"A decisão do Papa Francisco mostra que a igreja é uma comunidade de homens e mulheres e que não podemos subestimar o fato de que a liturgia, a teologia e a ação pastoral se desenvolvem com base em códigos linguísticos e simbólicos marcados pela diferença sexual", escreve Serena Noceti, teóloga, eclesióloga e vice-presidente da Associação Teológica Italiana (Ati), em artigo publicado originalmente na edição 2/2021 da revista Il Regno, 15-01-2021. A tradução é de Enzo Santangelo, dos padres combonianos no Brasil.
Domingo 10 de janeiro, quando a liturgia católica celebrava a festa do Batismo de Jesus, Papa Francisco assinou o Motu Proprio “Spiritus Domini”, com o qual apresentou uma pequena, mas substancial modificação do Código de Direito Canônico: com a supressão do termo "viri" do cânon 230 § [1], abre-se a possibilidade de conferir os ministérios instituídos do leitorado e do acolitato também às mulheres.
Neste cânon, o Código de 1983 reconhece o que o papa Paulo VI decretou no Ministeria Quaedam (15 de agosto de 1972) , com o qual foram suprimidas as "ordens menores" do hostiariato, do exorcistato e do subdiaconato, recebidos por quem se preparava para o ministério sacerdotal, e foram estabelecidos os dois "ministérios instituídos" do leitorado e do acolitato [2].
O motu proprio de Paulo VI mostrava claramente que estes são ministérios leigos, mas o papa, referindo-se à “Venerabilis Traditio”, reservou somente a pessoas de sexo masculino a possibilidade de exercê-los.
Durante estes 48 anos, houve numerosos e relevantes pedidos para modificar esta reserva, formulados quer por teólogos e teólogas, quer por bispos. Pareciam contraditórios o apelo ao fundamento batismal desses ministérios e a exclusão das mulheres. Por outro lado, a difusão limitada e o "fracasso" parcial desses ministérios constituídos dependem não apenas do fato de que eles ainda estão amplamente recebidos e vividos como passagens para a ordenação diaconal e presbiteral (retomando assim um renascimento de fato das ordens menores e mantendo, disfarçada, a lógica do cursus), mas, sobretudo, pelo fato de operar com uma espécie de "duplicação" de “ministérios de fato”, que são exercidos principalmente por mulheres [3].
No final do Sínodo de 2008, sobre a Palavra de Deus na vida da Igreja, foi feito o pedido de admitir mulheres ao ministério instituído do leitorado (Propositio, n.17) e, mais recentemente, o Documento Final do Sínodo para a Amazônia solicitava o leitorado e o acolitato para as mulheres (n. 102).
Na Carta do Papa Francisco ao Card. Ladaria, Prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé, que acompanha e motiva teologicamente o Motu Proprio Spiritus Domini, é expressamente mencionado o Sínodo para a Amazônia.
Sobre a possibilidade de acesso das mulheres ao leitorado e acolitato, muitos foram aqueles que falaram de uma "ratificação" da prática litúrgica pós-conciliar: as mulheres já proclamam as leituras da celebração eucarística; já vemos todos os domingos no serviço no altar ministras extraordinárias da comunhão [4].
Em muitas comunidades cristãs no mundo, as celebrações dominicais sem sacerdote são animadas por mulheres [5].
Teríamos uma confirmação – mínima, minúscula e atrasada – de uma prática já existente. Na verdade, o Motu Proprio abre um cenário inédito. Sem dúvida, é fruto da caminhada da Igreja pós-conciliar que vê as mulheres como sujeitos nas paróquias e nas dioceses, com múltiplas formas de serviço pastoral e ricas experiências de ministerialidade: as mulheres de hoje são portadoras de uma palavra falada com autoridade, competente, pública, que contribui para a construção e o amadurecimento do corpo eclesial. Mas não nos deparamos com uma simples ratificação: há uma diferença entre o "ministério de fato" do leitor, da leitora, do ministro ou ministra extraordinária da comunhão, até hoje exercido por batizados e batizadas, e o "ministério instituído" do leitor e acólito, até hoje reservado somente aos batizados de sexo masculino.
No primeiro caso, temos uma atividade eclesial, estável e de serviço reconhecido, exercida por um tempo determinado (geralmente um ou mais anos), com base em uma delegação ou mandato do padre ou do bispo; no segundo caso, temos um ministério conferido pelo bispo com um "Rito de instituição" (rito litúrgico não sacramental não repetível) e exercitado "stabiliter" (CDC, cân. 230§1) na igreja local [6].
A diferença não se dá no plano da função ou atividade, mas no plano da raiz litúrgica e de uma identidade ministerial peculiar. Não se trata tanto de "o que se faz", que parece comum, por exemplo, para leitores de fato e instituídos, mas de “o que se é" na e para a comunidade cristã: a diferença é dada por um carisma reconhecido pelo bispo, pela subjetividade eclesial definida para um serviço específico na igreja, pela estabilidade dessa identidade no e para o corpo eclesial.
Como esclarece a Carta do papa ao card. Ladaria, o passo dado é portador de um rico significado eclesiológico, no espírito de uma recepção mais profunda da visão conciliar do povo de Deus, em que os leigos são vistos como sujeitos corresponsáveis da vida e da missão da igreja.
Em primeiro lugar, temos aqui um verdadeiro reconhecimento do fato que, pelo batismo, todos os christifideles laici, homens e mulheres, participam dos tria munera Christi (a Carta do papa faz referência em particular aos munera sacerdotal e régio) com igual dignidade e comum responsabilidade, sem que sejam justificáveis exclusões de gênero no exercício de ministérios leigos (de fato ou instituídos): temos - enfim! - a superação de um fator discriminatório, não justificável no plano teológico; uma "reserva" em contraste com a igualdade radical de todos os leigos, afirmada no Código de Direito Canônico.
Em segundo lugar, com Spiritus Domini o rosto ministerial da igreja é enriquecido: nascem novas "figuras ministeriais", inexistentes até hoje, de mulheres leitoras e acólitas. Pela primeira vez, então, poderemos ouvir um bispo afirmar solenemente a uma mulher: "Receba o livro das Sagradas Escrituras, transmita fielmente a Palavra de Deus, para que leve força e vigor no coração dos homens"; pela primeira vez, poderemos ver outro bispo entregar a patena a uma mulher, com as palavras: "Receba a bandeja com pão para a celebração da Eucaristia e sua vida seja digna do serviço à mesa do Senhor e da Igreja" [7].
E então, veremos concretamente, domingo após domingo, exercer esses ministérios para que contribuam para a realização da ação litúrgica. Não se devem desvalorizar nem o poder simbólico da ação ritual para o imaginário eclesial, nem a performatividade das palavras do Rito da Instituição, que configuram a identidade batismal de alguns/as a serviço da Igreja e, portanto, redefinem sua imagem.
A consciência coletiva e a forma ecclesiae são plasmadas na celebração. A liturgia eucarística é uma obra de Deus na igreja e está estruturada como uma coreografia em que interagem pessoas, corpos, linguagem verbal e não verbal. As vestes litúrgicas, os sinais, as ações realizadas e as palavras faladas, a colocação espacial na sala litúrgica ou no presbitério falam e moldam a nossa experiência eclesial e celebrativa.
No caso de leitores e acólitos, nos deparamos com ministérios relacionados com a actio litúrgica, em particular eucarística, mas não separáveis ou desligados do resto da vida da comunidade; já Ministeria Quaedam referia-se ao compromisso pastoral, em campo formativo, ligado a estes dois ministérios: os leitores não só proclamam a Palavra de Deus na assembleia litúrgica, mas educam as crianças e os adultos na fé, promovem a formação bíblica, são chamados a anunciar a mensagem da salvação de forma significativa e incisiva; os acólitos podem preparar quem anima a liturgia, coordenar grupos litúrgicos e ofícios, as visitas aos idosos e aos doentes.
Por fim, reafirmando claramente o fundamento batismal dos ministérios instituídos e sua natureza dos ministérios exercidos por leigos, a Carta do Papa Francisco ajuda muito a superar a ideia difundida no clero de um cursus honorum "sacral".
As ordens menores foram suprimidas por Paulo VI em 1972, mas o fato de que se tornem leitores e acólitos quase exclusivamente jovens em preparação para o presbitério ou adultos em preparação para o diaconato não favoreceu a superação de uma interpretação hierarquizante do ministério. A sucessão de vários ministérios e os interstitia (o tempo mínimo de exercício previsto antes de receber outro ministério) tomaram forma entre os séculos III e V [8], para garantir o discernimento dos candidatos ao sacerdócio e ao episcopado, evitando tentações de carreira, e uma formação progressiva no serviço ministerial, mas há séculos está se afirmando a percepção de um caminho ascensional que, um degrau de cada vez, prepara para receber um poder sagrado, com separação progressiva do resto do corpo eclesial.
A experiência adquirida no período pós-concílio e as afirmações magisteriais (Ministeria Quaedam e agora Spiritus Domini) projetam a visão de uma comunidade cristã em que, ao lado e junto com os ministros ordenados (bispos, presbíteros, diáconos), que guardam a apostolicidade da fé e servem à unidade do corpo eclesial de maneiras específicas conforme as três figuras ministeriais (LG 24), atuam também leigos e leigas que, atendendo às atuais necessidades pastorais e graças aos numerosos carismas que o Espírito doa, exercem uma grande variedade de “ministérios de fato” e mais definidos “ministérios instituídos” (que até agora são dois, mas poderiam ser muitos outros).
"O plural é essencial. Isso significa que a igreja de Deus não é construída apenas com os atos do ministério oficial do presbiterado, mas com uma infinidade de serviços diferentes"[9].
A perspectiva é uma sinergia entre ministério ordenado, constitutivo da Igreja e exercido hoje de acordo com uma estruturação tripartida de bispos, presbíteros, diáconos (LG 28), e ministérios de leigos e leigas exercidos na igreja; em alguns casos (ou seja, para ministérios instituídos), isso acontece de forma estável e baseada em um Rito litúrgico específico em que a igreja local reconhece no batizado/a a presença de um carisma específico, uma preparação adequada para o serviço eclesial, e o/a coloca a serviço do corpo eclesial para ajudar os ministros ordenados com uma forma ministerial específica.
A carta de acompanhamento indica os passos que a Congregação para o Culto divino e a disciplina dos sacramentos e as conferências episcopais devem implementar: a primeira deverá adaptar os textos e ritos do Pontifical romano, as segundas estabelecer critérios de discernimento e preparação para candidatos/as. Neste ponto, mulheres "adequadas" (como se expressa Spiritus Domini), já empenhadas talvez há anos nos serviços litúrgicos, com competências teológicas e pastorais, após o devido discernimento de seus bispos, podem ser constituídas leitoras e acólitas.
Seria importante que elas fossem escolhidas também entre aquelas que exercem um ministério de fato na animação e formação bíblica (animadoras de grupos bíblicos, responsáveis pela pastoral bíblica diocesana, biblistas, etc.) ou na formação litúrgica e na preparação da liturgia (por exemplo, coordenadoras de comissões litúrgicas, diretoras de escritórios litúrgicos, etc.), de modo que seja evidente para todos o vínculo constitutivo entre a vida da comunidade (com seus múltiplos ministérios) e a celebração eucarística, momento maximamente revelador e realizador da comunhão eclesial. Isso, favorecendo uma ligação mais estreita entre liturgia e vida comunitária, ajudaria a evitar essa clericalização dos leigos ou aquela sacralização de papéis que alguns indicaram como resultados arriscados desta decisão papal.
De fato, não faltariam ministérios de fato exercidos por leigos e leigas; apenas alguns e algumas se tornariam leitores/as e acólitos/as; o rosto da comunidade reunida para a celebração atestará a riqueza e a variedade dos diversos ministérios presentes.
O acesso das mulheres aos ministérios litúrgicos do leitorado e acolitato deveria, então, levar ao passo seguinte: como já indicado em Ministeria Quaedam, as conferências episcopais podem definir outros ministros instituídos em resposta às necessidades específicas e às diretrizes pastorais locais.
No Documento Final do Sínodo para a Amazônia fazia-se referência específica à figura de homens e mulheres "dirigentes de comunidade" (n. 102), para animar a vida de comunidades cristãs distantes de centro paroquial, ou para orientar e coordenar as atividades pastorais em grandes regiões onde se encontram dezenas ou centenas de pequenas comunidades. São numerosos os batizados que já exercem este ministério de fato, com um mandato do bispo; seria oportuno que seu carisma pessoal e seus serviços, já reconhecidos pelas comunidades em que atuam, fossem reconhecidos e definidos com um “Rito de Instituição”, que os coloque stabiliter a serviço da igreja local, sem depender de um mandato ad tempus. Esta etapa, longe de ser simbólica, garantiria consistência e continuidade na vida pastoral de milhares de comunidades [10].
Por fim, é preciso reiterar que esses passos dados sobre os ministérios instituídos não freiam a reflexão sobre o diaconato feminino [11]. Já são numerosos os estudos, no campo da história da igreja, da liturgia, da teologia sistemática, que provam que o Rito com o qual as diaconisas foram constituídas nos primeiros séculos foi uma verdadeira ordenação ministerial e não uma oração de bênção, para um ministério leigo comparável aos que serão chamadas de “ordens menores”: pessoalmente, acredito que se trate de um ministério ordenado não sacerdotal, não comparável aos que hoje chamamos de "ministérios instituídos".
Mais profundamente, o acesso das mulheres aos ministérios instituídos solicita as comunidades cristãs a repensarem a ministerialidade de todos e todas e o específico dos ministérios ordenados, além de reconhecerem quão profundamente foi recebida a visão eclesiológica do Vaticano II precisamente no desenvolvimento e amadurecimento dos numerosos e variados ministérios de fato dos leigos.
A decisão do Papa Francisco mostra que a igreja é uma comunidade de homens e mulheres e que não podemos subestimar o fato de que a liturgia, a teologia e a ação pastoral se desenvolvem com base em códigos linguísticos e simbólicos marcados pela diferença sexual. Em termos de diferença de gênero, como em termos de diferença entre ministros ordenados, instituídos e de fato, a igreja vive e age "uma na pluralidade".
[1] PAULO VI, Ministeria Quaedam, in Enchiridion Vaticanum 4 / 1749-1770.
[2] Cf. A. BUGNINI, La riforma liturgica (1948-1975), CLV - Ed. Liturgiche, Roma 1997, 703-726. 727-736. O documento é publicado no final de um longo processo, motivado por razões não imediatamente pastorais, fruto de um difícil compromisso entre as diferentes formas de pensar a preparação para o ministério ordenado.
[3] Cf. S. NOCETI, Ministeri istituiti, le ragioni di un insuccesso, em Rivista di pastorale liturgica 50 (2012) III 33-38; T. CITRINI, La questione teologica dei ministeri, em AA.VV., I laici nella chiesa ¸ LDC, Torino Leumann 1986, 61-62; G. ZAMBON, Non tutti i ministri di Dio sono sacerdoti ordinati. A 30 anni dalla Ministeria Quaedam, em Credereoggi 23 (2003) 133, 107-108.
[4] Cf. Nota do Pontifício Conselho para os textos legislativos sobre a possibilidade de acesso das mulheres ao serviço no altar (ASS 84/1994).
[5] Cf. A. GRILLO - E. MASSIMI (ed.), Donne e uomini nel servizio della liturgia, CLV - Ed. Liturgiche, Roma 2018; M. KUNZLER, Carisma e liturgia. Teologia e forma dei ministeri liturgici laicali, Eupress FTL, Lugano 2006; A. CALAPAJ (ed.), Liturgia e ministeri ecclesiali, Edições Litúrgicas, Roma 2008.
[6] Cf. F. POLLIANI, I ministeri nella chiesa. Il sacramento dell’ordine, Ed. S. Antonio, Beau Bassin 2018; G. CAVAGNOLI, I ministeri nel popolo cristiano: prospettive teologico-pastorali del mp Ministeria quaedam, em Rivista Liturgica 73 (1986) 305-329; T. CITRINI, Sul fondamento teologico dei ministeri liturgici non ordinati, em La Scuola cattolica 112 (1984) 435-448.
[7] Cf. A. LAMERI, La traditio instrumentorum e delle insegne nei riti di ordinazione, CLV - Ed. Liturgiche, Roma 1998, 30-31. 127-131. 163-165.
[8] Cf. J.St.H. GIBAUT, The Cursus honorum. A Study of the Origins and Evolution of Sequential Ordination, Peter Lang, Nova York 2000; A. FAIVRE, Naissance d’une hiérarchie. Les premières étapes du cursus clericalis, Beauchesne, Paris 1977.
[9] Y.M. CONGAR, Ministeri e comunione ecclesiale, EDB, Bologna 1976, 17.
[10] Cf. S. NOCETI, Una chiesa tutta ministeriale. Il Sinodo per l’Amazzonia e la riflessione sui ministeri che “fanno chiesa”, em Urbaniana University Journal 73 (2020) II, 117-148.
[11] Cf. M. SCIMMI, Le antiche diaconesse nella storiografia del XX secolo, Glossa, Milão 2004; G. MACY - W.T. DITEWOG - PH. ZAGANO, Women Deacons. Past, Present, Future, Paulist Press, New York 2011; S. NOCETI (ed.), Diacone, Quale ministero per quale chiesa?, Queriniana, Brescia 2017.