Em uma entrevista publicada recentemente no jornal Le Monde, Davi Kopenawa, o grande líder do povo Yanomami, e uma das vozes mais influentes entre os povos originários da Amazônia, disse que "os brancos estão destruindo a Amazônia porque não sabem sonhar". No entanto, "Querida Amazônia" nos mostra que há um branco, que também se veste de branco, que sabe e quer sonhar, que quer que o mundo e a Igreja sonhem, fazê-lo a partir de sua "Querida Amazônia", pela que tanto ele tem se interessado desde o início de seu pontificado.
A análise é do missionário Luis Miguel Modino.
Ousaria dizer que Francisco é um papa que assumiu o universo indígena como seu. Não devemos esquecer que, nas visões de mundo dos povos originários, os sonhos são algo que determina a vida cotidiana. Para os povos indígenas, sonhar não é uma questão de pessoas que vivem em outro mundo, mas daquelas que trazem a este mundo o que está marcando o curso da vida.
Os sonhos do Papa Francisco nos levam a diferentes dimensões, que fazem parte da vida do ser humano: um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial. São sonhos que incluem tudo o que foi vivenciado no processo sinodal e que ajudarão a tecer novas relações sociais, culturais, ecológicas e eclesiais, provenientes da periferia e que atingiram o centro do debate e da vida eclesial e social. O cuidado da casa comum tornou-se uma preocupação comum, dentro e fora da Igreja, e o Papa Francisco tem sido um ator fundamental e decisivo.
Estamos diante de um documento que coleta e valoriza aqueles que participaram do processo sinodal e o Documento Final da assembleia, que o Papa Francisco convida a ler e, entende-se, assumir. Desde o início, podemos dizer que os sonhos são uma maneira de dizer à Igreja e às pessoas de boa vontade, o diagnóstico que foi desenvolvido ao longo de todo o processo sinodal, algo em que ele sempre insistiu, para examinar os diagnósticos e são nas coisinhas.
Seu diagnóstico parte do comum a todos, o sonho social, para alcançar o específico, o sonho eclesial, passando pelo cultural e pelo ecológico. O sonho social, números 8 a 27, parte de que os povos não podem ser ignorados, ameaçados pelo roubo de seus territórios, onde os governos querem impor um modelo de desenvolvimento e domesticação para aqueles que tradicionalmente foram vistos como intrusos, usurpadores e obstáculo. É por isso que não podemos permitir que nossa consciência social seja anestesiada e deve surgir uma indignação saudável. Nesse compromisso, seguindo o exemplo de muitos missionários, a Igreja, baseada no diálogo, deve se comprometer e escutar os gritos dos povos amazônicos, muitas vezes desencantados com tanta corrupção.
Povos da Amazônia participam da missa de encerramento do Sínodo (Foto: Vatican Media)
O sonho cultural, que ocupa os números de 28 a 40, baseia-se na ideia de ajudar a Amazônia a tirar o melhor de si, algo em que os jovens da Amazônia, especialmente os indígenas, têm um papel fundamental, com base em suas raízes culturais, que levam ao estabelecimento de relações interculturais. Não podemos esquecer quem sofre as maiores ameaças, um espaço em que a contribuição do mundo da comunicação é importante, também e principalmente do nível local, do mundo indígena.
Os números 41 a 60 nos mostram o sonho ecológico do Papa Francisco, que parte do fato de que o cuidado do meio ambiente se baseia no cuidado que o Senhor tem por nós. Nesse sentido, temos que aprender com os povos indígenas, a partir de sua relação com o ambiente, a importância que a água e os rios têm na vida dos povos amazônicos, sabendo que a maneira como a Amazônia está sendo tratada, nos conduz, mesmo que haja quem pense que nada acontece, ao fim. A proposta de cuidado que a exortação faz vem da articulação do conhecimento ancestral e do conhecimento técnico contemporâneo, sempre ouvindo o clamor da Amazônia e de seus povos, assim como Deus ouviu seu povo no Egito. O objetivo é contemplar e não apenas analisar, amar e não apenas usar, sentir-se intimamente unido e não apenas defender.
O sonho eclesial ocupa a maior parte da exortação, do número 61 ao 110, e nasce do chamado para caminhar com os povos da Amazônia, com o objetivo de evangelizar a partir do anúncio do querigma. Este trabalho baseia-se na inculturação, que inclui o que você encontra nas culturas, desde a escuta da sabedoria ancestral, aprendendo com os modos de vida dos povos amazônicos, desde uma feliz sobriedade, que ajuda a superar o consumismo dominante. Essa inculturação nos leva a reconhecer a presença de Deus no rio, nas árvores, nos peixes, no vento, algo tão típico dos povos originários, insistindo em sua dimensão social e em uma firme defesa dos direitos humanos.
Junto com isso, descobrir que uma santidade amazônica pode se tornar realidade e, lançando um aviso àqueles se atribuem exclusivamente a defesa da sã doutrina, para entender que o sagrado está presente de diferentes maneiras, porque “é possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico”. Portanto, o texto nos convida a uma espiritualidade que leva em consideração as necessidades cotidianas e a uma liturgia que inclui elementos da experiência indígena.
Um dos pontos que causou mais controvérsia ao longo do processo sinodal é a celebração dos sacramentos em comunidades distantes e, consequentemente, a possível ordenação de ministros locais. O texto parte do fato de que a presença precária da Igreja não pode nos deixar indiferentes e exige da Igreja uma resposta específica e corajosa, que ainda não chegou, embora afirme que “o modo de configurar a vida e o exercício do ministério dos sacerdotes não é monolítico, adquirindo matizes diferentes nos vários lugares da terra”, o que pode ser entendido como a base para futuras discussões. Defende um serviço ministerial a serviço de uma maior frequência da celebração da Eucaristia em todas as comunidades que evite a falta da Eucaristia e o sacramento do perdão. A solução, por enquanto, promover vocações sacerdotais e missionárias. Ele também insiste que os diáconos permanentes devem estar muito mais na Amazônia.
Entre os grandes avanços do documento está o reconhecimento da força e do dom da mulher, destacando expressamente seu importante papel na assembleia sinodal, que sustentou a vida de muitas comunidades e transmitiu a fé por um longo tempo, sem pensar que pode se reduzir seu status e participação pelo fato de não participar das Ordens Sagradas. Francisco continua dizendo que, sem as mulheres, a Igreja entra em colapso e reafirma seu papel central na Igreja sinodal, onde suas funções e serviços devem aumentar e ter estabilidade, reconhecimento público e envio pelo bispo. A partir daí, elas devem ter um impacto real e efetivo na organização, nas decisões mais importantes e na orientação das comunidades.
Agora temos que seguir em frente, realizando esses sonhos, porque não devemos esquecer que os novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral dependerão de sua concretização, elementos tão presentes em todo o processo sinodal. Não tenhamos medo de “avançar por caminhos concretos que permitam transformar a realidade da Amazônia e libertá-la dos males que a afligem". É o sonho de Francisco por um mundo melhor. Mas não vamos esquecer que, se for de todos, avançaremos mais rapidamente nesses novos caminhos.
Assista ao vídeo, em italiano, da apresentação da Exortação Querida Amazônia