22 Setembro 2016
É o remédio no qual pensam o cardeal Hummes e o Papa Francisco devido à falta de clero, começando pela Amazônia. Mas também na China do século XVII os missionários eram poucos e a Igreja florescia. Sobre isso escreve a revista La Civiltà Cattolica.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 21-09-2016. A tradução é de André Langer.
Há alguns dias, o Papa Francisco recebeu em audiência o cardeal brasileiro Cláudio Hummes, acompanhado pelo arcebispo de Natal, Jaime Vieira Rocha.
Hummes, de 82 anos, anteriormente arcebispo de São Paulo e prefeito da Congregação vaticana para o Clero, é atualmente o presidente tanto da Comissão para a Amazônia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), como da Rede Pan-Amazônica, que reúne 25 cardeais e bispos dos países vizinhos, além de representantes indígenas das diversas etnias locais.
E é assim que se sustenta, entre outras coisas, a proposta de solucionar a falta de sacerdotes celibatários em áreas imensas como a Amazônia conferindo a ordem sagrada também a “viri probati” – ou seja, a homens de provada virtude, casados.
Por conseguinte, a notícia da audiência fez pensar que o Papa Francisco discutiu com Hummes sobre esta questão e, em particular, sobre um sínodo “ad hoc” das 38 dioceses da Amazônia, que efetivamente está em fase avançada de preparação.
E há mais. Ganhou nova força a voz segundo a qual Jorge Mario Bergoglio quer confiar ao próximo sínodo mundial dos bispos, programado para 2018, precisamente a questão dos ministérios ordenados, bispos, sacerdotes, diáconos, inclusive a ordenação de homens casados.
A hipótese foi lançada logo depois do encerramento do duplo Sínodo sobre a Família.
E avançou rapidamente.
E agora parece ganhar terreno. Curiosamente, pouco antes que o Papa recebesse Hummes, Andrea Grillo – um teólogo ultrabergogliano, professor no Pontifício Ateneu Santo Anselmo de Roma, cujas intervenções são sistematicamente reproduzidas e enfatizadas pelo sítio Il Sismografo, próximo ao Vaticano – chegou inclusive a antecipar um detalhe do próximo sínodo sobre o “ministério ordenado na Igreja”, que divide em três subtemas:
– o exercício colegial do episcopado e a restituição ao bispo da plena autoridade sobre a liturgia diocesana;
– a formação dos presbíteros, reconsiderando a forma tridentina no seminário, e a possibilidade de ordenar homens casados;
– a teologia do diaconato e a possibilidade de um diaconato feminino.
A autoridade a que fazem referência tanto Grillo como o resto dos reformistas clérigos e leigos quando formulam esta ou outras propostas é o falecido cardeal Carlo Maria Martini, com a intervenção que lançou no Sínodo de 1999.
O então arcebispo de Milão, jesuíta e líder indiscutível da ala “progressista” da hierarquia, disse que “teve um sonho”: o de “uma experiência de confronto universal entre bispos que servisse para desfazer alguns dos nós disciplinares e doutrinais que aparecem de tempos em tempos como pontos candentes no caminho das Igrejas europeias, mas não exclusivamente”.
Estes são os “nós” por ele enumerados:
“Penso em geral no aprofundamento e no desenvolvimento da eclesiologia de comunhão do Vaticano II. Penso na falta, às vezes dramática, em alguns lugares, de ministros ordenados e na crescente dificuldade que alguns bispos têm para dispor do número suficiente de ministros do Evangelho e da eucaristia para prover o cuidado das almas em seu território. Penso em alguns temas que dizem respeito à posição da mulher na sociedade e na Igreja, na participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, na sexualidade, na disciplina do matrimônio, na prática penitencial, nas relações com as Igrejas irmãs da Ortodoxia e, mais em geral, na necessidade de reacender a esperança ecumênica; penso na relação entre democracia e valores e entre leis civis e lei moral”.
Da agenda martiniana, os dois sínodos convocados até agora pelo papa discutiram, de fato, sobre a “disciplina do matrimônio” e “a visão católica da sexualidade”.
O novo sínodo poderia resolver “a falta de ministros ordenados” abrindo as portas para a ordenação de homens casados e de diáconos mulheres; este último já foi posto em marcha pelo Papa Francisco com a nomeação, em 02 de agosto passado, de uma comissão de estudo.
* * *
O principal argumento em apoio à ordenação de homens casados é o mesmo já expresso pelo cardeal Martini: “a crescente dificuldade que alguns bispos têm para dispor do número suficiente de ministros do Evangelho e da eucaristia para prover o cuidado das almas em seu território”.
A Amazônia seria, então, um destes “territórios” imensos em que os poucos sacerdotes ali presentes são capazes de chegar a núcleos remotos de fiéis não mais de duas a três vezes ao ano. Portanto, com grande prejuízo – sustenta-se – para “o cuidado das almas”.
Deve-se dizer, no entanto, que uma situação deste tipo não é exclusiva dos tempos atuais. De fato, caracterizou a vida da Igreja ao longo dos séculos e nas mais diversas regiões.
Mas, tem mais. A falta de presbíteros nem sempre foi um prejuízo para o “cuidado das almas”. Pelo contrário, em alguns casos coincidiu inclusive com o florescer da vida cristã. Sem que a ninguém ocorresse de ordenar homens casados.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na China no século XVII. A isso faz referência um amplo artigo escrito pelo sinólogo jesuíta Nicolas Standaert, que leciona na Universidade Católica de Louvaina, e que foi publicado na revista La Civiltà Cattolica, em seu número de 10 de setembro último. Trata-se, portanto, de uma fonte livre de qualquer suspeita vista sob o vínculo estreitíssimo e estatutário que a revista tem com os Papas e, em particular, com o atual, que acompanha pessoalmente a sua publicação, em acordo com o diretor da mesma, o jesuíta Antonio Spadaro.
No século XVII, na China, havia poucos cristãos e estavam dispersos. Escreve Standaert: “Quando Matteo Ricci morreu em Pequim, em 1610, depois de 30 anos de missão, havia aproximadamente 2.500 cristãos chineses. Em 1665, os cristãos chineses eram, provavelmente, cerca de 80 mil e em 1700 aproximadamente 200 mil; quer dizer, eram ainda poucos comparados com toda a população, entre 150 milhões e 200 milhões de habitantes”.
E os presbíteros eram muito poucos: “Quando Matteo Ricci morreu, em toda a China havia apenas 16 jesuítas: oito irmãos chineses e oito padres europeus. Com a chegada dos franciscanos e dos dominicanos, em cerca de 1630, e com um pequeno aumento dos jesuítas no mesmo período, o número de missionários estrangeiros passou dos 30 e permaneceu constante nos seguintes 30 ou 40 anos. Na sequência, houve um aumento, atingindo o pico de quase 140 missionários entre 1701 e 1705. Mas depois, por causa da controvérsia sobre os ritos, o número de missionários diminuiu para quase a metade”.
Em consequência, o cristão comum via o presbítero não mais de “uma ou duas vezes ao ano”. E nos poucos dias que durava a visita, o sacerdote “conversava com os chefes e os fiéis, recebia informações sobre a comunidade, interessava-se pelos doentes e os catecúmenos. Confessava, celebrava a eucaristia, pregava e batizava”.
Depois, o sacerdote desaparecia durante meses. Mas, as comunidades se mantinham. Além disso, conclui Standaert: “transformaram-se em pequenos, mas sólidos centros de transmissão da fé e da prática cristã”.
Seguem, na sequência, os detalhes dessa fascinante aventura, assim como relatada pela revista La Civiltà Cattolica.
Sem elucubrações sobre a necessidade de ordenar homens casados.
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“O missionário aparecia uma ou duas vezes ao ano”, por Nicolas Standaert, SJ, da La Civiltà Cattolica n. 3989, de 10 de setembro de 2016
No século XVII, os cristãos chineses não estavam organizados em paróquias, ou seja, em unidades geográficas em torno do edifício de uma igreja, mas em “associações”, as quais eram dirigidas por leigos. Algumas destas eram uma mistura de associação chinesa e de congregação mariana, de inspiração europeia.
Parece que estas associações estavam mais difundidas. Por exemplo, por volta de 1665 havia cerca de 40 congregações em Xangai, ao passo que havia mais de 400 congregações de cristãos em toda a China, tanto nas grandes cidades como nas aldeias.
O estabelecimento do cristianismo a este nível local se fez na forma de “comunidades de rituais eficazes”, grupos de cristãos cuja vida se organizava em torno de determinados rituais (missa, festividades, confissões, etc.). Essas eram “eficazes”, porque construíam um grupo e porque eram consideradas pelos membros do grupo como capazes de proporcionar sentido e salvação.
Os rituais eficazes estavam estruturados em base ao calendário litúrgico cristão, que incluía não apenas as principais festas litúrgicas (Natal, Páscoa, Pentecostes, etc.), mas também as celebrações dos santos. A introdução do domingo e das festas cristãs fez com que as pessoas vivessem segundo um ritmo diferente do calendário litúrgico utilizado nas comunidades budistas ou taoístas. Os rituais mais evidentes eram os sacramentos, sobretudo a celebração da eucaristia e da confissão. Mas a oração comunitária – sobretudo a oração do terço e das ladainhas – e o jejum em determinados dias constituíam os momentos rituais mais importantes.
Essas comunidades cristãs revelam também algumas características essenciais da religiosidade chinesa: eram comunidades muito orientadas para a laicidade com dirigentes leigos; as mulheres tinham um papel importante como transmissoras de rituais e de tradições dentro da família; uma concepção do sacerdócio orientado para o serviço (presbíteros itinerantes, presentes apenas por ocasião das festas e de celebrações importantes); uma doutrina expressada de maneira simples (orações recitadas, princípios morais claros e simples); fé no poder transformador dos rituais.
Pouco a pouco, as comunidades chegaram a funcionar de maneira autônoma. Um presbítero itinerante (inicialmente eram estrangeiros, mas já no século XVIII eram, majoritariamente, sacerdotes chineses) costumava visitá-las uma ou duas vezes ao ano. Normalmente, os dirigentes das comunidades reuniam os diversos membros uma vez por semana e presidiam as orações, que a maior parte dos membros da comunidade conhecia de cor. Os dirigentes liam também os textos sagrados e organizavam a instrução religiosa. Muitas vezes havia reuniões exclusivas para mulheres. Além disso, havia catequistas itinerantes que instruíam as crianças, os catecúmenos e os neófitos. Na ausência de um presbítero, os dirigentes locais administravam o batismo.
Durante a visita anual, que durava alguns dias, o missionário conversava com os dirigentes e os fiéis, recebia informações sobre a comunidade, interessava-se pelos doentes e os catecúmenos, etc. Confessava, celebrava a eucaristia, pregava, batizava e rezava com a comunidade. Quando partia, a comunidade retomava a sua prática habitual de rezar o terço e as ladainhas.
Por conseguinte, o cristão comum via o missionário uma ou duas vezes por ano. O verdadeiro centro da vida cristã não era o missionário, mas a própria comunidade, com seus dirigentes e catequistas como vínculo principal.
Principalmente no século XVIII e começo de século XIX, estas comunidades se transformaram em pequenos, mas sólidos, centros de transmissão da fé e de prática cristã. Por causa da falta de missionários e de presbíteros, os membros da comunidade – por exemplo, os catequistas, as virgens e outros guias leigos – assumiam o controle de tudo, desde a administração financeira às práticas rituais, passando pela direção das orações cantadas e pela administração dos batismos.
Presbíteros Comunitários para Comunidades sem Eucaristia. Artigo de Antonio José de Almeida
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Poucos presbíteros celibatários? Então, abramos as portas para os homens casados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU