03 Julho 2019
Uma dezena de páginas, treze pontos, para chamar os líderes da Igreja na Alemanha a caminharem na direção certa, a do Evangelho, sem transcender em derivas funcionalistas ou reducionismos ideológicos, científicos ou manipulativos que correriam apenas risco de "ridicularizar" o povo de Deus e, acima de tudo, exortar os fiéis a despertar uma paixão capaz de "desmascarar a velha e a nova escravidão que atinge homens e mulheres, especialmente hoje, quando vemos o renascimento dos discursos xenófobos e promover uma cultura baseada na indiferença, na reclusão, no individualismo e na expulsão".
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 29-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
No dia dos Santos Padroeiros de Roma, Pedro e Paulo, o Papa Francisco envia uma longa carta à Igreja alemã que, guiada por um episcopado de forte tendência progressista, nunca escondeu o instinto de proceder "autonomamente" em algumas escolhas e posições pastorais e doutrinárias. Este é ocaso do debate sobre a intercomunhão ou o percurso sinodal anunciado pelos bispos em março para discutir o celibato, a moral sexual, o poder clerical.
O Papa, portanto, chama à ordem e, acima de tudo, dizendo que está ciente dos problemas contingentes no país, convida pastores e fiéis da Alemanha a “aviar processos que nos construam como Povo de Deus, ao invés de buscar resultados imediatos com consequências prematuras e midiáticas, mas efêmeras, por falta de maturidade ou por não respondam à vocação a que somos chamados".
"O cenário atual - afirma o Pontífice - não tem o direito de nos fazer perder de vista o fato de que nossa missão não se baseia em previsões, cálculos ou investigações ambientais encorajadoras ou desencorajadoras, nem no nível eclesial, nem no político, econômico ou social, nem nos resultados positivos dos nossos planos pastorais”. É claro que "todas essas coisas são importantes para valorizá-las, escutá-las, refletir sobre elas e ficar atentos, mas em si não esgotam o nosso fato de ser crentes", mas "sem uma nova e autêntica vida evangélica, sem a fidelidade da Igreja à sua própria vocação cada nova estrutura é corrompida em um curto espaço de tempo”.
Bergoglio olha com gratidão para a ampla rede de comunidades, paróquias, capelas, escolas, hospitais, estruturas sociais que se entrelaçam na história do país e que testemunham uma "fé viva" que atravessou por "momentos de sofrimento, confronto e tribulação". No presente "as comunidades católicas alemãs, em sua diversidade e pluralidade, são reconhecidas em todo o mundo por seu senso de corresponsabilidade e generosidade" e, no passado, a Alemanha doou ao mundo "inúmeros carismas e pessoas: sacerdotes, religiosos e laicos que desempenharam fielmente e incansavelmente o seu serviço e a sua missão em situações muitas vezes difíceis", sem esquecer os "grandes santos, teólogos, mas também pastores e leigos que ajudaram no encontro entre o Evangelho e as culturas".
Por isso, observa o Pontífice, é ainda mais "doloroso" ver "a crescente erosão e o enfraquecimento da fé com tudo que isso comporta não somente a nível espiritual, mas também a nível social e cultural". Uma deterioração, "certamente pluridimensional e de solução não fácil nem rápida, que requer uma abordagem séria e consciente".
Para enfrentar essa situação, os bispos sugeriram um caminho sinodal: o que significa e como se desenvolverá concretamente ainda está em uma fase de reflexão. Seja como for, a ideia é boa, o Papa parece dizer, que lembra como foi ele mesmo que encorajou uma "sinodalidade" na Igreja. No entanto, deve-se em aviar o processo excluindo a dimensão da graça: todo percurso sinodal deve ser caracterizado por uma "irrupção do Espírito Santo", diz ele, sem a qual é difícil "alcançar e tomar decisões em questões essenciais para a fé e a vida da Igreja”.
"Pode-se cair em sutis tentações, às quais considero necessário prestar particular atenção e cuidado, pois, longe de nos ajudar a caminhar juntos, nos manterão apegados e instalados em esquemas e mecanismos recorrentes que acabam por desnaturalizar ou limitar a nossa missão", alerta Francisco. "E também com a circunstância agravante de que, se não estivermos conscientes disso, podemos acabar girando em torno de um conjunto complexo de argumentos, dissertações e resoluções que nos afastam apenas do contato real e cotidiano do povo fiel e do Senhor".
"Assumir e sofrer a situação atual não implica passividade, resignação e nem negligência - assinala Bergoglio -, mas sim um convite a fazer contato com o que em nós e em nossas comunidades é necrótico e precisa ser evangelizado e visitado pelo Senhor". Isso requer "coragem", porque "aquilo do que precisamos é muito mais do que uma mudança estrutural, organizacional ou funcional".
Por trás da esquina, está de fato a tentação do "novo pelagianismo" que leva a pôr a confiança nas "estruturas e organizações administrativas perfeitas". Não é assim: "Uma centralização excessiva, em vez de nos ajudar, complica a vida da Igreja e sua dinâmica missionária", comenta o papa. É verdade que a melhor resposta parece ser a de "reorganizar as coisas", de "fazer mudanças" e remover as "manchas" de modo a "trazer ordem e harmonia à vida da Igreja, adaptando-a à lógica atual ou àquela de um grupo particular". Com o tempo, talvez, seriam eliminadas as "tensões", mas se chegaria a "entorpecer e domesticar o coração de nosso povo" e "silenciar a força vital e evangélica que o Espírito quer exortar". "Este seria o maior pecado do mundanismo e do espírito antievangélico mundano", afirma o Papa Francisco peremptoriamente. "Teríamos um bom corpo eclesial, bem organizado e até ‘modernizado’, mas sem alma e novidade evangélica; viveríamos um cristianismo ‘gasoso’ sem o mordente evangélico".
Portanto, atenção, deve-se confiar em Deus e não em nossos próprios esforços e capacidade. A história ensina: "Cada vez que a comunidade eclesial tentou sair sozinha de seus problemas, confiando e concentrando-se exclusivamente em suas forças ou métodos, sua inteligência, sua vontade ou prestígio acabou por aumentar e perpetuar os males que tentava resolver", lembra o Pontífice.
Nesse sentido, afirma, "o cenário atual não tem o direito de nos fazer perder de vista o fato de que nossa missão não se baseia em previsões, cálculos ou investigações ambientais encorajadoras ou desencorajadoras nem no nível eclesial, nem político, econômico ou social, nem sobre os resultados positivos dos nossos planos pastorais”. Todas essas coisas são importantes para valorizá-las, escutá-las, refletir sobre elas e estar atentos, mas "por si não esgotam o nosso fato de ser crentes".
Por essa razão, ressalta novamente, "a transformação a ser realizada não pode ser respondida exclusivamente como reação a dados ou solicitações externas, como a acentuada queda dos nascimentos e o envelhecimento das comunidades que não permitem uma mudança geracional visível. São causas objetivas e válidas, mas vistas isoladamente fora do mistério eclesial, favoreceriam e estimulariam uma atitude reacionária (tanto positiva como negativa) em relação aos problemas".
O critério orientador é "recuperar a primazia da evangelização", mas não para vive-la como uma "tática de reposicionamento eclesial no mundo de hoje ou um ato de conquista, dominação ou expansão territorial", e muito menos como "retoque" que "adapta a Igreja ao espírito dos tempos, fazendo com que perca sua originalidade e profecia”.
A principal preocupação, escreve o Papa, deveria ser "compartilhar esta alegria, abrindo-nos e indo ao encontro de nossos irmãos, especialmente daqueles que estão nas portas de nossos templos, nas ruas, nas prisões e nos hospitais, nas praças e nas cidades". "Os desafios estão aí para serem superados", diz o papa. Para isso, precisamos da unidade: "Vamos cuidar uns dos outros e atentemos para a tentação do pai da mentira e da divisão, do mestre da separação que, forçando a si mesmo a buscar um bem aparente ou uma resposta a uma dada situação, acaba por fragmentar o corpo do fiel Povo Santo de Deus", exorta o Papa, advertindo contra "antagonismos" e “protagonismos", "resoluções sincretistas de ‘bom consenso’ ou resultante daquela elaboração de censos ou indagações sobre este ou aquele argumento".
Tudo isso não se anula com a "sinodalidade". É necessário rezar, jejuar, vigiar; assim, fugimos da "tentação de permanecer em posições protegidas e confortáveis" e somos forçados a ir "às periferias para encontrar e ouvir melhor o Senhor". “Sem essa dimensão - conclui Francisco - corremos o risco de partir de nós mesmos ou da ansiedade de autojustificação e de autopreservação que nos levará a fazer mudanças e acordos, mas na metade do caminho, que, longe de resolver problemas, acabará por nos enredar em uma espiral sem fim que mata e sufoca o anúncio mais belo, libertador e promissor que temos e que dá sentido à nossa existência: Jesus Cristo é o Senhor”.
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O Papa à Igreja alemã: aviar processos, não procurar resultados midiáticos desprovidos de maturidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU