"Por causa da natureza Androcêntrica dos textos bíblicos, há apenas cerca de 205 personagens femininas nomeadas, em comparação com cerca de 1.181 homens nomeados. Mas o androcentrismo é maior do que os números".
O comentário é da Ir. Christine Schenk, das Irmãs de São José, mestra em Enfermagem e em Teologia. Ela atendeu famílias urbanas durante 18 anos como enfermeira obstétrica antes de fundar a FutureChurch, na qual atuou por 23 anos. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 24-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Resenhar o novo livro da Rev. Wil Gafney, “A Women's Lectionary for the Whole Church” [Um lecionário das mulheres para a Igreja inteira, em tradução livre] (Church Publishing), me encheu de gratidão e alegria. Esse recurso tão esperado é uma rara combinação de um estudo impecável e de usabilidade pastoral. Estudiosa do hebraísmo e do rabinismo e professora de Bíblia Hebraica na Brite Divinity School, Gafney também é sacerdote episcopal e prega regularmente.
Na introdução ao novo “Lecionário”, ela pergunta:
“Como é contar a Boa Nova por meio de histórias de mulheres que muitas vezes estão à margem das Escrituras e geralmente são apresentadas como representantes de más notícias? Como um lecionário centrado nas histórias das mulheres, escolhido com compromissos mulheristas e feministas em mente, enquadraria a apresentação das Escrituras para a proclamação e o ensino?”
Suas perguntas levaram a dois anos de trabalho intensivo no desenvolvimento do Ano A e do Ano W do novo “Lecionário”, e os Anos B e C ainda estão por vir. O Ano W é um lecionário composto de um único ano para denominações que não usam um ciclo de leituras do lecionário de três anos.
Por que um lecionário das mulheres é necessário? Gafney explica. Citando estatísticas do Pew Research Center, ela observa que, dos quase 2,3 bilhões de cristãos no mundo, cerca de 1,4 bilhão usa as Escrituras de denominações que regularmente usam textos lecionários. Estima-se que 60% dos cristãos estadunidenses frequentam igrejas que regularmente usam lecionários.
Por causa da natureza androcêntrica dos textos bíblicos, há apenas cerca de 205 personagens femininas nomeadas, em comparação com cerca de 1.181 homens nomeados. Mas o androcentrismo é maior do que os números.
Em uma recente apresentação da série “Women Erased” do FutureChurch, Gafney ressaltou que, por causa da autoria masculina, “mesmo quando uma mulher está presente, a sua história serve a uma história masculina. Se estiver focada nela, o arco maior ainda é uma história masculina”.
Dadas essas realidades – e o fato de que o Lecionário é um texto catequético (de ensino) – não surpreende que, em sua introdução, Gafney escreva que “muitos dos meus estudantes ou paroquianos não conseguem citar sequer 10 mulheres do cânone bíblico”.
Visto que as comissões do Lecionário – guiadas em parte pelas próprias Escrituras – selecionaram textos predominantemente orientados aos homens, as pessoas raramente ficam sabendo sobre as mulheres bíblicas no domingo – ou em qualquer outro momento.
Para Gafney, “o adrocentrismo, o sexismo e a misoginia nas Escrituras, na sua tradução e na sua pregação e uso litúrgico ferem os homens e os meninos, e as crianças e adultos não binários, tanto quanto as mulheres e as meninas”.
A linguagem exclusivamente masculina sobre Deus reforça a ideia de que os homens são a imagem de Deus, e as mulheres não. A maioria das mulheres e meninas nunca experimentaram o seu gênero sendo associado ao divino. No entanto, para quem teve essa experiência, escreve Gafney, “foi algo profundamente comovente, raro e às vezes profundamente perturbador”.
Focar as histórias das mulheres e meninas bíblicas – sejam elas nomeadas ou não – em um lecionário requer uma quantidade considerável de criatividade científica. A seleção dos textos perdia apenas para a tradução como a tarefa que mais consumia tempo para Gafney. Para esse fim, ela priorizou as passagens nas quais mulheres e meninas estavam explicitamente presentes, ao mesmo tempo em que selecionou textos nos quais elas estavam presentes mas “obscurecidas em agrupamentos plurais e outros, por exemplo, ‘crianças’, ‘israelitas’, ‘povo’, ‘fiéis’ etc.”.
Para estabelecer um “cânone feminino dentro dos cânones mais amplos das Escrituras”, Gafney usou o Accordance Bible Software para identificar passagens que contivessem uma “linguagem explícita sobre pessoas femininas”. Ela também projetou uma segunda pesquisa para capturar construções singulares e plurais para termos femininos, como mãe, filha, irmã, esposa, amante etc. Embora os resultados “não sejam necessariamente exaustivos”, ela os considerou “mais do que suficientes para a tarefa”.
Consumada linguista hebraica, Gafney traduziu todos os seus próprios textos. Ela conhece bem as palavras hebraicas e as construções gramaticais que denotam o gênero feminino. Para construir o novo lecionário, ela combinou temas de cada um dos tempos litúrgicos com textos do seu cânone feminino recém-criado. Em seguida, ela procurou “leituras que compartilhassem uma linguagem temática ou palavras específicas relacionadas com o período litúrgico e a primeira lição” (“leitura”, no contexto católico).
Os resultados da pesquisa foram salvos de acordo com a localização – Bíblia Hebraica (incluindo os sete livros deuterocanônicos)*, Salmos, Novo Testamento – o que facilitou a seleção de textos apropriados para as leituras e os salmos de cada semana. Ela também usou passagens específicas dos Salmos, dos Evangelhos ou das Epístolas que vieram à mente.
As traduções do lecionário de Gafney são acompanhadas por “notas de rodapé” que identificam a língua original e as escolhas de tradução, e “propostas de pregação” que sugerem formas de conectar o texto bíblico às experiências dos fiéis contemporâneos.
O novo lecionário sempre usa um pronome feminino para o Espírito Santo. Em suas notas de rodapé para o Pentecostes, Gafney escreve que, na Bíblia Hebraica, o Espírito de Deus (ruah) é gramaticalmente feminino, um fato que foi obscurecido porque “os tradutores evitaram historicamente construções gramaticais que exigissem um pronome para o Espírito no Primeiro [Antigo] Testamento”. Na Septuaginta (a primeira tradução grega do Antigo Testamento) e nas Escrituras Cristãs, a palavra grega para “espírito” é neutra (pneuma).
O resultado, escreve Gafney, é que, “na amplitude das Escrituras, o espírito é tudo, menos masculino”. Isso mudou quando Jerônimo traduziu a Bíblia para o latim.
Gafney educadamente continua:
“A escolha deliberada de traduzir o espírito em termos masculinos nos textos latinos como a Vulgata reflete compromissos teológicos à parte da gramática dos textos. Se ouvíssemos Jesus falar o trecho de João 14,17 em aramaico, provavelmente ouviríamos algo assim: ‘Este é o Espírito da verdade, que o mundo não pode acolher, porque não a vê, nem a conhece. Vocês a conhecem, porque ela mora com vocês e estará com vocês.”
Para ajudar as mulheres e meninas a “encontrarem Deus em uma linguagem explicitamente feminina”, Gafney usou principalmente pronomes femininos para Deus nos Salmos, assim como pronomes não binários ocasionais. Aqui está um exemplo:
“… Vós que buscais a Deus, que vosso coração floresça!
Pois o DEUS FIEL escuta os necessitados,
Ela não despreza quem pertence a ela e estão aprisionados.
Louvem-na céus e terra,
os mares e tudo o que neles se move” (Salmo 69,32-34)
Seguindo a prática de respeitados tradutores anteriores, Gafney usa títulos descritivos de Deus em vez do “SENHOR” artificialmente construído (com maiúscula e versalete) usado nas traduções convencionais para denotar o santo nome intraduzível, YHWH. Ela evita esse “título masculino comum de propriedade de escravos”, escolhendo, ao invés disso, “preservar a antiga prática bíblica e rabínica de substituir algo que pode ser dito por algo que não pode”.
Assim, diversos títulos biblicamente enraizados para Deus se repetem ao longo do Lecionário. Aqui está uma pequena amostra: AQUELE QUE É, SOBERANO, SABEDORIA, SANTO DOS ANTIGOS, CRIADOR, DEUS QUE ESCUTA, AQUELA QUE É SANTA, VENTRE DA CRIAÇÃO e VÓS QUE SOIS.
Traduções expansivas em termos de gênero são outra inovação de Gafney, em que grupos de pessoas nomeadas nas Escrituras – “israelitas”, “crianças”, “povo” – são expandidos para incluir seus subgrupos de gênero. Por exemplo, “israelitas” é traduzido como “as mulheres, crianças e homens de Israel”. Ela também comumente inclui as matriarcas nas genealogias, por exemplo, Abraão [e Sara], Isaac [e Rebeca], Jacó [e Raquel].
As seleções e traduções de Gafney evitam o antissemitismo, usando “judeus” [judeans] em vez do pejorativo “the Jews”, e ela modula cuidadosamente a linguagem negativa em torno de expressões como “escuro/preto” para se tornarem “sombra” e “desolação”. A linguagem sobre escravos/escravidão é mantida, “ao invés de enfraquecer ou minimizar” essa horrível realidade histórica com a palavra “servo”.
No desenvolvimento do seu projeto, Gafney envolveu 63 “parceiros de conversação” de 14 denominações de língua inglesa em todo o mundo. Nenhum era católico. Isso é triste, mas não é surpreendente, dada a proibição bem publicizada por parte da hierarquia católica em relação à liderança litúrgica feminina. Ela também buscou feedbacks do clero, de seminaristas e de lideranças leigas protestantes com uma variedade de identidades de gênero. Essa ampla consulta ajudou nas escolhas de texto e na tradução, assim como nas muitas sugestões práticas de Gafney. Estas últimas são especificamente projetadas para ajudar as congregações comuns a se envolverem com as Escrituras de formas novas e pessoais, mesmo quando se tornam mais alfabetizadas biblicamente.
Algumas sugestões práticas para denominações protestantes incluem o uso do Lecionário completo durante um ciclo de três anos ou a substituição de um ano no ciclo de três anos atualmente em uso. As sugestões práticas para grupos católicos e protestantes incluem o uso do Lecionário para o estudo da Bíblia, como um recurso para as aulas teológicas e para a oração pessoal e a leitura devocional.
Todos e todas são encorajados a acessar a lista de nomes divinos biblicamente enraizados para Deus, para enriquecer a linguagem teológica na liturgia e na oração comunitária ou pessoal.
Gafney dedicou seu novo Lecionário “para aqueles e aquelas que buscaram a si mesmos nas Escrituras e não se encontraram nos pronomes masculinos”.
Como alguém que muitas vezes não consegue se encontrar nos pronomes masculinos das ofertas litúrgicas de hoje, sou profundamente grata por esta bela e erudita versão de textos que eu amo desde a minha infância, embora nem sempre me visse neles.
À medida que eu – e muitas mulheres e homens como eu – amadurecemos na consciência contemporânea, muitas seleções de lecionários não transmitem mais adequadamente a Palavra dinâmica e eternamente relevante de Deus. Em vez disso, eles correm o risco de se tornar um contrassinal doloroso para o Santo em cuja imagem todos nós fomos feitos. Já escrevi em outro lugar [disponível em inglês aqui] sobre as possíveis soluções para essas preocupações urgentes no contexto católico.
De uma coisa eu tenho quase certeza: o estudo transformador de paradigmas de Gafney influenciará a pregação e o ensino bíblicos nas gerações vindouras.
É hora de os líderes litúrgicos católicos seguirem a liderança dela.