20 Agosto 2019
Já está à venda na internet um interessante e importante livro sobre o magistério do papa Francisco, publicado pela Livraria Editora Vaticana, que foi organizado e elaborado pela Pontifícia Comissão para a América Latina – CAL guiada por alguns meses pelo acadêmico uruguaio Guzmán Carriquirry.
Dois são os principais elementos relevantes do volume: o tema dos diversos artigos, que é os Movimentos Populares em diversos continentes e países, e a Apresentação do livro escrita e assinada pelo Santo Padre Francisco.
Para esse volume contribuíram de forma especial e valiosa diversas pessoas – estudiosos, especialistas, jornalistas, eclesiásticos – coordenados por Carriquirry. Os textos são de Gianni La Bella, padre Michael Czerny, cardeal Peter Turkson, o sociólogo italiano Thomas Leoncini e o mexicano Rodrigo Gerra.
Outros artigos foram assinados por Juan Grabois, fundador do Encontro Mundial dos Movimentos Populares, o bispo auxiliar de Buenos Aires, dom Gustavo Carrara; a responsável da edição semanal em espanhol do L’Osservatore Romano Silvina Pérez e os argentinos Hernán Reyes Alcaide e Alberto Molina.
Compartilhamos a Apresentação do livro, escrita e assinada pelo papa Francisco.
A reportagem é publicada por Il Sismógrafo, 19-08-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Estou particularmente alegre pelo lançamento deste volume, fruto da reflexão de muitas vozes, de um grupo de estudiosos de distintos setores e competências, que fizeram uma releitura da experiência dos chamados “Movimentos Populares”, reconstruindo a gênese, os eventos, o desenvolvimento e o significado que esse ciclo de encontro teve. Um evento inédito na história recente da Igreja, sobre o qual é útil voltarmos.
Esse arquipélago de grupos, associações, movimentos, trabalhadores precarizados, famílias sem teto, camponeses sem terra, ambulantes, limpadores de vidro em semáforos, artesãos de rua, representantes de um mundo de pobres, de excluídos, dos não considerados, dos irrelevantes, que tem cheiro “de bairro, de povo, de luta” representam, no panorama do nosso mundo contemporâneo, uma semente, uma renovação que como o grão de mostarda dará muito fruto: a alavanca de uma grande transformação social.
O futuro da humanidade “não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos do povo, em sua capacidade de se organizar e também em suas mãos que regam com humildade e convicção esse processo de mudança” [1].
Esse povo de pequeninos que defini como “poetas sociais”, homens da periferia, que uma vez ao centro, como é bem narrado no volume, com sua própria bagagem de lutas desiguais e de sonhos de resistência, vieram a colocar na presença de Deus, da Igreja e dos povos, uma realidade muitas vezes ignorada, que graças ao protagonismo e a tenacidade de seu testemunho, saiu à luz.
Pobres que não se resignaram ao sofrer na própria carne o despojo e a injustiça, mas sim que escolheram, como Jesus, dócil e humilde de coração, de rebelar-se pacificamente de “mãos limpas” contra ela.
Os pobres não são somente os destinatários preferidos da ação da Igreja, os privilegiados da sua missão, mas são também sujeitos ativos. Por isso tenho a intenção de expressar, em nome da Igreja, essa galáxia de homens e associações, que desejam a felicidade do “vivir bien” e não daquele ideal egoísta da “vida boa”, minha genuína solidariedade. Decidindo acompanhá-los em sua caminhada autônoma.
Essa rede de movimentos transnacionais, transculturais e de diversas culturas religiosas representa uma expressão histórica tangível, no modelo poliédrico [2] onde na base se encontra um diverso paradigma social, o da cultura do encontro. Uma cultura que tem a ver com o outro, o diferente de si. Da leitura desse volume, que espero que ajude a tantos a compreender em profundidade, a dar maior luz e significado ao valor dessas experiências, quero brevemente destacar alguns aspectos que me parecem importantes, na esperança que as palavras que dirigi a eles tenham contribuído a suscitar nas consciências de quem rege os destinos deste mundo, um renovado sentido de humanidade e justiça, a mitigar as condições hostis nas quais os pobres vivem no mundo.
Os Movimentos Populares, e esse é o primeiro que quero destacar, em minha opinião representam uma grande alternativa social, um grito profundo, um sinal de contradição, uma esperança de que “tudo pode mudar”. Em seu desejo de não se uniformizar nesse sentido único, centrado sobre a tirania do dinheiro, mostrando com sua vida, com seu trabalho, com seu testemunho, com seu sofrimento que é possível resistir, atuando com coragem boas decisões e a contracorrente. Gosto de imaginar esse arquipélago de descartados do sistema, que está comprometendo ao planeta inteiro, como sentinelas que – ainda no escuro da noite – perscrutam com esperança um futuro melhor.
O momento que estamos vivendo está caracterizado por um cenário inédito na história da humanidade, que tratei de descrever através de uma expressão sintética: “mais que uma época de mudanças, é uma mudança de época”, que é necessário compreender. Uma das manifestações mais evidentes dessa mutação é a crise transnacional da democracia liberal, fruto da transformação humana e antropológica, produto da “globalização da indiferença”, a qual aludi tantas vezes, gerou um “novo ídolo”: o do medo e a da segurança, onde hoje um dos sinais mais tangíveis é a familiaridade que tantos têm com as armas e a cultura do desprezo, característica de nossa época, que um notório histórico de nosso tempo definiu como a “a era da raiva”. O medo é hoje o meio de manipulação das civilizações, o agente criador de xenofobias e racismo. Um terror semeado nas periferias do mundo, com saques, opressões e injustiças, mas que exploram, como vimos no nosso passado recente, também nos centros do mundo Ocidental.
Os Movimentos Populares podem representar uma fonte de energia moral, para revitalizar nossas democracias, cada vez mais claudicantes, ameaçadas e postas na mesa de discussão em inumeráveis fatores.
Uma reserva de “paixão civil”, de “interesse gratuito pelo Outro”, capaz de regenerar um renovado sentido de participação, na construção de novos agregados sociais que representam uma candidatura, que mostra uma consciência mais positiva do Outro. O antídoto ao populismo e à política-espetáculo está no protagonismo dos cidadãos organizados, em particular daqueles que criam – como é no caso de tantas experiências presentes nos Movimentos – em seu cotidiano, fragmentos de outros mundos possíveis que lutam para sobreviver à escuridão da exclusão, de onde “crescerão grandes árvores, surgirão bosques cheios de esperança para oxigenar esse mundo” [3].
Os Movimentos Populares expressam como a “força do nós” é a resposta à “cultura do eu” que mira unicamente a satisfação dos próprios interesses, cultivando – apesar de sua própria precariedade – o sonho de um mundo distinto e mais humano.
O crescimento das desigualdades, agora globalizadas e transversais – e não somente, econômicas, mas sim sociais, cognitivas, relacionais e intergeracionais –, é reconhecido unanimemente como um dos mais graves desafios com os quais a humanidade terá que lidar nas próximas décadas. Fruto de uma economia cada vez mais separada da ética, que privilegia o lucro e estimula a competição, provocando uma concentração de poder e de riqueza, que exclui e que coloca à porta bilhões de homens e mulheres como “pobre Lázaro”.
O “presente” para milhões de pessoas é hoje uma condenação, uma prisão, marcada pela pobreza, pelo despojo, pela falta de trabalho, porém sobretudo pela ausência de futuro. Um inferno ao qual devemos pôr fim. Nesse sentido, os Movimentos Populares, com sua “resiliência” – representam uma resistência ativa e popular esse sistema idolátrico, que exclui e que degrada, e com sua experiência contam como a rivalidade, a inveja e a opressão não são necessariamente agentes de crescimento, mostrando, pelo contrário, que também a concórdia, a gratuidade e a igualdade podem fazer crescer o produto interno bruto.
O direito às três Ts: terra, teto, trabalho, direitos inalienáveis e fundamentais, representam os pré-requisitos indispensáveis de uma democracia não somente formal, mas sim real, na qual todos os homens, independentemente de sua renda ou de sua posição na escala social, são protagonistas ativos e responsáveis, atores do próprio destino. Sem participação, como alguns ensaístas deste livro bem argumentaram, a democracia se atrofia, chega a ser uma formalidade porque deixa o povo fora da construção do seu próprio destino.
Quero dar uma palavra sobre a terceira dessas Ts, que segundo a Doutrina Social da Igreja é um direito sagrado. Nos últimos anos, o mundo do trabalho mudou vertiginosamente. As recaídas antropológicas dessas transformações são profundas e radicais, e seus efeitos não são de todo claros. Estou convencido há tempo que no mundo pós-industrial não há futuro para uma sociedade na qual somente existe o “dar para ter” ou o “dar por dever”. Se trata “de criar uma nova via de saída à sufocante alternativa entre as teses neoliberais e as neoestatais”.
Os Movimentos Populares são, nesse sentido, um testemunho concreto, tangível, que mostra que é possível contrastar a cultura do descarte, que considera os homens, mulheres, crianças e anciões como excedentes inúteis – e muitas vezes danosos – do processo produtivo, através da geração de novas formas de trabalho, centradas na solidariedade e a dimensão comunitária, em uma economia artesanal e popular. Por tudo isso decidi unir minha voz e sustentar a causa de tantos que realizam os ofícios mais humildes – na maioria das vezes, privados do direito de remuneração digna da seguridade social e de uma aposentadoria.
Nesse estado de paralisia e desorientação, a participação política dos Movimentos Populares pode vencer a política dos falsos profetas, que exploram o medo e o desespero e que pregam um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória. Tudo o que disse a eles, como bem demonstra esse volume, está em plena sintonia com a Doutrina Social da Igreja e com o magistério dos meus predecessores. Espero, nesse sentido, que a publicação desse livro seja um modo para continuar – ainda que seja a distância – a reforçar essas experiências, que antecipam com seus sonhos e com suas lutas, a urgência de um novo humanismo, que ponha fim ao analfabetismo de compaixão e ao progressivo eclipse da cultura e da noção de bem comum.
Francisco.
Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 2015. Foto: Vatican Media
[1] Encontro com os Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, 9 de julho de 2015.
[2] Evangelii Gaudium
[3] Encontro com os Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, 9 de julho de 2015.
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‘Os Movimentos Populares no mundo são a alavanca de uma grande transformação social', afirma o papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU