editora Johan & Levi e intitulado “Lo strano posto della religione nell'arte contemporanea” [O estranho lugar da religião na arte contemporânea], ele faz ao leitor algumas perguntas que raramente emergem no debate coletivo: por que o Ocidente, que produziu uma altíssima arte religiosa nos séculos passados, parece agora incapaz de incorporar a fé no discurso público? E por que, quando se fala de Deus na arte, é por meio da tela da ironia, da irreverência ou até da blasfêmia?
Eis como Elkins nos mostra que, embora a prática artística no Ocidente aspire a ser totalmente livre, talvez esteja censurando a busca das respostas às perguntas mais profundas.
O que o levou a investigar a relação entre arte contemporânea e religião?
Lecionando na escola de arte de Chicago, percebi com o passar do tempo que alguns dos nossos estudantes gostariam de expressar as suas convicções religiosas nas obras que realizam. Assim, eles incluem nelas imagens de Jesus, de Buda e de outras figuras. No entanto, os professores, que estão sempre prontos para discutir o uso da cor ou da composição, mantêm-se distantes do conteúdo religioso. Acho isso fascinante, porque estamos em 2022: somos felizes em debater identidade, gênero, sexualidade, etnia, nacionalidade e raça, mas a religião continua sendo um continente desconhecido para o discurso liberal.
Você nota que a arte religiosa sobrevive fora do circuito dos museus, das grandes galerias e das feiras. É simplesmente “arte feia” ou ela evolui à sua maneira?
Poderíamos dizer que é “feia” porque, aos olhos de críticos, galeristas, curadores e historiadores da arte, ela é convencional e conservadora. Mas, para sociólogos, antropólogos e historiadores das religiões, é uma parte interessante da cultura visual. Acho fascinante a arte religiosa nas igrejas, nos templos, nas sinagogas. No Irã, eu vi imagens de Jesus pintadas nas mesquitas: eu sabia que existem tradições do Islã que permitem a figuração e sabia que Jesus aparece no Alcorão. Mas não esperava ver um Jesus dançando de uma forma que ele nunca faz nas igrejas católicas.
No entanto, a correspondência entre arte e religião no Ocidente começou a se desfazer há muito tempo: rachou no Renascimento e rompeu-se definitivamente com o Modernismo. Por quê?
Em Florença, a partir de meados de 1420, naquele período que chamamos de Renascimento, os patronos das obras de arte tomaram consciência das capacidades dos artistas individuais. A atenção se deslocou dos objetos de culto, Deus e os santos para aqueles que os representavam. Não é um caso único: os artistas maias eram conhecidos pelo nome, e os artistas chineses eram conhecidos pelos seus diferentes estilos já no século X, mas o que ocorreu no Renascimento foi disruptivo. Quando esse tipo de consciência surgiu, nunca mais foi esquecida.
Na sua opinião, quais artistas representam as etapas dessa laicização da arte ao longo dos séculos?
A maioria dos críticos aponta para Masaccio e, nos séculos posteriores, Velázquez e Manet. Eu, por outro lado, prefiro olhar para Michelangelo: no fim da sua vida, ele considerava ímpia a consciência do seu próprio valor. Ele se debatia entre a vontade de continuar sendo um bom cristão e a de criar obras que se dessem a conhecer pela sua beleza. Os seus desenhos tardios das crucificações e os desenhos realizados para Vittoria Colonna são exemplos comoventes desse conflito interior.
O que vemos hoje, contudo, é o uso dos símbolos religiosos para criar obras irreverentes, ou escandalosas, ou latentemente espirituais.
Do ponto de vista da definição, “religioso” é algo que remete aos símbolos de um culto conhecido. Mas isso não implica um sopro de fé. O próprio Salvador Dalì escreveu que a sua “Crucificação” não deve ser considerada uma obra religiosa. Da mesma forma, penso, por exemplo, em Mark Rothko. O corpus de um artista pode nos parecer espiritual, no sentido de que nos sugerirá algo da fé, sem nos dizer em que o pintor acredita ou em que quem o vê deveria acreditar. Depois, há as obras que provocam escândalo. Penso em “La nona ora”, de Maurizio Cattelan, ou “Piss Christ”, de Andrés Serrano: trata-se de artistas envolvidos na religião e na fé. Afinal, a blasfêmia sempre foi algo que começa na Igreja e se dirige à Igreja. Mas, em tudo isso, faltam as obras que falam diretamente da fé interior.
O circuito da arte contemporânea se moveu no eixo Europa-Estados Unidos. Depois, vieram as potências asiáticas, especialmente a China. E, por fim, os países do Golfo. Isso pode mudar a visão da temática religiosa?
Na China, eu posso discutir esse tema, mas geralmente sou acolhido com o silêncio. Nos Emirados Árabes Unidos e em outras partes do mundo islâmico, vejo tentativas de combinar sentimentos progressistas sobre o gênero e sobre a arte com a ortodoxia na fé. É uma possibilidade que o mundo da arte contemporânea ainda não explorou a fundo.
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A arte tem um tabu: chama-se Deus. Entrevista com James Elkins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU