18 Junho 2021
"Somos os herdeiros de um mundo em que a mulher quase sempre foi definida como pertencente ao gênero da interioridade. A mulher é aquela que se coloca tanto na periferia quanto em uma esfera oculta e secreta. Pensa-se que o seu mundo é o da interioridade, da casa, do âmbito doméstico e, portanto, tudo o que do seu interior sai e vai para o exterior corre o risco de constituir uma subversão, uma revolução", escreve Dephine Horvilleur, rabina do movimento judaico liberal da França, em artigo publicado por Avvenire, 17-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A rabina e estudiosa bíblica francesa fala na Torino Spiritualità. Nas Escrituras o feminino está associado ao mundo da interioridade e deve ser protegido de contaminações externas, mas quando age, muda o curso da história. Em meu trabalho como rabina, como exegeta e em particular no livro Nudità e Pudore. L’abito di Eva (Nudez e Pudor. O vestido de Eva, em tradução livre) tratei do papel tradicional das mulheres no judaísmo e na literatura hebraica, mas isso pode absolutamente ser extrapolado e aplicado a outras tradições religiosas e culturais, não definíveis como religiosas.
Somos os herdeiros de um mundo em que a mulher quase sempre foi definida como pertencente ao gênero da interioridade. A mulher é aquela que se coloca tanto na periferia quanto em uma esfera oculta e secreta. Pensa-se que o seu mundo é o da interioridade, da casa, do âmbito doméstico e, portanto, tudo o que do seu interior sai e vai para o exterior corre o risco de constituir uma subversão, uma revolução. Esse é o caso do cabelo da mulher em muitas tradições religiosas. O cabelo da mulher deve ser escondido ou é considerado um sinal de falta de recato. Mas o que é o cabelo? Algo que de dentro do corpo sai para fora de uma forma mais ou menos selvagem e indomável. E esse algo, que sai de dentro e vai para fora, incomoda quando vem do feminino. O cabelo dos homens tradicionalmente apresenta muito menos problemas no pensamento religioso. Da mesma forma, a voz das mulheres em muitas tradições, bem como em alguns legados do pensamento talmúdico, é considerada imodesta.
No Talmud há uma frase que diz que a voz das mulheres é uma nudez. O que é a voz? Assim como o cabelo, embora de forma diferente, a voz sai da profundidade para fora. E como o feminino é muitas vezes associado ao mundo da interioridade, deve permanecer dentro do corpo, da casa, do grupo, do lar. Deve ser domesticado para evitar que saia. Tudo isso é traduzido e descrito em muitas tradições religiosas, mas não só. Vamos pensar em todas as histórias que contamos às crianças. Hoje, as histórias muitas vezes se tornam desenhos animados, como aqueles de Walt Disney. Vamos pensar nos cenários tradicionais das histórias levadas para a tela, como Rapunzel, as princesas nos castelos ou A Pequena Sereia, que pode cantar nas profundezas do oceano e é um excelente exemplo. É um peixe na água e evolui para um mundo feminino, mas, assim que sai e se aventura fora das profundezas da esfera escura e oculta da água, imediatamente perde a voz e fica muda. Não poderia haver logos melhor do feminino no exterior. Esta é uma metáfora, uma alegoria muito clássica de muitos pensamentos religiosos tradicionais. Rapunzel com seus longos cabelos também é um ótimo exemplo. Ela está presa em um castelo, palácio ou prisão, não está claro. A única conexão que pode ter com o mundo exterior é jogar seu cabelo infinito pela janela. O cabelo é a chave para uma emancipação possível. Ninguém a quer, exceto ela, a heroína que quer se emancipar.
Depois, há outro exemplo que vem de um filme francês de grande sucesso baseado em um conto de fadas. É interpretado por Catherine Deneuve, que faz o papel de Pele de Asno. Todas as garotas francesas da minha geração cresceram com o filme Pele de Asno e suas canções extraordinárias. É a história de uma princesa trancada em um castelo que não pode sair porque sua pele é muito fina. A pele desta jovem do castelo é tão fina que se trata de uma única mucosa, um elemento que não possui derme, que não possui barreira externa. Um dia, porém, a jovem deve se aventurar para fora do castelo para se salvar de uma ameaça que se abate sobre ela. Como ela se aventura para fora? Vestindo a pele de um asno. Não é preciso ir muito longe para entender que a pele do asno é o símbolo de uma certa animalidade, de virilidade em geral. Uma virilidade que se veste. A fábula ainda conta a mesma história: o feminino pertence à interioridade, à mucosa, à fragilidade, à vulnerabilidade que não pode se aventurar para o exterior. Quando isso acontece, é uma ameaça de subversão, de inversão do mundo. Uma ameaça para si mesmo e para o mundo ao seu redor. O feminino deve, portanto, ser coberto com uma pele, uma barreira que pertence ao masculino.
Entende-se que a esfera política é mais masculina nessa representação e, dessa forma, garante-se que a esfera doméstica permaneça inteiramente feminina. Retorna um problema de fronteira que não é totalmente alheio ao que estávamos falando anteriormente. O medo da contaminação, o medo da impureza. Na realidade, os grupos que tentam manter as mulheres no lado dentro expressam assim uma angústia muito tradicional: o medo da contaminação, da porosidade, o medo do que poderia vir de fora e contaminar o grupo. É sobre isso que muitas vezes se baseia a noção do pudor. A ênfase muito forte que se coloca sobre o pudor das mulheres nas sociedades tradicionais muitas vezes tem a ver com sua representação como seres um pouco mais porosos, seres mucosos, que têm um pouco menos derme e barreiras do que os outros, os homens.
Em meu livro, analiso a tradução do hebraico de um termo que às vezes é encontrado na Bíblia como 'nudez' e que é sistematicamente associado ao feminino. Em muitas passagens da Bíblia, vemos que a mulher é censurada por sua nudez. Ela está sempre um pouco mais nua, ainda que seja com a própria anatomia. Enquanto um homem pode mostrar seu braço, coxa, perna sem que isso represente um problema de tentação ou nudez, quando se trata do corpo da mulher, surge imediatamente um problema de falta de recato. Na Bíblia se diz ervah. Um problema de nudez. Mas se buscarmos a tradução exata do termo ervah, se analisarmos a origem, a etimologia e as demais ocorrências do termo em muitas passagens da Bíblia, descobrimos que ervah, traduzido como nudez, significa mais exatamente capacidade de secretar, isto é, fazer sair um líquido de um lugar para outro.
Entende-se, assim, como elaboro mais detalhadamente no livro, que o feminino é sempre suspeito de ser um pouco fluido, de não ter um caráter hermético e de ser demasiado aberto, permeável ao perigo, à contaminação, ao encontro com uma alteridade que poderia nos alterar e arruinar. Não sei se funciona também em outras línguas, mas em francês a palavra 'alterar' é fascinante. Significa 'arruinar', 'desgastar', mas na raiz da palavra alter se entende claramente a alteridade, o Outro. Alterar significa acreditar estar se desgastado ou arruinado pelo encontro com a alteridade, com o Outro. Muitas vezes, manter o feminino dentro da esfera doméstica e do grupo significa manter a distância ou tentar se livrar do medo da contaminação, tentando proteger as fronteiras. As fronteiras da família ou do grupo.
Alguns poderiam pensar que isso é exagero e que na realidade existem muitas mulheres com papéis extraordinários nos textos. Muitas vezes, quando se pensa no feminino e na Bíblia, mencionamos heroínas que mudaram a história e que marcaram nossas leituras. Citamos personagens-chave como as matriarcas Sara, Lea, Rebeca, Raquel. Profetisas como Miriam ou mulheres como Rute e Esther. Na tradição cristã, Maria certamente é citada. Todas mulheres que mudaram a história. E é verdade: as mulheres desempenham um papel muito importante na literatura bíblica.
Mas é preciso sempre conseguir perceber, em sua maneira de mudar a história na Bíblia, como elas procedem. Na maioria dos casos, elas agem disfarçadas, com um ardil. Elas nunca possuem um poder político ou um poder de ação que lhes é acordado. Elas têm que encontrar um caminho para um poder de ação usando as únicas ferramentas de que dispõem: o estratagema, o ardil, uma forma de manipulação ou sedução. Muitos exemplos podem ser dados. Rebeca, por exemplo, manipula seus filhos e seu marido Isaac para decidir quem será o herdeiro da história. Eu poderia citar Rute, que seduz Boaz para ter uma descendência, que depois será a linhagem do Messias.
Poderíamos citar ainda outros personagens. Tem uma personagem bíblica de que gosto muito e que se chama Tamar. Tamar é nora de Judá e é viúva. Ela espera que o sogro lhe dê um noivo para ter uma descendência, ter filhos. Mas como seu sogro a renega, ela se disfarça de prostituta para seduzi-lo. Há uma forma incrível de transgressão no texto e é com os filhos de Judá e Tamar que se inicia a linhagem messiânica, a estirpe da salvação e da redenção. Poderíamos multiplicar os exemplos das personagens bíblicas femininas que mudam o curso da história, permitindo que a história continuasse diante de uma ameaça de esterilidade ou de uma ameaça macabra sobre a continuação do conto. Aparece uma personagem feminina que muda o mundo e a história, mas só pode fazê-lo agindo com uma armadilha, um disfarce, uma manipulação que é o único poder de que as mulheres podiam dispor.
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A revolução das mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU