16 Agosto 2016
“Ainda ecoa no ar o erro mais que crasso do Fora Dilma! Fora todos! O mecanismo da análise dessa esquerda não fora só positivado em nome de uma fé na locomotiva da história, como até agora seus partidários ainda esperam pela comprovação de suas teses, sendo atropelados por essa mesma locomotiva. Os adeptos do outrora lema romperam entre si. Aqui, não apenas ficou pior para a tese, como os próprios fatos estão indiferentes a voz de uma centena de militantes que, depois da ruína, decidiram romper com a teologia partidária defensora dessa tese. Agora buscam retirar a alegria do futuro. Bem agora que o tempo é o tempo passado”, escreve Douglas Rodrigues Barros, mestre em estética e filosofia da arte, em artigo publicado por LavraPalavra, 15-08-2016.
Eis o artigo.
A perversidade da velha frase: “se você falar isso, vai fortalecer o inimigo”, é indigesta, mas está naturalizada mesmo nos lugares privilegiados do debate. A coisa é bem esquisita; como se o inimigo não fosse fortalecido exatamente pela omissão e covardia de se fazer uma crítica capaz de apontar novos rumos para a luta.
Naturalmente o que se chama de esquerda não é, nem nunca foi, um conceito fixo, definitivo e estático. Não há uma esquerda apenas – pelo menos desde a radicalização dos sans culottes e insurgência dos jacobinos nos idos de 1793 – mas, as esquerdas. Não é em vão, a paranoia histérica de uma direita raivosa que busca sempre reduzir tudo a um denominador comum. Como sabemos a direita é maniqueísta e o mundo para ela dicotômico, nunca eles estarão para além de bem e mal, porque são incapazes de amar. A mediocridade da defesa do mesmo é o seu lugar.
Por isso, é extremamente rico que hajam as esquerdas, e que não haja uma unidade de pensamento com penas a reduzir o horizonte e o debate que deve ser rico justamente pela divergência de opiniões. Talvez, é aí que a liberdade de crítica necessita se tornar real. Assusta a ideia de unidade. Melhor é a convergência de ações, se estas realmente buscarem um horizonte de emancipação, o que até agora não apareceu, minimamente, no horizonte.
Ainda ecoa no ar o erro mais que crasso do Fora Dilma! Fora todos! O mecanismo da análise dessa esquerda não fora só positivado em nome de uma fé na locomotiva da história, como até agora seus partidários ainda esperam pela comprovação de suas teses, sendo atropelados por essa mesma locomotiva. Os adeptos do outrora lema romperam entre si. Aqui, não apenas ficou pior para a tese, como os próprios fatos estão indiferentes a voz de uma centena de militantes que, depois da ruína, decidiram romper com a teologia partidária defensora dessa tese. Agora buscam retirar a alegria do futuro. Bem agora que o tempo é o tempo passado.
A resposta de como grande parte da esquerda brasileira chegou a desmoralização pública e indiferença, por parte daqueles que ela diz defender, é grande porque evidente. Deixarei a obviedade para o leitor sagaz, e vou me concentrar nos aspectos que fervilham por debaixo do solo histórico, mas que como uma bomba arrasam quarteirões no campo da esquerda, qual seja: a cumplicidade com o modo de pensamento neoliberal.
A esquerda hoje circula na órbita de dois grandes modos de ação e teoria: 1) aquela que discute as transformações buscando um horizonte de igualdade; 2) e outra para quem a experiência do que é comum se tornou impossível.
Esta segunda tornou-se, por sua própria proximidade com o mundo pós-fordista ou pós-moderno, hegemônica. Assume-se nessa, uma ode à individualidade que tem que se afirmar através de uma experiência peculiar e inacessível as demais pessoas.
Busca-se uma identidade da diferença, uma autoafirmação desta como imediatamente contraposta ao Outro, ou a diferença do outro, e um fortalecimento de tais e tais características como estáticos. Esse fenômeno é o que se convencionou chamar de identitarismo, não por acaso, logo absorvido pelo mercado e seus nichos.
Essa “esquerda”, ao contrário do que diz, faz uma redução da análise social a identidades e formas de sociabilização decorrentes dos atributos físicos dos indivíduos. Ao contrário de alguns dos adeptos das cotas – que sabem, por exemplo, que a opressão racial é uma relação historicamente efetivada, e, que fazem uma análise social concebendo os comportamentos e identidades como algo ligado as determinações socialmente produzidas, o que institui as cotas como um direito e não um privilégio – essa esquerda mantém seu foco nas “origens”, nos “lugares de fala” que estão atrelados, numa redução perigosa, a biologia essencialista e aos atributos físicos.
Esse mecanismo, muito na moda e agora disseminado nas práticas de esquerda não é somente perverso, como acaba com qualquer horizonte de emancipação no qual se busque realmente uma igualdade efetiva. Aqui se perde o fundo do poço, donde se poderia tocar para sair, e caímos num poço sem fundo, pois a legitimação de tais práticas estão em pleno acordo com o Poder vigente.
Se olharmos retrospectivamente e nos dermos conta de que o processo histórico-econômico foi construído com a mediação de categorias assentadas na forma de um sujeito “especial”, inexistente e metafisico. Sabendo, contudo, que negros, mulheres e homossexuais foram descartados da universalidade do direito. Veremos que estes não só não se enquadram nessa categoria universal, como a distorção dessa noção, em busca dos “privilégios” corrobora com o Status quo.
Dizer que o racismo é estrutural no Brasil não significa reduzir a luta numa individualidade ou essencialidade ligada a biologia. Significa saber que as relações de produção e reprodução da sociedade “legitima” o ilegitimável e constitui um estado de exceção no qual grande parte de sua população é considerada de categoria inferior.
Ademais, as formas de opressão racial no Brasil têm um caráter particular e perverso, justamente pela negação hipócrita de sua existência. Desse modo, não se pode simplesmente importar os modelos de políticas públicas norte-americanos sem pensar o desenvolvimento da opressão racial e suas peculiaridades no Brasil. Reduzir o fenômeno da miscigenação a categoria de estupro, por exemplo, é desconhecer a história do país. Naturalmente o processo violento de limpeza étnica existiu, mas ele é parte de um processo e não sua totalidade.
Resta saber se essa “esquerda” estará disposta a sair desse horizonte em que a experiência comum não é mais possível, ou ficará remoendo os ressentimentos e alimentando a roda de triturar gente dessa sociedade. Temo infelizmente que isso seria minha utopia. E que a essa altura já devem estar me chamando de privilegiado.
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A esquerda num poço sem fundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU