17 Agosto 2012
Neste domingo de “glória”, que todas aquelas e todos aqueles que acreditam que o Cristo é Pão da Vida e que querem se alimentar para se tornar Pão da Vida se aproximem da mesa eucarística e comuniquem a sua dignidade e glória... Todas essas pessoas são Corpo de Cristo Ressuscitado!
A reflexão é de Raymond Gravel (1952-2014), padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 20° Domingo do Tempo Comum. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: PR 9,1-6
2ª leitura: Ef 5,15-20
Evangelho: Jo 6,51-58
Esta semana entramos na segunda parte do discurso sobre o Pão da Vida. Com a última frase do domingo passado e a primeira deste domingo: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha a vida“ (Jo 6,51), assistimos a uma nova revolta dos judeus, isto é, daqueles que não acreditam em Cristo: “Como pode esse homem dar-nos a sua carne para comer?” (Jo 6,52). E o evangelista continua: “Se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seu sangue, não terão a vida em vocês“ (Jo 6,53). Não pode estar mais claro: para viver eternamente, para ressuscitar, é preciso comer e beber o sangue do Cristo da Páscoa. Mas por que tanta insistência? O que quer dizer tudo isso? O que reter desta narrativa de hoje?
A carne é uma expressão semítica que significa o ser humano todo, inteiro, na sua materialidade. É uma palavra mais forte, mais concreta do que a palavra corpo. Ela quer significar o que vemos do ser humano vivente, seu aspecto exterior, corporal, terrestre. E quando falamos: a carne entregue e o sangue derramado é uma referência à morte de Jesus de Nazaré sobre a cruz da Sexta-Feira Santa.
Se a carne é o aspecto material do ser humano, por que São João insiste tanto nessa palavra? No tempo do evangelista João, no fim do século I, início do século II, existia uma corrente de pensamento que se chama docetismo: uma doutrina que afirmava que o Cristo “parecia” humano, pois ele era Filho de Deus. O evangelista João quer combater essa corrente de pensamento herético. Não é por nada que bem no início do seu evangelho, no seu prólogo, São João escreve: “No começo a Palavra já existia: a Palavra estava voltada para Deus, e a Palavra era Deus“ (Jo 1,1). E um pouco mais longe, ele escreve: “E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória: glória do Filho único do Pai, cheio de amor e fidelidade“ (Jo 1,14).
O que quer dizer isso? É evidente que não se trata de canibalismo. Os verbos comer e beber se utilizam também no sentido figurado. Quando alguém fala bem, não dizemos que bebemos suas palavras e que devoramos um livro que achamos interessante? Então, comer a carne e beber o sangue de Cristo é para nos alimentarmos da vida e da morte daquele que se tornou Cristo e Senhor da Páscoa. É nos alimentarmos do que ele foi durante a sua vida mortal: um homem de coração, de perdão, de misericórdia, um revolucionário da religião, um profeta, uma pessoa que cura, que nos liberta, alguém que nos ensinou a amar de verdade... para tornarmos o que ele próprio se tornou: um Ressuscitado, um Cristo, um Senhor, um Filho de Deus. São João escreve: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue vive em mim e eu vivo nele“ (Jo 6,56). No fundo, nós nos tornamos como Cristo. Em seu prólogo, São João fala claramente: “Ela, porém, deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam, isto é, àqueles que acreditam no seu nome. Estes não nasceram do sangue, nem do impulso da carne, nem do desejo do homem, mas nasceram de Deus“ (Jo 1,12-13).
Quando comemos a carne e bebemos o sangue de Cristo, quando nos nutrimos da sua humanidade, há como uma transformação e uma fusão que se operam em nós, na nossa humanidade, para tornarmos o que ele é: um Ressuscitado, um Cristo, um Senhor. Não é em vão que Santo Agostinho dizia da Eucaristia: “Tornem-se o que vocês comem! Vocês comem o Corpo de Cristo, tornem-se Corpo de Cristo!”.
O teólogo francês Gérard Bessière resume bem o que significa comer a carne e beber o sangue de Cristo: “A carne e o sangue, em hebreu como em arameu, é o homem concreto, frágil, vulnerável. Desde o início do evangelho de João podemos ler: ‘O Verbo se fez carne’. Não se trata de um organismo sem alma nem espírito. Essas palavras afirmavam que a Palavra de Deus era, doravante, uma pessoa, esse Jesus que tinham visto caminhar, perdoar, curar, libertar, no nome de Deus que ama e que procura a ovelha perdida. Esse Jesus que seus inimigos encravaram numa cruz: carne e sangue... Com ele, doravante, a Palavra de Deus não era mais somente uma mensagem: seria uma vida, a vida de um carpinteiro que agitou a sociedade e mesmo a sua religião para abrir um novo caminho, com Deus, para o futuro humano. Não era uma abstração, mas um homem concreto, de quem os evangelhos lembram seu agir para sempre inovador. Àqueles que estavam tentados de olhar para um ser celeste, longe da existência quotidiana, as parábolas sanguinolentas do evangelho de João lembram que a verdadeira vida não está na evasão nas nuvens. Seguir Jesus é receber dele maneiras novas de pensar, de sentir, de agir. Entre ele e nós há uma transfusão de vida”.
E isso me leva ao meu último ponto: a Eucaristia!
É evidente que o discurso de São João sobre o Pão da Vida faz referência à Eucaristia que se celebrava já nessa comunidade. Na missa somos convidados para duas mesas: a mesa da Palavra e a mesa da Eucaristia. Pela escuta da Palavra nós comemos essa Palavra que nos dá vida, para tornarmos Palavra de vida, de amor e de esperança para todas e todos os que nós encontramos nas nossas vidas. E, pela comunhão com o pão eucarístico, comemos esse pão que é a vida entregue de Cristo, para tornarmos, por nossa vez, pão de vida para os outros; isto é, entregar a nossa vida àquelas e àqueles que nós reencontramos nas nossas vidas.
Não é por nada que a Eucaristia deve nos transformar se queremos transformar os outros. Se a missa não nos transforma, se ela não nos faz termos mais amor, mais justiça, mais paz, mais esperança, mais perdão, mais reconciliação, mais tolerância, mais respeito das nossas diferenças, mais aceitação dos nossos limites e das nossas fragilidades humanas e daquelas dos outros, mais, mais, mais VIDA, a missa é inútil e assistimos em vão.
Além do mais, por alguma acrobacia perversa, chegamos a proibir que algumas pessoas participem da Eucaristia? Quem não é digno de se aproximar da mesa eucarística? Os divorciados e casados de novo? Os homossexuais? Os feridos da vida? As pessoas em situação de pecado? Para responder a essas perguntas precisamos ler São Paulo, na primeira Carta aos Coríntios, capítulo 11, versículos 17 a 34, onde São Paulo nos fala da indignidade em relação à Eucaristia. De que indignidade será que ele nos fala? Ele diz: “Por isso, todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor“ (v. 27). Será que se trata das pessoas divorciadas que ousam se aproximar da mesa eucarística? Ou será que fala dos homossexuais que vivem uma relação amorosa com uma pessoa do mesmo sexo? Não! É tudo o contrário: segundo São Paulo, trata-se daquelas e daqueles que rejeitam partilhar com os outros, sobretudo com os mais desprovidos e com os mais feridos da vida. Ele diz: “De fato, quando se reúnem, o que vocês fazem não é comer a Ceia do Senhor, porque cada um se apressa em comer a sua própria ceia. E, enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Será que vocês não têm suas casas onde comer e beber? Ou desprezam a Igreja de Deus e querem envergonhar aqueles que nada têm? O que vou dizer para vocês? Devo elogiá-los? Não! Nesse ponto não os elogio“ (vs. 20 a 22).
Então, se entendo bem São Paulo, os que são indignos de comungar na missa são os que proíbem os outros, em nome do seu prestígio e da sua autoridade... Isso é grave, vocês sabem! Pois impedem as pessoas de se nutrirem do Cristo, e frequentemente são as pessoas que mais o precisariam...
Neste domingo de “glória”, que todas aquelas e todos aqueles que acreditam que o Cristo é Pão da Vida e que querem se alimentar para se tornar Pão da Vida se aproximem da mesa eucarística e comuniquem a sua dignidade e glória... Todas essas pessoas são Corpo de Cristo Ressuscitado!
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“Tornem-se o que comem! Vocês comem o Corpo de Cristo, tornem-se Corpo de Cristo!” (Santo Agostinho) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU