18 Julho 2019
A terceira parte do Instrumentum laboris para o Sínodo sobre a Amazônia intitula-se assim: "Igreja profética na Amazônia: desafios e esperanças". Esta parte é constituída por sete capítulos que requerem uma atenção séria dos Padres Sinodais, justamente na tomada de consciência de toda a Igreja católica, e em particular das Igrejas locais dos territórios amazônicos, sobre o modo de ser presença de evangelização e de promoção humana.
O comentário é do Monsenhor Ettore Malnati, Vigário episcopal para o laicato e a cultura da Diocese de Trieste, publicado por La Stampa, 16-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A introdução a essa terceira parte enfatiza que "o anúncio de Jesus Cristo e a realização de um encontro profundo com Ele, através da conversão e da vivência eclesial da fé, supõem uma Igreja hospitaleira e missionária que se encarna nas culturas" (n. 105). A razão pela qual a Igreja está no mundo é recordada: para proclamar o kerygma e oferecer, através dos sacramentos e da vida de graça, um encontro qualificante com Cristo, fruto de autêntica conversão e de comunhão eclesial. Assim, é disso que a avaliação deve partir para novos caminhos da pastoral amazônica (n. 106), relendo "a ação eclesial que inspira os ministérios, a catequese, a liturgia e pastoral social, tanto na área rural como na urbana" (n. 105).
O Instrumentum laboris pede ao Sínodo que ofereça indicações para que se "relance com fidelidade e audácia a missão da Igreja no território e que se aprofunde o processo de inculturação que da Igreja na Amazônia requer propostas valentes" (n.106). Uma das atenções que não devem ser negligenciadas pelos Pastores, missionários e comunidades eclesiais locais é a de deixar-se questionar pelos aspectos antropológicos, culturais, ambientais, sociais e espirituais próprios das populações desses territórios, para que - como diz o Papa Francisco – “os povos originários plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas” (n.107).
Obviamente, isso não significa "engessar" a originalidade de valor do Evangelho e a economia sacramental da Igreja. Trata-se de conhecer o terreno cultural e adaptar o anúncio e a proposta da fé com a comunhão sacramental e eclesial através dos parâmetros de "inculturação e interculturalidade que não se opõem, mas se completam. Assim como Jesus se encarnou em uma determinada cultura (inculturação), seus discípulos missionários seguem seus passos. É por isso que os cristãos de uma cultura saem ao encontro de pessoas de outras culturas (interculturalidade). Isto aconteceu desde os primórdios da Igreja" (n.108).
Pensemos, por exemplo, no encontro da cultura judaica dos Apóstolos com a cultura grega e latina dos seus destinatários e a formulação das verdades cristãs com o pensamento clássico antigo também indicado pelo Papa Bento XVI como singular e fundamental para as mesmas verdades da fé. No entanto, é importante poder descobrir, no sitz im leben cultural amazônico, aqueles Semina Verbi que são o ponto de partida para a evangelização, certamente não colonizar, aquela cultura reconhecendo a ação do Espírito Santo, como atenção divina para que também os Povos da Amazônia possam, apreendendo aquela fagulha do Eterno, orienta-se a Deus.
Cabe certamente à comunidade cristã com os seus Pastores e o anúncio missionário-testemunhante de homens e mulheres, famílias e pessoas consagradas, tornar essas fagulhas corroboradas pelo "fogo" que é Cristo (Bento XVI, Spe salvi, n.47) e do ventre da mãe Igreja e mestra na ternura do serviço.
Essa é a orientações de escolha que o Instrumentum laboris pede aos Padres Sinodais que considerem seriamente, para tornar a Igreja que nos territórios amazônicos é uma Igreja em saída " que deixa atrás de si uma tradição colonial monocultural, clericalista e impositiva, que sabe discernir e assumir sem medo as diversificadas expressões culturais dos povos" (n.110). É certamente uma questão de discernimento e de escolhas que não são fáceis, mas extremamente precisas e necessárias. Nesse compromisso há o conforto para o "princípio da encarnação formulado por Santo Irineu: ‘O que não foi assumido não foi redimido’" (n.113).
Uma das razões da evangelização, das pessoas e das culturas, é oferecer a redenção que Cristo realizou "para cada homem, para todos os homens e por todo o homem" (Gaudium et Spes, n.22) sem distinção para cada povo e pessoa. Portanto, faz parte da missão da Igreja assumir a responsabilidade de pessoas e culturas diversas e oferecer-lhes o que, para toda a humanidade e criação, Cristo "recapitulou com ação redentora de, não só homem novo", mas de criação nova, como fala o apóstolo Paulo. Obviamente, isso não deve ser proposto, mas imposto e "assumido" com convicção na perspectiva de encontrar e aperfeiçoar cristologicamente os Semina Verbi.
Esse é o obrigatório discernimento que a Igreja deve fazer até hoje não apenas com os povos amazônicos. É preciso reconhecer que "os missionários e as missionárias têm uma história de profunda relação com esta região. Deixaram marcas profundas na alma do povo católico da Amazônia. A Igreja percorreu um longo caminho que deve ser aprofundado e atualizado, até poder chegar a ser uma Igreja com rosto indígena e amazônico" (n.116).
Para implementar isso é importante que a Igreja seja uma ponte para que os povos amazônicos possam se confrontar dialogicamente, escutando cada um as diferentes riquezas culturais de seus mundos de forma construtiva, daquelas populares, daquelas ambientais, daquelas familiares, daquelas juvenis, daquelas das mulheres, daquelas espirituais, daquelas artísticas e daquelas econômicas.
A Igreja não deve substituir aqueles que tem o compromisso de tratar com a "coisa pública" e o "bem comum", mas deve ser presença mediadora para promover e proteger modelos para um processo significativo de conversão da ecologia integral onde, no critério da teologia cristã da criação, a comunidade humana cuida da Casa Comum para "obedecer" à missão bíblica dada pelo Criador ao homem e à mulher, Sua imagem e semelhança.
Já são João Paulo II já havia indicado tanto na pessoa humana como na cultura uma maneira qualificada de anunciar e testemunhar Cristo. Não me parece que as sugestões nesse sentido do Instrumentum laboris ponham em xeque o critério católico da evangelização das culturas, e que a expressão "conversão ecológica" torne vã no plano antropológico-espiritual a conversão a Cristo. Cristo está presente como o Redentor de toda a criação em tudo e em todos, obviamente de modo diferente, mas verdadeiro.
Certamente nos sacramentos a presença de Cristo, como afirmou Paulo VI na Mysterium fidei, existe ali de maneira muito especial, mas já no primeiro capítulo do Gênesis se afirma: " É preciso captar aquilo que o Espírito do Senhor ensinou a estes povos ao longo dos séculos: a fé no Deus Pai-Mãe Criador, o sentido de comunhão e a harmonia com a terra, o sentido de solidariedade para com seus companheiros, o projeto do ‘bem viver’, a sabedoria de civilizações milenárias que os anciãos possuem e que influi sobre a saúde, a convivência, a educação, o cultivo da terra, a relação viva com a natureza e a ‘Mãe Terra’, a capacidade de resistência e resiliência, em particular das mulheres, os ritos e as expressões religiosas, as relações com os antepassados, a atitude contemplativa e o sentido de gratuidade, de celebração e de festa, e o sentido sagrado do território" (n.121).
Esse é o "sentimento" religioso natural dos povos amazônicos, que obviamente deve ser conhecido e mantido em mente na perspectiva do anúncio evangélico e, portanto, da proposta da fé cristã e da "implantatio ecclesiae" entre aqueles povos. Justamente enfatiza o Instrumentum laboris que "a inculturação da fé não é um processo de cima para baixo, nem uma imposição externa, mas um mútuo enriquecimento das culturas em diálogo (interculturalidade). Os sujeitos ativos da inculturação são os próprios povos indígenas" (n.122). Nunca esquecendo que, afirma o Papa Francisco, "a graça pressupõe a cultura" (Evangelii Gaudium n.115), entendida precisamente como natureza "individualizada".
Para poder iniciar esse percurso de evangelização é necessário renovar uma Igreja do povo, promovendo as vocações autóctones de homens e mulheres em resposta às necessidades de uma atenção pastoral e sacramental que não desconsidere nem a fidelidade da Revelação, Tradição e Magistério, isto é, da vontade positiva de Cristo, que torna efetivos os sinais sacramentais, nem "uma autêntica evangelização do ponto de vista indígena" (n.129 a).
Inclusive no campo da lex orandi, o Concílio Vaticano II já propunha a inculturação da liturgia entre os povos indígenas (SC n. 37-40, 65, 77, 81), como sinal daquele saudável pluralismo das culturas que expressa a autêntica catolicidade sem ameaçar a unidade da Igreja (cf. n. 124).
O Instrumentum laboris enfatiza que "a celebração da fé deve realizar-se de maneira inculturada, a fim de ser expressão da própria experiência religiosa e vínculo de comunhão da comunidade que celebra" (n.125). Parece legítimo o pedido dos fiéis do Povo de Deus na Amazônia para realizar, por parte dos Pastores, um "discernimento sobre os ritos, símbolos e estilos das culturas indígenas" (n.126 a). Os fiéis entrevistados para propostas a serem oferecidas aos Padres Sinodais também assinalaram que "as comunidades têm dificuldade de celebrar com frequência a Eucaristia por falta de sacerdotes – e pedem - em vez de deixar as comunidades sem a Eucaristia, [que] se alterem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la” (n. 126c).
Diante dessa legítima necessidade, uma vez que é "a Igreja que vive na Eucaristia e a Eucaristia que edifica a Igreja", a fidelidade à mens Christi et Ecclesiae é obviamente um dever. A Eucaristia é a reapresentação do sacrifício redentor da Cruz e do sinal da Nova Aliança e a presença real especial do Corpo e Sangue de Cristo sob as espécies do pão e do vinho, se for presidida pelo ministro ordenado, seja ele Bispo ou Presbítero. Nem mesmo o diácono torna presente esse mistério. É então dever das Igrejas particulares, em comunhão com o magistério do Bispo de Roma, encontrar formas de ministerialidade instituídas tanto por homens como por mulheres, por pessoas solteiras e/ou por famílias, a fim de tornar possível o cuidado pastoral de uma Comunidade na ausência do ministro ordenado, onde não pode faltar a proclamação da Palavra, a catequese, o cuidado dos doentes, a caridade, atenções pastorais coordenadas por um ministro ordenado que garante sacramental, espiritual e pastoralmente a ação de Cristo Cabeça e Pastor para o seu Povo.
As propostas podem ser diferentes e díspares de acordo com as expectativas do Povo de Deus, mas os Pastores da Igreja não "podem” arbitrariamente ignorar a mens Christi e a mens Ecclesiae sobre a celebração válida e lícita dos sacramentos. Exceções podem e devem ser realizadas sem descuidar da fidelidade tanto a Cristo como à Igreja. Ninguém é dono dos sacramentos, todos na Igreja somos atentos guardiões e implementadores desses sinais de fé de acordo com a mens da instituição crística.
Surge então para a Igreja presente entre a população amazônica por causa das distâncias geográficas a passagem de uma "pastoral da visita" para uma "pastoral da presença", "a fim de voltar a configurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociais" (n.128). Trata-se, portanto, de sensibilizar e formar toda a inteira Comunidade eclesial para assumir, como Comunidade, a missão evangelizadora e a implantatio Ecclesiae daquele povo e daquele território, empenhando-se para uma stabilitas loci no estilo de Comunidade-família, onde a cada um é designado e apoiado um papel (liturgia, catequese, caridade, apoio espiritual) para que seja construída e evidente aquela fraternidade crística, que tem suas raízes na fé e seus efeitos na caridade espiritual e material.
Este é o tecido que deveria ser levado em consideração, sem esquecer a formação e designação dos papéis de evangelização de uma eclesiologia sinodal, onde a presença dos leigos e das mulheres é reconhecida a partir de seus talentos e carismas segundo "o espaço dado por Jesus às mulheres "(n.129c). Obviamente, não se pode ignorar a escuta e o acompanhamento de jovens que se encontram "entre dois mundos, entre a mentalidade indígena e a atração da mentalidade moderna, especialmente quando migram para as cidades" (n.129,3).
Não se deve esquecer, infelizmente, que "o indígena na cidade é um migrante, um ser humano sem terra e o sobrevivente de uma batalha histórica pela demarcação de sua terra, com sua identidade cultural em crise" (n.132). As Igrejas locais devem se equipar, através das paróquias, para enfrentar essa realidade multicultural através de uma pastoral do acolhimento, da promoção, da escuta mútua e da integração bipolar, no estilo do Bom Samaritano e do Profeta.
Nessa renovação, o diálogo ecumênico não pode ser negligenciado entre "as várias pessoas que compartilham a fé em Jesus como Filho de Deus e Salvador" (n. 136). Deve-se também defender as populações amazônicas daqueles que “tendências fatalistas que procuram inquietar e, com uma visão negativa do mundo, oferecem uma ponte de salvação segura. Alguns através do medo, outros mediante a busca do sucesso" (n.137). Por essa precisa e necessária "conversão antropológica, eclesiológica e ecológica, é bom saber utilizar os meios de comunicação social que a Igreja possui para transmitir o estilo de vida evangélico, seus valores e seus critérios" (n.141). A Igreja local deve saber colaborar com aqueles centros de comunicação social geridos pelos próprios indígenas que fazem ouvir suas vozes não apenas em suas próprias comunidades, mas também no exterior. "É preciso que a realidade amazônica saia da Amazônia e tenha repercussão planetária" (n.141).
Mais que qualquer outra Igreja particular, aquela que está entre os povos da Amazônia deve ser uma Igreja em saída, isto é, tratando da salvação integral da pessoa humana (n. 143) e uma Igreja em escuta da voz dos últimos, tornando-se uma voz profética (n.144) e também a consciência crítica do poder, para que os povos e territórios sejam protegidos dos especuladores de plantão. "A Igreja - ressalta o Instrumentum laboris – deve saber ouvir o clamor da ‘Mãe Terra’, agredida e gravemente ferida pelo modelo econômico de desenvolvimento predador e ecocida imposto a partir de fora e ao serviço de poderosos interesses externos" (n. 146d).
Em conclusão, é preciso reconhecer ao Instrumentum laboris o mérito de ter ouvido o clamor dos Povos e da Terra amazônica, porque, na colegialidade e na sinodalidade cum e sub Petro a Igreja possa, no estilo de Cristo, ser a voz de quem não tem voz e presença amistosa do homem e da terra amazônica, oferecendo o único critério que tem, como disse Pedro ao homem provado pela doença desde o nascimento que pedia esmola na porta Bela do templo de Jerusalém: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho te dou: em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levante-te e anda" (Atos 3,6).
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Sínodo sobre a Amazônia, uma Igreja “ponte” com rosto indígena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU