15 Agosto 2016
Desde segunda-feira passada, a humanidade vive às custas de uma espécie de cheque especial ambiental. Bateu no limite do saldo natural disponível, consumindo mais do que a Terra consegue produzir de maneira sustentável no período de um ano, esgotando a capacidade de regeneração do planeta. Em menos de oito meses completos, chegamos ao Dia da Sobrecarga da Terra – uma estimativa que aponta o quanto excedemos o “orçamento” disponível e começamos a operar no vermelho.
A reportagem é de Guilherme Justino, publicada por Zero Hora, 13-08-2016.
O preço a pagar pode não ser sentido imediatamente, mas vai crescendo a cada dia, e com juros altos. Talvez um rio não tenha secado no início da semana. Talvez uma clareira não tenha sido aberta onde antes havia vegetação nativa. Talvez a emissão de gases tóxicos não tenha atingido um pico. Talvez uma espécie da fauna ou da flora não tenha desaparecido sem deixar rastros. Mas os sinais do desgaste natural vão se acumulando, e a capacidade da Terra de suportar a demanda por recursos naturais escasseia a cada dia.
O chamado Dia da Sobrecarga da Terra é mais uma forma de conscientização do que uma data que vai dividir o calendário anual em dois. Esse dia, que em um mundo ideal chegaria somente em 31 de dezembro – ou até depois –, tem ocorrido cada vez mais cedo. Calculado pela Global Footprint Network (GFN), organização internacional focada em temas de sustentabilidade, o marco nasceu em dezembro, na década de 1970. Mas vem sendo antecipado desde então, e há mais de 10 anos tem caído em agosto.
O que isso quer dizer? Que extrapolamos, com nossa demanda por alimentos, água, recursos naturais e áreas produtivas, o que o planeta é capaz de suportar. Que consumimos muito mais do que a Terra consegue repor naturalmente, e que os esforços para ajudá-la nessa tarefa não têm sido suficientes. Que seria necessário quase um outro mundo inteiro para satisfazer as nossas necessidades.
– O problema é que o consumo está aumentando e a área natural disponível, diminuindo. Nesse ritmo, não há planeta que aguente – avalia Carlos Alberto Mendes Moraes, professor e decano da Escola Politécnica da Unisinos.
Retomando a metáfora econômica, não é como se o dinheiro começasse a faltar e já não fosse mais possível comprar produtos à vista: a Terra ainda tem sua vegetação, sua atmosfera, seus animais e suas plantas. A data deve ser vista como uma referência para a conscientização. E o que ficamos “devendo” em um ano é zerado pela GFN para o cálculo do ano seguinte.
– A ideia é expressar essa questão (do impacto ambiental) de um jeito diferente, não apenas entregando dados sobre emissões de carbono ou índices de desmatamento. Esses levantamentos são importantes e dão base à nossa iniciativa, mas pesquisas científicas podem ser difíceis de entender. Se você fica sabendo que chegou ao limite, fica mais claro que não é possível continuar nesse ritmo – explica o idealizador da data e fundador da Global Footprint Network, o suíço Mathis Wackernagel, em entrevista por telefone.
Para fazer o cálculo, a ONG leva em conta a emissão de gases causadores do efeito estufa, os efeitos do desmatamento, os recursos consumidos pela pesca, pela pecuária e pela agricultura, além da demanda de recursos para novas construções e o uso de água.
Sozinha, a estimativa de que a humanidade passou a viver “a crédito” no último dia 8 não basta para traduzir os problemas ambientais do planeta. Mas é o mais perto que a ciência consegue chegar de medir a diferença entre a demanda por recursos ecológicos e o quanto a Terra pode prover desses recursos sem grandes prejuízos. Outras pesquisas na área ambiental se concentram em dados mais, digamos, palpáveis: a toxicidade na atmosfera, a redução da Mata Atlântica, o impacto da escassez de água. São levantamentos com um teor específico, que cumprem papel importan te mas não chegam a apresentar um retrato geral da questão.
São compilados e mostrados, por exemplo, dados sobre a reserva e o déficit ecológicos dos países, o quanto alguns devem em termos ambientais e o quanto outros atuam como “credores” para o restante do planeta. O Brasil está na condição de credor: tem capacidade de regenerar três vezes mais do que sua população exaure. Ao somar essas estimativas e apresentá-las como um problema maior, realmente global, a GFN reúne informações interessantes e compreensíveis, que ilustram o desafio, mas pecam pela falta de rigor científico.
– É uma simplificação baseada em diversas variáveis. O autor parte de alguns pressupostos para chegar a essa data, então não tem tanto potencial teórico. Mas é uma iniciativa fundamental para conscientizar a população e mostrar como nossa cultura é muito consumista – afirma Pedro Maria de Abreu Ferreira, coordenador do Centro de Pesquisas e Conservação da Natureza (Pró-Mata), da PUCRS.
O foco das contas está na relação entre a biocapacidade e a pegada ecológica dos países. A biocapacidade é a habilidade de cada ecossistema nacional produzir e manter materiais ecológicos, além do que pode absorver de emissões de gás carbônico. Basicamente, indica o status de presença e conservação da natureza em determinada nação. Já a pegada ecológica, termo cunhado por Wackernagel que virou referência nos estudos ambientais, estima o quanto dessa capacidade é requerido pela população daquele local – que, quanto mais industrializado, mais vai demandar recursos naturais. É o impacto do capital humano.
Estimar essa gama imensa de informações não é tarefa fácil. É preciso calcular a quantidade de campos, de pastagens e de animais necessária para alimentar uma população; a quantidade de minérios, de madeira e de água utilizada para garantir seu sustento; a quantidade de gases tóxicos despejada e qual a capacidade da área representada por aquela nação de absorver essas emissões. Os dados, quando existem, nem sempre são tão claros.
– A intenção é fazer uma média global, mas a precisão dos dados dos EUA não é a mesma do Malawi. Esses indicadores numéricos são altamente variáveis. A ideia de um dia de sobrecarga é uma estratégia de sensibilização e engajamento, mas, na prática, não existe esse dia – entende a professora de Sociologia Lorena Fleury, do Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade da UFRGS.
Parceiro da Global Footprint Network na pesquisa, o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) salienta que a intenção da data é mesmo promover a conscientização. Para Mario Barroso, superintendente de Conservação do WWF-Brasil, o levantamento deve ser encarado como um indicador que estimule cada pessoa a repensar seus hábitos e seu impacto na conservação do planeta:
– Existem indicadores mais técnicos e índices mais acurados, claro, mas o que falta nessa pesquisa em acurácia ela devolve em importância como uma ferramenta compreensível, moldada para atingir um público que não são os governos. Ela é voltada para as empresas, para as pessoas.
O efeito concreto dessa excessiva demanda ambiental, defendem os especialistas, não é difícil de ser sentido. Ele está no desmatamento, na seca, na escassez de água doce, no preço da energia elétrica, na erosão do solo, na perda de biodiversidade, no acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera. Está nas mudanças climáticas, nos temporais, nos cada vez mais frequentes e devastadores fenômenos naturais, no calor invernal, no frio fora de época.
– Não é que algo muda a partir dessa data, mas os efeitos passam a ser sentidos no nosso dia a dia. O planeta está mudando, e não é para melhor. Não há riqueza em nenhum país do mundo capaz de comprar mais recursos naturais, que são finitos, e que estão acabando rapidamente devido à ação do homem – reflete Wackernagel, da GFN.
Pedro Ferreira, da PUCRS, explica que a hipótese do pesquisador suíço contempla uma dualidade difícil de representar em números: o quanto gastamos de recursos em todo o planeta versus o quanto poderíamos gastar. Questionado sobre se a solução encontrada por Wackernagel seria temerária, ele responde:
– Temerário seria esperar anos por uma produção de dados científicos capaz de mostrar que realmente temos um problema. A proposta, por mais que seja um simplificação, é superválida.
Dos muitos problemas que seriam advindos desse descompasso ambiental indicado pela data, o professor da Faculdade de Biociências da PUCRS aponta que um dos mais sentidos pela população das grandes cidades é a frequência das enchentes. Com a urbanização e a impermeabilização de boa parte do solo nas metrópoles – substituída por asfalto, prédios e calçadas –, a água não tem para onde ir e acaba se acumulando nas ruas e avenidas que, um dia, foram terra. A vegetação, ensina Ferreira, funcionaria como os nossos cílios, protegendo as cidades e preservando a natureza. Mas, com a diminuição da biocapacidade, essa proteção vai perdendo espaço, e os efeitos não demoram a aparecer.
Em meio às más notícias sobre a data, há ao menos uma informação para se comemorar: ainda que o Dia da Sobrecarga da Terra venha cada vez antes, o ritmo de sua chegada tem desacelerado. Se, no início dos anos 2000, o marco chegava quase uma semana mais cedo a cada ano, agora apenas 24 horas separam uma data da outra.
Isso ilustra dois pontos que trazem otimismo aos pesquisadores: a tendência é difícil de reverter, mas pode ser refreada, e os esforços dos países para diminuir seu impacto ambiental têm surtido efeito. O principal exemplo citado – mesmo que não tenha ainda tido tempo de causar um grande impacto positivo – é o acordo global do clima assinado em Paris no ano passado. Durante a COP21, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, 195 países assinaram um documento garantindo que se esforçarão para que a temperatura média do planeta sofra uma elevação “muito abaixo de 2°C” até 2100.
– A meta primeira é ir reduzindo cada vez mais esse avanço do overshooting (termo em inglês usado para definir a sobrecarga da Terra), até que ele finalmente pare. Continuamos no déficit, porque essa é uma mudança complicada, mas, parando, podemos pensar em fazer essa data chegar cada vez mais tarde – explica Barroso, do WWF.
Se a grande maioria das nações está unida nesse objetivo, a tarefa de adiar a data vai ter de passar, também, pela ação individual. Ter 7 bilhões de pessoas se esforçando pela mesma causa seria a conquista máxima em favor do ambiente.
– O principal ponto é esse convite à reflexão. Se aceito a ideia de que estamos esgotando o estoque natural da Terra, que o meu estilo de vida e as minhas decisões contribuem para essa aceleração e entendo como posso melhorar, fica mais fácil mudar – diz Lorena, que atua na área de sociologia ambiental na UFRGS.
Ao anunciar a chegada adiantada do Dia da Sobrecarga da Terra neste ano, a Global Footprint Network convidou todas as pessoas a cumprirem pequenos acordos consigo mesmas, como promover um jantar vegetariano para os seus amigos, diminuir o consumo de energia na sua casa e buscar meios de transporte alternativos, menos poluentes.
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