16 Julho 2020
“Estou convencido de que somente através de uma abordagem multidisciplinar e dialógica, orientada para o progresso, mas também para salvaguardar a dignidade humana, esse momento histórico difícil pode ser enfrentado, olhando com esperança para o futuro": as palavras do cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, escritas para a apresentação da obra “Pandemia e resilienza. Persona, comunità e modelli di sviluppo dopo la Covid-19”, (em tradução livre Pandemia e resiliência. Pessoa, comunidade e modelos de desenvolvimento após a Covid-19, Cnr Edizioni, Roma, 2020) expressam o significado do trabalho realizado nas últimas semanas pela Consulta Científica do Átrio dos Gentios, presidida por Giuliano Amato.
De fato, o organismo realizou internamente um diálogo aberto e articulado, que encontra uma conexão natural com a presente seção do "L'Osservatore Romano", compartilhando seus objetivos e as instâncias iniciais. A obra, editada por Cinzia Caporale e Alberto Pirni, gira em torno do documento que lhe dá o título, é uma coletânea de contribuições escritas com o desejo de "ir além do primeiro ato da crise causado pelo contágio do novo coronavírus".
Giuliano Amato escreve no prefácio: “São muitas as propostas que apresentamos para que esses objetivos sejam alcançados e estamos felizes em ver que, para várias delas, estamos longe de estar sozinhos. Aponto aqui apenas uma, que é a que tiramos da experiência que acabamos de concluir. Nos longos dias que passamos trancados em nossas casas, com saídas contingenciadas e aprendendo a usar a máscara para chegar perto das outras pessoas, também aprendemos o quanto a coordenação de muitas pequenas escolhas individuais possa contribuir para o bem comum. É um ensinamento que precisa ser conservado e praticado em larga escala para o futuro”. Entre as várias intervenções reunidas na obra, "L'Osservatore Romano" publica hoje aquela intitulada "Reflexões sobre o futuro". Outras contribuições serão publicadas nos próximos dias, conforme acerto com o Átrio dos Gentios.
O texto é de Emma Fattorini, professora de História Contemporânea da Universidade La Sapienza, Roma, publicado por L'Osservatore Romano, 14-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Nada será como antes" e realmente "sairemos melhores"? A lição da história - como se costuma dizer - não nos indica isso, mas sim o risco de sairmos piores. Ou com os mesmos vícios, se não tivermos visão e muito pragmatismo. A defesa da terra comum, o apelo da Laudato Sí', o sentir-se mais unidos em um único destino planetário, prontos para a empatia e a benevolência, tudo isso será muito difícil de entender para quem tem que lutar contra a miséria material, a solidão e a degradação social. Por experiência existencial e espiritual, estamos profundamente convencidos de que ex malo bonum. "O bem pode sair do mal" não é, no entanto, um axioma determinístico, como argumentava o próprio S. Agostinho: o mal só traz à tona o bem se você "trabalha para isso" com consciência. E o esforço voluntário, embora necessário, nunca será suficiente. Como quando passamos por uma grande doença, esse vírus está funcionando como reagente químico: exalta, acentua, "puxa para fora" a essência do que, no fundo, é aquela específica pessoa, aquela comunidade, aquela nação. E a própria abordagem ou linguagem bélica, a de atacar, resistir, derrotar, esmagar, são inadequadas. Não sofremos fome nem tivemos medo de bombas caindo sobre nossas cabeças, como nas guerras, nem sentimos grande alívio pelo fim daquela ameaça, que trazia esperança e desejo de reconstruir sobre os escombros com projetos para o futuro. Nós, ao contrário, teremos que conviver com esse medo insidioso que dividiu o país e suas regiões já durante a pandemia; o teremos por dentro, teremos que elaborá-lo com o tempo. Não será um evento isolado, não será um "cisne negro".
Afinal, das pandemias e das guerras mundiais (apenas nisso são iguais) nunca saímos melhores do que quando entramos. Vamos pensar, por exemplo, na Grande Guerra, verdadeiro divisor de águas do século XX, um século breve porque começou ali, com o fim dos grandes impérios e a descoberta de uma subjetividade frágil em sua ambivalente busca por uma identidade.
O primeiro período pós-guerra teve, assim, um caráter vitalista-onipotente-depressivo; portanto, a década de 1920 fundou-se no rancor reivindicante aplacado nos totalitarismos, que canalizarão a "modernização" em uma versão autoritária, até que os nós não resolvidos da primeira guerra, adormecidos no período, entre deux guerres, explodirão na segunda. E é para esse período do segundo pós-guerra que muitos olham como um possível modelo para o pós-covid-19.
Naquela época, o impulso reconstrutivo era confiado a fatores muito menos patológicos do que do primeiro pós-guerra, isto é, à força que derivava da unidade de todos contra o inimigo comum, pelo menos até 1947. Com a Guerra Fria, essa "energia unitária" foi traduzida fortalecendo-se na deslegitimação de um campo contra o outro, cimentando as duas identidades, aquela coletivista e aquela capitalista. E a sociedade viveu plenamente essas esperanças, no plano subjetivo, na família e no crescimento demográfico, e, no plano das nações, na vontade comum de não recair na terceira guerra mundial. Tudo isso tornado possível pela decisiva ajuda estadunidense. Um plano Marshall, o verdadeiro. Havia uma visão, um projeto, uma ideia do futuro. Conseguiremos reencontrá-lo ou afundaremos nas enormes fragilidades em que o novo coronavírus nos surpreendeu?
As duas novidades absolutas dessa pandemia, tanto em relação às guerras mundiais quanto às pandemias anteriores, são seu caráter verdadeiramente "global-universal" e a comunicação-informação agora "global-capilar", com consequente controle sobre as nossas vidas. A natureza radical do desafio é, portanto, enorme e talvez também por esse motivo corremos o risco de oscilar ainda mais entre duas visões extremas: a "altruística" e a "cínica".
Precisamente porque gostaríamos muito que o resultado fosse de uma resiliência transformadora, tentamos não confundir o desejo com a realidade e, portanto, desconfiamos das expectativas palingenéticas: são enganosos os tons áulicos que geralmente ouvimos ao nosso redor. Nossas bússolas para o futuro, que são subsidiariedade, cultura, conexões, formação e senso de responsabilidade, serão cada vez mais necessárias apenas se forem adequadas para um contexto tão diferente e não poderão ser simplesmente repropostas como alternativas a um mercado sem controle, para perseguir um "decrescimento feliz” em contraposição à globalização. Nessas alturas já entendemos que o desenvolvimento sustentável precisa de mais pesquisa, mais tecnologia, mais competências. É, portanto, da formação de uma nova classe dirigente que precisa pensar, não como um mantra demasiadamente repetido, mas como necessidade agora prioritária.
Sem ilusões, devemos trabalhar juntos com homens e mulheres de boa vontade para ajudar a ação pública, bloqueada e incapaz de decidir de acordo com uma visão desajeitada da gestão. E devemos retomar um caminho virtuoso reformista em um mundo que será outro. Porque o retorno do pesadelo do contágio já revelou nossos vícios e exasperou nossos limites: o assistencialismo na infinita variedade de contribuições lançadas a rodo, o corporativismo na fragmentação desarticulada dos subsídios, o burocratismo na quantidade e na confusão das providências , a falta de gestão na lentidão e na incompetência, a distância do país real, o justicialismo populista e iliberal no controle da fase de fechamento e, por último mas não menos importante, a incumbência do judiciário como substituto das escolhas políticas.
Males que também se espelham no nosso relacionamento com a Europa que vemos alternadamente nas vestes de mãe benevolente ou madrasta cruel: todos obsessivamente focados em quanto dinheiro está disponível (e, certamente, é preciso muito dinheiro e com condições não vinculantes, claras ou ocultas), mas com pouco cuidado sobre como gastá-lo. Ninguém se lembra de como ainda não conseguimos gastar os fundos europeus já disponíveis há anos!
As desigualdades e o empobrecimento se transformarão em uma desvantagem que não será "apenas" econômica: uma disparidade que afeta a dignidade das pessoas por serem velhas, doentes e sozinhas. O idoso como metáfora do "descartado". Será difícil honrar na prática, fora da retórica, o respeito pelo recurso de formação que os idosos teriam, redescoberto em palavras, devido ao senso de culpa do massacre da covid-19. As mulheres correm o risco de ser ainda mais penalizadas, tanto no plano das condições de trabalho quanto de papéis (pela dupla e tripla jornada de trabalho, pela presença cada vez mais essencial que a mulher terá nos difíceis equilíbrios familiares, na formação dos filhos que recairão principalmente sobre os seus ombros).
O conceito de generatividade, em um sentido amplo, social e econômico, tão caro para nós, não pode ser desviado de seu caráter originário e literal, ou seja, não pode nos fazer esquecer o gerar primário, o de gerar filhos. Se há anos as mulheres deixaram de ter filhos, torna-se uma prioridade reverter essa tendência devastadora no futuro: criar as condições materiais e relacionais para a procriação deve se tornar uma espécie de "direito humano" fundamental.
Sabemos que o trabalho feminino não está apenas em contraste com a maternidade, mas, em países onde as mulheres estão mais ocupadas, a taxa de natalidade aumenta por muitas razões, econômicas, psicológicas e relacionais. A mulher e a maternidade eram penalizadas mesmo antes da covid-19 e agora correm o risco de retornar a um modelo familiar-feminino dos anos 1950, mais para o mal do que para o bem: sem aquele ímpeto procriativo e sem a energia do trabalho feminino fora dos muros da casa.
A rastreabilidade do crescimento do controle sobre as vidas privadas, não apenas do mercado e dos indivíduos, mas também do Estado, nos fazem repensar "que liberdade" nos espera no futuro. O mundo digital, cada vez mais indispensável (e esperamos estendido às classes mais pobres), propõe as margens da autonomia do "cidadão-súdito" em relação ao "poder".
Além do historiador e cientista Frank Snowden, que havia alertado sobre o risco de epidemia mundial, mais recentemente em 2019, citado por Stefano Zamagni no ensaio contido neste volume, muitos, nos dias do lockdown, também leram outro Snowden, Edward, o famosíssimo especialista em informática estadunidense que havia levantado a tampa da caixa de Pandora da nossa total rastreabilidade. Já vivemos em uma sociedade "vigiada" (através do Google, Facebook e, principalmente, nossos iPhones) e com rastreabilidade para fins de saúde, ainda haverá novos riscos para a privacidade e a liberdade.
Antes, tínhamos uma ideia aberta dos limites da liberdade. Teremos que voltar à raiz dos direitos humanos. A demanda indistinta por direitos havia crescido exponencialmente, alimentada quantitativamente por uma infinidade de reivindicações, muitas vezes sem distinções e prioridades. E sustentadas pelo desejo individual, daquela dilatação da subjetividade e da liberdade desvinculada da responsabilidade, pela qual todo desejo se tornava um direito. Em um esquecimento dos deveres já denunciado pelas consciências mais atentas também no mundo liberal e em ambientes que são tudo menos conservadores e repressivos. Há muito tempo, a questão dos direitos havia deixado de ser um tema de divisão entre laicos e católicos, mas dizia respeito a todos e a todas porque se refere a uma comum visão antropológica.
Nesse tipo de cultura dos direitos, portanto, percebiam-se perigos que hoje se apresentam com toda a premência, a primeira questão é a separação-cisão entre direito individual e direito social e a segunda é a tutela da dignidade das pessoas. As liberdades individuais e a justiça social devem andar juntas. E para que isso aconteça, é essencial ter uma visão positiva da comunidade. Ou seja, sair de um horizonte unicamente individualista. Mas sem idealizações: a família não é o paraíso idealizado nos contos de fada, muitas vezes pode ser um verdadeiro inferno, como demonstram tantas relações violentas que aí se aninham; assim como a pequena comunidade civil não é garantia de controle e proteção dos abusos contra os mais fracos, numa visão de identidade completamente entrincheirada e fechada. O problema, portanto, não é contrapor o enraizamento identitário à globalidade cosmopolita, ou as famílias tradicionais a outros vínculos afetivos.
Como mudará a percepção do nosso corpo? Irá se acentuar a tendência já predominante de vivê-lo separada da mente e dos sentimentos (também devido ao efeito das biotecnologias aplicadas à vida e à morte) ou entenderemos que alcançar uma unidade integrada das várias partes da pessoa torna a vida mais harmoniosa, além de defender e cuidar mais efetivamente o próprio corpo?
Na modernidade líquida, o corpo seria, segundo Zygmunt Bauman, "a única certeza que resta, a ilha de íntima e confortável tranquilidade em um mar turbulento e inóspito ... o corpo se tornou o último refúgio e santuário de continuidade e duração... Disso deriva a preocupação furiosa, obsessiva, febril e nervosa pela defesa do corpo ... a fronteira entre o corpo e o mundo externo é uma das fronteiras mais vigiadas e, portanto, os orifícios do corpo (os pontos de entrada) e as superfícies do corpo (os pontos de contato) são hoje os principais focos de terror e ansiedade gerados pela conscientização da mortalidade, e talvez até mesmo os únicos”.
Leva a refletir reler essas linhas escritas há muitos anos, enquanto manipulamos desajeitadamente nossas máscaras para impedir que os orifícios sejam expostos ao contágio. O corpo sacralizado como um santuário que guarda um indivíduo-mônada dentro de uma comunidade fechada: é nessa série de matryoshkas que se conservaria o simulacro daquela segurança identitária que a liquidez havia varrido para longe, e que agora, em uma época de possíveis pandemias, parece se tornar uma condição normal e normativa.
O corpo, seus cuidados, seu bem-estar nos obcecavam, o cobríamos de tatuagens e mimávamos, cada vez mais, como se fosse uma realidade em si, separada das outras partes de nós, de nós mesmos, de nossa mente e de nosso coração. Agora fazemos isso por necessidade e sobrevivência.
Na cultura judaico-cristã, o corpo não existe por si só, não é separado da alma ou da mente. Somente um extenuado espiritualismo ou um banal materialismo poderiam afirmar isso. O cristianismo é a própria negação de qualquer possível espiritualização ou idealização. Parece, ao contrário, que, na pós-modernidade, essa unidade de mente-corpo evapore cada vez mais, e que se fundamente mais na técnica, na experimentação e na liberdade até atingir um poder técnico-científico que parcela, por exemplo, as várias partes do corpo feminino para poder engravidar (Sylviane Agacinski. L’uomo disincarnato. Dal corpo carnale al corpo fabbricato, Neri Pozza, 2020).
Além disso, nos últimos anos, multiplicaram-se estudos mostrado como nessa crescente separação entre mente e corpo se aninhe a origem das diferentes formas de fragilidade da subjetividade do indivíduo, que terá no futuro pós-covid-19 cada mais necessidade de unidade e consciência.
Nas semanas de lockdown, duas notícias aparentemente distantes me chamaram a atenção: a Hungria havia votado definitivamente contra a Convenção de Istambul, muito importante porque, pela primeira vez, a violência doméstica naquele Tratado internacional é considerada no mesmo nível da violação de um direito humano. A Convenção foi rejeitada com o argumento de que o poder parental é intangível, pois derivaria de Deus.
A outra notícia vinha de Kiev, onde cinquenta bebês, nascidos de mães de aluguel, estavam hospedados como "pacotes no guarda-volumes" em um hotel em Kiev porque, devido a um novo coronavírus, as mães europeias que os haviam encomendado não podiam ir buscá-los. Uma foto muito triste: no carpete desgastado de um hotel anônimo, centenas de berços estavam alinhados com os bebês.
Compreensivelmente focados no destino de uma Europa na corda bamba devido à grande crise que nos espera, não podemos esquecer, no entanto, sua fragilidade também em termos de direitos, que vê, por um lado, total liberdade e, pelo outro, a negação da mesma igualdade entre homem e mulher.
Sobre o futuro dos direitos na Europa, existe uma espécie de heterogênese sombria dos fins que deve se tornar a oportunidade para refletir sobre os efeitos de dois grandes mal-entendidos: uma cultura disfarçada de catolicismo nacionalista, que acaba usando a identidade como um bastão revelando sua natureza xenofóbica e misógina, e uma ideia equivocada sobre os direitos que distorce a própria ideia de liberdade, que não é liberdade, mas solicitação de direitos para fins egoístas e de interesse.
Para concluir, penso no duro confronto que tivemos com muitos colegas e amigos do Átrio dos Gentios nos dias de confinamento, no entrelaçamento de planos e disciplinas, mantidos juntos, como o Cardeal Gianfranco Ravasi disse com muita propriedade, por aquela mesma resiliência transformadora que motivou nossas reflexões. Portanto, é essencial escolher as prioridades que, para a nossa Consulta, deveriam estar ligadas ao tema da formação e da educação de uma classe dirigente mais preparada e a uma instrução básica para todos, uma postura, uma atitude que deveríamos manter também para promover aquele "pacto entre gerações" que requer certamente conhecimento e pesquisa, mas também maior senso de responsabilidade.
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