Marta e Maria: Bispo e Amada de Jesus. O esquecimento das mulheres na Igreja

Marta e Maria, com Jesus (Fonte: Religión Digital)

23 Julho 2021

 

“O Evangelho de João nos situa nesse lugar fundamental onde devemos passar da dialética hierarquizada do masculino-feminino à comunidade do discípulo amado na qual, em Jesus, homens e mulheres cumprem uma mesma função: ser amados e amar”, escreve Xabier Pikaza, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 22-07-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis o artigo.

 

Maria, Marta e Lázaro

Os três irmãos (ícone)

Historicamente, em princípio, Maria não parece ser Madalena. É possível que Marta e Maria tenham sido figuras “reais”. Lázaro é muito mais um símbolo de Jesus, como mostra o ícone. Contudo, mais do que a questão histórica, nosso interesse está no pano de fundo simbólico. E assim identificamos Maria com Madalena, e apresentamos os três irmãos como símbolo da Igreja.

A dualidade complementar de funções de Marta e Maria tem sido pouco ressaltada, embora apareça em tradições medievais do sul da França, herdadas de visões orientais, conforme destacou, há tempo, Elisabeth Moltmann-Wendel (esposa de J. Moltmann, 1926-2016) em seus livros: The Women Around Jesus (1951) e Humanity in God (1984), bem como em La mujer en las religiones.

A Igreja atual está recuperando Madalena, mas ainda tem medo de Marta, porque ela representa a “hierarquia”, ou seja, o ministério ativo da fé e da organização comunitária. Para destacar esta função de Marta, quero apresentá-las unidas, uma como “bispo/servidor” e a outra como “amada/orante” da igreja, irmãs (de fé e/ou de sangue), inseparáveis (assim como toda a Igreja, em uma perspectiva feminina). Seu irmão, Lázaro parece se identificar com o próprio Jesus.

Marta, primeira crente, o autêntico ‘Pedro’

Marta significa Senhora, e é o feminino de Marán, o Grande Senhor, que aparece nas primeiras invocações cristãs (Marana tha, Senhor Vem!). A partir do próprio Evangelho de João, seguindo a tendência de simplificar o número de pessoas, a tradição a vinculou a Maria Madalena, e assim sua festa é celebrada no mesmo dia: 22 de julho.

Mas, conforme disse ontem, esta Marta e Maria, irmãs de Lázaro (cf. Lc 10, 39 e Jo 11-12), pertencem a um contexto social e familiar diferente e têm sua própria personalidade. Hoje, quero destacar a figura e função de Marta, que aparece como “senhora” da casa da Igreja (em Lucas) e como primeira crente (em João).

A tradição de Lucas

A tradição lucana conhece a duas irmãs que, em gesto de amizade e serviço, recebem Jesus. Uma, chamada Marta, realiza funções que a tradição costuma chamar de femininas: ocupa-se tenazmente do serviço de alimentação e da casa. A outra é Maria, que se senta aos pés de Jesus escutando sua palavra, como discípula que pode acolher, entender (e espalhar) o Evangelho.

Ao ensinar dessa maneira uma mulher (Maria) e ao torná-la discípula sua e mestra de seu reino, Jesus rompe e supera a tradição judaica porque os rabinos não ofereciam o seu ensinamento às mulheres: só os homens podem entender e espalhar o ensinamento da lei de forma estrita.

De um modo lógico, Marta protesta em sua dupla condição de mulher que é impelida aos trabalhos da casa e de judia que aceita resignada o posto social que a tradição lhe confiou: não é próprio de mulheres o “ócio” da palavra para escutar e aprender a lei ou o Evangelho. Em sua resposta, Jesus defende Maria: “Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10, 41-42).

Certamente, o serviço pelo pão e pela casa é necessário, mas há algo que é ainda mais importante, “pois não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (cf. Lc 4, 4). Também a mulher nasce, vive, desenvolve-se, assim como o homem, no nível da palavra. Por isso, ela se torna discípula de Cristo, para compreender seu Evangelho e transmiti-lo.

Maria escolheu a melhor parte. O próprio Jesus a elevou ao nível de compreensão radical do Evangelho. De agora em diante, ela não deve estar subordinada a seu marido, escutando passivamente a palavra e ocupada nos afazeres mais humildes da casa, enquanto os homens saem para entender e pregar o Evangelho em liberdade. Agora, homens e mulheres são iguais em Cristo. Contudo, nesta cena, Marta não é uma “criada”, está na linha dos dirigentes eclesiais.

Esta visão da mulher que escuta, compartilha e ensina a Palavra foi rejeitada por uma tradição deuteropaulina refletida em 1 Co 14, 34 (as mulheres permaneçam em silêncio nas igrejas, não lhes é permitido falar!) e em Tito 2, 5 (estejam submetidas a seus maridos!). Com sua prudência e habilidade característica, Lucas supera essa postura ao apresentar Maria como plena discípula de Cristo, no nível da Palavra (aberta ao ministério da pregação). Nesse caminho avança João ao fazer de Marta e Maria discípulas exemplares dentro da Igreja.

A tradição do Evangelho de João

João reuniu e reelaborou a tradição do encontro de Jesus com essas duas mulheres, que agora têm um irmão chamado Lázaro (Jo 11, 1). Em um primeiro nível, Marta continua sendo a trabalhadora: serve no banquete que oferecem a Jesus em Betânia, enquanto Lázaro, convidado, senta-se para comer e Maria fica livre para realizar o seu gesto profético de amor e serviço, ungindo Jesus para a morte (Jo 12, 1-8).

Mas, aqui, João introduziu uma novidade: Marta não é simplesmente uma trabalhadora servil da casa. Sendo trabalhadora, conhece melhor do que ninguém os mistérios do reino de Jesus e se apresenta como a primeira que aceita e confessa o seu evangelho de ressurreição e vida. Lázaro morreu e Jesus chega quando já o enterraram. Marta vai ao seu encontro e, assim, inicia um diálogo no qual é possível distinguir três níveis:

- O poder histórico de Jesus. Marta diz: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas ainda agora sei que tudo o que pedires a Deus, ele te concederá” (Jo 11, 21-22). Conforme uma tradição que conhecemos já pelos sinóticos, Jesus aparece como alguém que faz milagres: cura os doentes e ressuscita os mortos.

 

Santa Marta

- Fé escatológica judia. Jesus responde a Marta: “Teu irmão ressuscitará”. E ela especifica: “ressuscitará na ressurreição, no último dia” (Jo 11, 23-24). Esta é a fé fundamental dos judeus (ao menos dos fariseus), conforme Paulo recorda em Rm 4,17, apresentando Abraão como pai e modelo de fé “porque acreditou no Deus que faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem”. Este é o Deus de Marta, a judia. Ela acredita naquele que cria e ressuscita. Por isso, diz a Jesus: “meu irmão ressuscitará no último dia”. Assim é filha de Abraão, autêntica judia.

- cristã. Mas essa fé de Abraão é transcendida por Cristo. Diante do túmulo de Lázaro, o amigo morto, Jesus apresenta a Marta seu mistério: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11, 25-26). Esta é a fé cristã que Paulo apresentou de forma teológica (“acreditamos no Deus que ressuscitou Jesus entre mortos”, Rom 4, 24) e que Jo 11, 26 já traduz de forma cristológica. Mudou o centro da fé e da história dos homens. O que define a existência não é uma esperança (haverá ressurreição final para os justos!), mas a união dos crentes com o Cristo que ressuscitou e, dessa forma, apresenta-se como vida dos homens.

 

Santa Marta, casa e capela do Papa no Vaticano

Marta é, segundo isso, a primeira iluminada, a primeira a conhecer, ocupando assim o lugar que Pedro tem no Evangelho de Mateus. Ela descobriu e sabe que Jesus é a ressurreição já realizada, o ápice da história, a revelação definitiva de Deus. Paradoxalmente, proclama o seu mistério diante do túmulo do irmão morto, no lugar onde parece que se esgota e se consome (até se decompõe) a esperança dos homens. Aí, Jesus faz uma pergunta solene: “Crês nisso?”. E Marta responde, em confissão de fé cristã: “Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo” (Jo 11,27).

Ao responder Jesus desse modo, Marta aparece no Evangelho de João como a primeira cristã verdadeira. Ela reconhece Jesus como vida de Deus que está presente sobre o mundo. Significativamente, João silenciou ou transformou a confissão de fé que a tradição sinótica colocava na boca de Pedro, representante e porta-voz de todos os crentes (cf. Mc 8, 29). Conforme a palavra de Jo 6, 68-69, Pedro segue contextualizando Jesus no nível da esperança judaica, apresentando-lhe como revelador de Deus, mas ainda não o reconhece como messias verdadeiro: o Filho de Deus que dá a vida e é ressurreição dentro do mundo.

Sobre o Pedro vacilante da tradição pré-pascal, superando o Pedro incompleto de Jo 6, 68-69, eleva-se agora Marta e aparece como a primeira crente, a discípula perfeita, que aceita e reconhece a verdade de Jesus como ressurreição e vida dos homens (homens e mulheres).

Está correto que ela continua sendo servidora dos outros, como aponta o texto posterior (Jo 12, 2). Mas, a partir desse serviço, ela é a primeira a expressar e expandir a fé completa. Assim, podemos afirmar que Marta, uma mulher trabalhadora, ocupa em Jo 11,27 a posição que Pedro ocupava na tradição sinótica. Sobre a fé dela Cristo fundou o caminho de sua Igreja.

 

Santa Marta

Marta é a primeira a confessar a fé pascal sobre o túmulo de seu irmão morto, antecipando a ressurreição de Cristo. Por isso, ela não precisa mais reaparecer nos relatos da Páscoa. Não corre até o túmulo vazio (como fará Madalena), nem busca o cadáver do Senhor no jardim pascal do mundo. Confessou sua fé em Jesus que é vida dos homens e sua confissão permanece como tipo e modelo de fé para todos os crentes. A ressurreição histórica de Lázaro, seu irmão, será simplesmente um sinal para confirmar a fé mais profunda e duradoura de Marta, no início da Igreja.

 

Santa Marta no Vaticano (o verdadeiro Pedro)

Quero insistir em “confissão de fé” de Marta (Jo 11,27), pela qual ela aparece como intérprete e testemunha da fé de uma Igreja que superou o risco nacionalista (que está no fundo da confissão de Pedro, em Mc 8) e o risco de uma Igreja que poderia se fechar em si mesma (na linha de muitas interpretações da fé de Pedro, em Mt 16), para se abrir ao conjunto da humanidade.

- A confissão de fé de Pedro (tu és o Cristo, o Filho de Deus, Mc 8 e Mt 11) vai na linha de um messianismo nacional judeu, que Jesus rejeitou (em Marcos), mas que o Evangelho de Mateus reelaborou na linha eclesial, reconhecendo o imenso trabalho de Pedro no desenvolvimento da Igreja primitiva. Esse é o texto que a Igreja de Roma ostentou na cúpula de sua basílica dogmática, no Vaticano.

- A confissão de fé de Marta (Jo 11, 27) pode e deve ser tomada como uma correção e aprofundamento que ela (Marta) introduziu na confissão de Pedro, para abri-la ao conjunto da humanidade, superando assim o risco do fechamento nacionalista (na linha de Marcos) e da possível fixação eclesial do texto de Mateus.

Nesse sentido, é possível afirmar que a Confissão de Fé de Marta assume e interpreta em chave universal, na perspectiva da Ressurreição, a Confissão de Fé de Pedro, que é boa e necessária, mas insuficiente. Nessa linha, o Evangelho de João reuniu e reelaborou a tradição do encontro de Jesus com Marta e Maria (que aparece em Lc 10, 38-42), mas com a intenção de simbolizar nela o conjunto da fé cristã. Agora, elas têm um irmão chamado Lázaro (Jo 11, 1-8).

 

Santa Marta

Certamente, Maria serve na mesa (Jo 12, 1-8) como ministra da Igreja, como um tipo de bispo. Mas, sendo trabalhadora, conhece melhor do que ninguém os mistérios do reino de Jesus e se apresenta como a primeira que aceita e confessa seu evangelho de ressurreição e vida. Lázaro morreu e Jesus chega quando já o enterraram. Marta vai ao seu encontro e, assim, inicia um diálogo no qual é possível distinguir três níveis, que apresentaremos seguindo o mesmo texto:

Marta 1: Fé histórica em Cristo Curador. Marta acredita no poder de Jesus e assim disse: Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas ainda agora sei que tudo o que pedires a Deus, ele te concederá (Jo 11, 21-22).

Marta 2: Fé escatológica judaica. Jesus responde a Marta: “Seu irmão ressuscitará”, e ela especifica: “Ressuscitará na ressurreição, no último dia” (Jo 11, 23-24).

Fé cristã plena. Jesus diz a ela: “Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11, 26). Ela acredita plenamente e responde: “Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo” (Jo 11, 27).

Ao responder Jesus desse modo, Marta aparece como a primeira cristã verdadeira. Ela reconhece Jesus como vida de Deus que está presente sobre o mundo. Ela é, segundo o Evangelho de João, a primeira que confessa sua fé (Sim, Senhor) em Jesus como “ressurreição e vida”.

Marta aparece assim como a primeira crente, a discípula perfeita, que aceita e reconhece o sentido de Jesus como ressurreição e vida dos homens (homens e mulheres). Está correto que ela continua sendo servidora dos outros, como aponta o texto posterior (Jo 12, 2). Mas, a partir do serviço, ela é a primeira a expressar e expandir a fé completa.

Assim, podemos afirmar que Marta, uma mulher, ocupa em Jo 11,27 a posição que Pedro ocupava na tradição sinótica. Sobre a fé dela, Cristo fundou o caminho de sua Igreja. Estes são os elementos de sua confissão crente, no início da Igreja.

1) Sim, creio que tu és a Ressurreição e a vida e que quem crê em ti não morre...”. Crê em Jesus como ressurreição e vida, ou seja, como Deus que é a Vida/Ressurreição, o Deus judeu, o Deus universal, o Deus da vida dos homens... o Deus que não morre.

2) Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus... que veio ao mundo. Dessa forma acredita que Jesus é a encarnação de Deus, na linha de Jo 1, 14.

Marta é a primeira a confessar a fé pascal sobre o túmulo de seu irmão morto, antecipando a ressurreição de Cristo... É a primeira cristã completa do Evangelho de João. Por isso, ela não precisa mais aparecer nos relatos da Páscoa. Não corre para o túmulo vazio (como fará Madalena), nem busca o cadáver do Senhor no jardim pascal do mundo. Confessou sua fé em Jesus que é vida dos homens e sua confissão permanece como tipo e modelo de fé para todos os crentes. A ressurreição histórica de Lázaro, seu irmão, será simplesmente um sinal para confirmar a fé mais profunda e duradoura de Marta, no início da Igreja.

Madalena, a primeira amante da Igreja (como o discípulo amado)

É muito difícil fixar a identidade de Maria Madalena que, conforme a tradição sinótica, teve um papel importante no início da Igreja, como a primeira e mais significativa testemunha da morte e sepultura de Jesus e da descoberta de seu túmulo vazio (Mc 15, 40. 47; 16, 1). Assim aparece, unida a outras mulheres, como transmissora da mensagem pascal de Jesus para os discípulos (Mc 16, 7). Verdadeiramente foi a apóstola dos apóstolos. No início da confissão cristã, encontramos, de acordo com isso, o testemunho de uma mulher (ou algumas mulheres).

 

Maria Madalena

O Evangelho de Lucas parece identificar Maria Madalena como a pecadora que ungiu os pés de Jesus (Lc 7, 36-49). Certamente, ela foi pecadora, pois se diz que Jesus a libertou de “sete demônios”, assim aparece, desde então, como a primeira daquelas que seguem e servem a Jesus no caminho (Lc 8, 1-3). Então, por estar unidos os dois textos, o leitor tem a impressão de que Madalena é a mesma pecadora perdoada por Jesus que, em gesto de agradecimento, limpou os pés dele com suas lágrimas, secou com os seus cabelos e os ungiu com o seu perfume (Lc 7, 36-49). Mais ainda, por associação lógica, relacionada a isso que poderíamos chamar de economia dos nomes, alguém pode supor que esta pecadora/Maria é a mesma Maria, irmã de Marta, de Lc 10, 38-42.

A cena da unção (que muda totalmente o simbolismo de Mc 14, 3-9), foi reelaborada em Lc 7, 36-39 para apresentar de forma exemplar a resposta de uma pecadora arrependida. Assim, cumpre a mesma função que a cena de Zaqueu (Lc 19, 1-10), na qual vemos o novo comportamento de um homem pecador também perdoado e arrependido. Nesse entendimento, Madalena seria uma prostituta arrependida que Jesus acolhe no discipulado, passando a realizar um papel importante no momento crucial da crucificação e da páscoa.

O Evangelho de João seguiu esse caminho “insinuando” (ou tornando possível) que a mulher da unção (aqui, em Jo 18, 1-8) possa ser a mesma Maria Madalena, irmã de Lázaro e de Marta. Nessa linha, queremos nos situar, deixando que o próprio leitor decida e saiba ver as conexões das personagens:

-Maria chora diante do sepulcro de Lázaro, deitando-se aos pés de Jesus, em gesto que parece sempre se repetir (cf. 20, 11-18), como para sinalizar que a amizade mais cordial se encontra unida à veneração do discípulo pelo mestre, ao amor da criatura por seu criador. Significativamente, vendo Maria chorar, Jesus também chora em atitude profunda de comunicação afetiva (Jo 11, 28-37). Este amor de Jesus e Maria não é algo “privado”, na linha do segredo esponsal. É uma amizade aberta na esfera de uma família de amigos, na qual Lázaro e Marta participam do mesmo espaço e caminho de amor (cf. Jo 11, 1-3). É evidente que esta Maria ainda não alcançou a plenitude do amor cristão.

- Maria unge os pés de Jesus em gesto específico de anúncio pascal. Não é a profetisa de Mc 14, 3-9 que unge Jesus na cabeça para o coroar rei messiânico, em nome de Deus. Também não é a pecadora de Lc 7, 36-50 que lava e unge os pés de Jesus em amor agradecido porque foi perdoada. Maria é a crente amiga que acompanha Jesus no caminho de entrega, ungindo seu corpo entregue pelos homens em gesto que antecipa e cumpre o mistério da páscoa.

Diante daqueles que a criticam pelo “desperdício” de perfume, Jesus a defende dizendo que a deixem porque “guardou o perfume para o dia de sua sepultura verdadeira, o dia de sua entrega pelos outros” (Jo 12, 1-8). Tudo nos permite supor que ela completou agora o caminho do discipulado, como Marta havia feito em 11, 27, ao confessar Jesus como ressurreição e vida. Esta unção está repleta de fé pascal.

- Ao lado dessa Maria do choro e unção, aparece com grande força Madalena. Por um lado, o texto parece insinuar que é a mesma Maria: esteve diante da cruz de Jesus (ainda que seu papel fique ofuscado pelo da mãe e o discípulo amado: 19, 25-27). Silenciando um dado da tradição sinótica, ela não aparece como testemunha da sepultura (cf. Mc 15, 47 e Jo 19, 38-42). Vai ao sepulcro no domingo de páscoa, pela manhã, mas, ao contrário de Mc 16, 1, não leva perfumes para ungir Jesus.

A partir daqui, é possível fazer duas leituras do texto. Uma identifica Madalena com Maria, outra as separa. Comecemos supondo que sejam diferentes. Isso realçaria o sentido pascal da unção de Betânia, gesto perfeito e completo em si mesmo. Maria já completou a sua obra, a casa (igreja, mundo) se encheu do perfume, nada falta, estamos na páscoa. Ao contrário, Madalena se mantém ainda a caminho, precisa estar diante da cruz e ir ao sepulcro para confessar sua fé plena no Cristo.

Suponhamos que são a mesma mulher. Neste caso, Maria teria ungido Jesus para o enterro, mas algo ficaria pendente: Quer o cadáver de seu amigo! Observou sua morte (19, 25), vem ao sepulcro para buscá-lo, não precisa trazer perfume (ao contrário das mulheres de Mc 16, 1-4), pois já ungiu o amigo morto. Mas vem. Para quê? Vamos voltar, reler a história.

Esta Madalena não é mais a pecadora que se torna amiga através do perdão. Ela é a amiga original que recebeu Jesus em sua casa (cf. Lc 10, 38-42), que chorou com ele diante do sepulcro de seu irmão morto (Jo 11, 32-33) e que ungiu os seus pés com o perfume do amor (Jo 12, 1-8). Essa unção começou no banquete, com perfume caro deste mundo, que poderia ter sido vendido para dar o dinheiro aos pobres, mas Jesus aceita o gesto de carinho dessa mulher e oferece a ela um novo encontro de amor e perfume para o dia de sua sepultura (Jo 12, 7). Ela comparece, embora agora não apareça como irmã de Marta e de Lázaro, mas como Madalena, ressaltando assim sua própria identidade de mulher independente.

Primeiro vem sozinha, não precisa mais das companheiras que, segundo a tradição, iam com ela (cf. Mc 16,1). Vai sozinha, mas atua como membro fundante da Igreja. Por isso, quando encontra o sepulcro vazio, volta para contar a Pedro e ao discípulo amado, representantes oficiais da comunidade. Quando estes vêm, descobrem o sepulcro vazio e retornam, ela permanece. Tem um encontro com Jesus e precisa cumpri-lo. Por isso, busca seu cadáver no horto.

Marta havia confessado plenamente sua fé pascal (Jo 11, 27), por isso não precisa ir ao túmulo. Maria mostrou seu amor a Jesus, homem messiânico, por isso deve acompanhá-lo até o final. Importa-se com esse Jesus, precisa do contato de seu corpo e, por isso, não para nem diante dos anjos que falam no túmulo (cf. Jo 20, 12-13). Quer Jesus, busca o cadáver do amigo morto porque quer levá-lo consigo e tê-lo ao seu lado (Jo 20, 14-15). Significativamente, assim como diante do túmulo de Lázaro, ela está chorando. Então, revela-se o Mistério da Páscoa na voz do suposto jardineiro.

Diz-lhe Jesus: “Maria!” Voltando-se, ela lhe diz em hebraico: “Rabbuni!” (que significa mestre). Jesus lhe diz: “Não me toque mais, pois ainda não subi ao Pai. Vai a meus irmãos e diz a eles: Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus”. Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: “Vi o Senhor”, e as coisas que ele lhe disse (Jo 20, 16-18).

Novamente, encontramos Maria curvada aos pés de Jesus em gesto de amor e serviço. Mas, agora, o choro diante do túmulo de Lázaro se converteu em gozo pascal e a unção para o túmulo passa a ser o princípio de um encontro permanente e gozoso com o amigo e Senhor ressuscitado. Maria sente que o tempo se cumpriu e parou para sempre. Para ela, não existe maior gozo e nem mistério do que amar Jesus abraçando, no horto, seus pés de amigo e Senhor ressuscitado. Mas Jesus quer que ela realize mais tarefas. Por isso, o encontro se torna o início de um gesto novo de serviço.

Dessa forma, Maria, a vidente antecipada da páscoa, torna-se a primeira de todos os apóstolos. Encontrou Jesus no horto da páscoa. Tocou seus pés, sentiu a força de sua vida. Mas, sobretudo, escutou sua palavra que implica duas coisas primordiais:

- Por um lado, é uma palavra que a separa da experiência imediata: “Não me toque mais!” Muitas vezes, dizemos: a mulher é incapaz de raciocínio (de bom raciocínio), vive no nível da experiência imediata e só acredita naquilo em que toca. Maria, como mulher, deveria ter ficado para sempre no horto, tocando os pés gozosos de Jesus ressuscitado. Assim, nela teria triunfado o toque sobre a palavra, o imediatismo sobre o serviço abnegado aos outros. O texto diz outra coisa: Jesus falou com Maria e ela o escutou. Por isso, deixa de tocá-lo e sai para cumprir sua mensagem, como pessoa nova que vive no nível da palavra e nela acolhe e obedece a Jesus ressuscitado.

- Por outro lado, a palavra de Jesus torna Maria a primeira apóstola da Igreja. Ela deixa o sepulcro, o encontro imediato com Jesus, e vai dizer aos apóstolos aquilo que viu e viveu. Assim, converte o seu amor em gesto de serviço. Ela não é a amiga exclusivista, que se fecha no amor de Jesus. Ao contrário, ela vive em profundidade o amor, como encontro com o Senhor pascal, para depois expandi-lo no conjunto da Igreja.

Assim, relacionamos, tateando, a Maria da unção (12, 1-8) e a Madalena no sepulcro (20, 11-18), supondo que as duas cenas podem ser etapas da maturidade crente de uma mesma mulher que vai entendendo o Evangelho de Jesus e realizando seu caminho de cristã. Outros leitores podem preferir a outra perspectiva, distinguindo as duas mulheres e acrescentando que a primeira Maria (a mulher da unção) completou sua obra e confessou sua fé plena no Cristo expandindo o perfume pascal dentro da casa da igreja já em 12, 1-8, por isso, depois, não precisa ir ao sepulcro para buscar, chorar e acariciar o cadáver.

As duas perspectivas são boas. Em um trabalho como este, não posso optar por nenhuma delas. Seja qual for a opção que se faça, fica clara a importância da mulher (das mulheres) dentro de João. Elas são discípulas perfeitas, são as únicas que fazem o caminho completo da fé dentro do Evangelho (unidas ao discípulo amado ou incluídas nele). É evidente que fazem parte do (são) coração e a fonte de vida missionária da Igreja. Separá-las do que hoje chamamos “hierarquia” (centrada evidentemente em Pedro, cf. Jo 21) vai contra a intenção mais profunda do Evangelho.

 

Marta e Maria, a Igreja inteira (Pedro e o discípulo amado)

 

 

Certamente, o Evangelho de João conhece e acentua as diferenças simbólicas entre homem e mulher, mas não introduz essas diferenças na estrutura da Igreja. Por isso, Cristo não aparece como esposo-homem de uma igreja interpretada como esposa-mulher. Talvez, cabe dizer que Cristo é o esposo transcendente que está além da diferença entre masculino e feminino. Assim, vai até Samaria para transformar todo o povo, simbolizado por uma mulher em busca de amor.

A partir deste pano de fundo, é possível entender alguns dados que são muito significativos para o Evangelho. Sabemos que a Igreja está representada sob a cruz pela mãe e o discípulo amado (Jo 19, 25-27). Certamente, para cumprir sua missão a mãe teve que ser e foi mulher, como pessoa histórica e culminação do povo israelita. Ao contrário, o discípulo amado é homem, mas já não cumpre função específica como tal dentro da Igreja. É sinal e síntese de todos os que acolhem o amor de Jesus e o respondem com amor, sejam homens ou mulheres.

Nesta perspectiva, é preciso entender a dualidade de Pedro e o discípulo amado, especialmente em Jo 21. Sem dúvida alguma, o Evangelho de João reconhece a autoridade de Pedro, mas ela precisa ser inscrita dentro da missão e símbolo do discípulo amado. Por isso, Pedro não está sob a cruz. A Igreja toda está representada diante da cruz pelo discípulo amado que é sinal de todos aqueles homens e mulheres que recebem o amor de Jesus e com amor lhe correspondem, em gesto profundo de vida (Jo 19, 25-27).

 

 

Este discípulo amado é homem, mas não se define como homem, mas como amigo. Por isso, convergem em sua figura os traços masculino e feminino, como a tradição sempre soube ver. A partir daí, e levando em consideração os dados exegéticos fundamentais sobre sua figura, podemos traçar duas consequências que, de alguma forma, podem servir como conclusão a todo o nosso estudo sobre o cristianismo:

- A figura chave da igreja não é a esposa, mas o amigo. Em outras palavras, para João, a Igreja não aparece como “esposa” feminina de Jesus, mas como uma comunidade de amigos, onde homens e mulheres cumprem uma mesma função, tem o mesmo valor e responsabilidade como pessoas. Isso significa que a dialética hierarquizante do masculino e feminino ficou superada em sua raiz: não vale como princípio para interpretar o sentido da Igreja.

Os cristãos já não são esposa (figura feminina e subordinada) de um Cristo concebido como esposo (figura masculina e superior). Os cristãos, homens e mulheres, são amigos de Cristo, o grande amigo, como aponta expressamente Jo 15,15. Neste nível de comunicação profunda, supera-se a diferença hierárquica do masculino e feminino, permanece a amizade e a transparência pessoal humana.

- Para evitar o risco de uma interpretação hierárquica e sexualizada da Igreja, o sinal total dos cristãos deveria ser um amigo (masculino). Estritamente falando, a função do discípulo amado (confidente de Jesus, amigo em quem estão simbolizados todos os amigos) poderia ter sido cumprida por uma mulher, como Maria Madalena.

Mas ao apresentar a uma mulher como a amiga de Jesus e como sinal de todos os cristãos, haveria dois riscos que o Evangelho evita, com prudência: interpretar a união de Jesus com seu discípulo amado como atração sexual de tipo parcial, no plano histórico; e continuar entendendo a realidade eclesial a partir do sinal veterotestamentário de uma esposa hierarquicamente subordinada ao esposo (ratificando assim a subordinação das mulheres aos homens e maridos dentro da história).

Por isso, era normal que todos os crentes (homens e mulheres) fossem simbolizados em um amigo homem (discípulo amado), superando os traços da ruptura sexual e destacando o valor pessoal da amizade de Cristo (válida por igual para homens e mulheres).

Certamente, o discípulo amado é homem, mas sua função não é masculina (patriarcalista), mas pessoal e humana: é amigo de Jesus. Por isso, na comunidade ou casa do discípulo amado encontra seu lugar a mãe de Jesus (a mulher fundante da igreja). Dentro dessa comunidade, também exercem uma função essencial as mulheres que fomos destacando: a samaritana, Marta, Maria. Ao final do Evangelho, sem deixar de ser mulheres, elas já são apreciadas como amigas de Jesus, como crentes (assim como os bons homens, amigos).

O Evangelho de João nos situa nesse lugar fundamental onde devemos passar da dialética hierarquizada do masculino-feminino à comunidade do discípulo amado na qual, em Jesus, homens e mulheres cumprem uma mesma função: ser amados e amar (só neste contexto de igualdade e liberdade completa é possível e se deve reinterpretar, recriar o matrimônio, voltando às raízes de Gn 2, 23-24 e de Gl 3, 28.

A relação esponsal pertence ao mundo originário (Bodas de Caná) e como elemento deste mundo primordial foi assumida e transformada por Jesus, a partir do vinho novo das bodas do reino, ou seja, a partir do novo contexto eclesial de amizade fundamental com Cristo (em Cristo) que define homens e mulheres dentro da Igreja. Mas essa relação “esponsal” não é mais necessariamente de matrimônio homem-mulher, mas de amizade entre pessoas.

Nessas bodas, participam por igual do vinho do amor e a amizade homens e mulheres. A partir daqui se entende a Igreja como comunidade do discípulo amado, onde homens e mulheres podem viver em comunicação pessoal (cf. Jo 15, 15), a partir do grande amigo que é Cristo.

 

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