30 Janeiro 2013
A mensagem de Bento XVI para o 47º Dia Mundial das Comunicações Sociais lança os desafios do papa à própria Igreja com relação à sua comunicação com o mundo contemporâneo. E, da presença do papa no Twitter, surgem paradoxos ou contrassensos que ainda é necessário superar para que, na vida eclesial, a prática comunicacional não contradiga a teoria – e vice-versa.
A análise é de Moisés Sbardelotto, doutorando em Ciências da Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012).
Eis o texto.
No último dia 24, foi lançada a mensagem do papa para o 47º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que será celebrado no dia 12 de maio deste ano. O tema da mensagem é Redes sociais: portais de verdade e de fé; novos espaços de evangelização (disponível aqui).
A mensagem revela que o debate interno da Igreja sobre comunicação, especialmente no ambiente digital, é um ponto de destaque deste pontificado. Ao menos outras duas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais trazem já em seu título o interesse específico pela internet e pelas redes digitais: O sacerdote e a pastoral no mundo digital: os novos media ao serviço da Palavra (2010) e Verdade, anúncio e autenticidade de vida, na era digital (2011).
Desta vez, o ponto central são as “redes sociais”. Entretanto, o pontífice se refere a uma modalidade específica de rede social, a saber, as interações que se desenvolvem nos ambientes digitais – mas ele só utiliza uma única vez a expressão “redes sociais digitais”. Por outro lado, o papa fala que “as redes sociais tornam-se cada vez mais parte do próprio tecido da sociedade”. Porém, o “tecido da sociedade”, como tal, ao longo de toda a história, sempre foi formado por redes sociais – os discípulos de Jesus, formados por pescadores, pastores, cobradores de impostos etc., e as comunidades de Paulo são um exemplo cristão disso, em uma era muito anterior a qualquer modalidade de comunicação eletrônica. A novidade sociocultural, agora, é que esse tecido também passa a contar com novos emaranhados: as interações e conexões entre as pessoas mediante redes digitais.
Gostaria de comentar brevemente três pontos centrais da mensagem no atual contexto comunicacional. A partir deles, será possível refletir sobre os desafios que o papa lança à própria Igreja com relação à sua comunicação com o mundo contemporâneo. Da presença do papa no Twitter, surgem paradoxos ou contrassensos que ainda é necessário superar para que, na vida eclesial, a prática comunicacional não contradiga a teoria – e vice-versa.
Metáforas e definições
Na mensagem de 2013, Bento XVI aborda o “desenvolvimento das redes sociais digitais”, trazendo as metáforas do “portal”, do “espaço”, da “ágora” e da “praça pública e aberta” para a compreensão da “maneira como as pessoas comunicam atualmente entre si”.
As redes sociodigitais são vistas, já no título da mensagem, como “portais de verdade e de fé”, ou seja, como algo que divide/une dois ambientes e, a partir do qual, podemos encontrar “verdade e fé”. Por outro lado, são “novos espaços de evangelização”, isto é, não são nem um lugar (o que pressuporia um espaço singular, dentro do macroespaço social, marcado por significados pessoais, culturais ou sociais próprios; um espaço antropológico específico), nem um ambiente (que pressuporia uma certa “ecologia” própria e também um ecossistema dentro do qual ele se encontraria). Ao contrário, são compreendidas como uma nova terra incognita à disposição para a evangelização.
Cremos que as metáforas da mensagem são pouco ricas para compreender o atual contexto sociocomunicacional: inerente a essas imagens, encontra-se uma visão marcadamente cibercultural, relacionada aos primeiros estágios da computadorização e da revolução digital, em que o “mundo maquínico” configuraria um outro patamar de existência “virtual”, “melhor do que o humano”, “para além do humano”, “extra ao humano”, que poderia ajudar na construção do “melhor dos mundos possíveis”.
Mas essa é uma visão muito restrita das técnicas e de sua relação com o social – e é o próprio papa que criticará esse ponto de vista em seguida, ao afirmar que “o ambiente digital não é um mundo paralelo ou puramente virtual, mas faz parte da realidade quotidiana de muitas pessoas, especialmente dos mais jovens”.
Por outro lado, o documento fala de “ágora” e de “praça pública e aberta”, ou seja, metáforas de uma nova ambiência ubíqua que pode possibilitar o diálogo, o debate, o confronto entre os interagentes, que decorre da e reforça a “diversidade cultural”, como indica o pontífice. Aqui retomamos a preocupação do papa para que, justamente nesses ambientes, não se perca a “lógica da argumentação” e o “valor do diálogo, do debate fundamentado, da argumentação lógica”. Pois, denuncia, os usuários das redes sociodigitais muitas vezes abafam a “voz discreta da razão” pelo excesso de informações, em nome da persuasão, da popularidade ou da celebridade.
Surge, assim, o primeiro desafio para a Igreja nesses novos ambientes públicos: “aqueles que têm ideias diferentes das nossas”. Inseridos nesses ambientes, como os católicos lidam com o confronto público? Continua Bento XVI: “Constatada a diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a receber um enriquecimento da mesma e a dar-lhe aquilo que se possui de bem, de verdade e de beleza”.
O desafio se resume, então, a isto: a Igreja está disposta a aceitar a existência da cultura dos diversos “outros” da sociedade? E não só isso: a Igreja está disposta também a se deixar enriquecer por eles? As redes sociodigitais não são apenas um convite, mas sim a manifestação social de que esse desafio já está posto no horizonte da cultura contemporânea.
Redes e midiatização
É relevante destacar que, nas palavras de Bento XVI, “as redes sociais são o fruto da interação humana, mas, por sua vez, dão formas novas às dinâmicas da comunicação que cria relações”. Esse fenômeno recursivo – interações humanas que geram redes sociais, que geram novas dinâmicas comunicacionais, que geram novas interações – revela mais uma faceta da midiatização: ou seja, práticas comunicacionais marcadas por lógicas midiáticas.
Assim, analisar a midiatização é analisar um circuito em que a sociedade, para existir e se manter, produz tecnologias comunicacionais (como a linguagem, o livro ou as redes sociais digitais), que, por sua vez, lançam a sociedade para novos patamares de conhecimento e de experiência do mundo, que, novamente, geram um aprimoramento ou o surgimento de novas tecnologias, e assim sucessivamente, por meio das práticas sociais. Isto é, inovações tecnológicas que ganham novos usos e sentidos a partir de invenções sociais sobre aquelas. Dessa forma, ambas se retroalimentam e redirecionam os processos sociocomunicacionais.
Para Bento XVI, “nestes espaços [e em qualquer modalidade de comunicação, acrescentaríamos, e não só midiatizadas] não se partilham apenas ideias e informações, mas em última instância a pessoa comunica-se a si mesma”. Portanto, o papa está ciente de que a presença digital não provocará uma “mudança de imagem” da Igreja, como alguns esperariam (uma Igreja “mais jovem” ou “mais conectada com o seu tempo”), mas sim reforçará aquilo que ela já é socialmente. Parafraseando Heidegger, a essência da mudança eclesial não está na técnica.
O segundo desafio, dessa forma, é favorecer que “a troca de informações [possa] transformar-se numa verdadeira comunicação, os contatos [possam] amadurecer em amizade, as conexões [possam] facilitar a comunhão”. Pois, como indica Bento XVI, “as redes sociais são alimentadas por aspirações radicadas no coração do homem”. A presença nas redes sociodigitais, se humilde, será de grande aprendizado para a Igreja, pois esta poderá captar ao vivo e diretamente as “aspirações radicadas no coração do ser humano” contemporâneo com relação a si mesma.
Experiência religiosa e prática sacramental
“Em alguns contextos geográficos e culturais onde os cristãos se sentem isolados – continua o papa –, as redes sociais podem reforçar o sentido da sua unidade efetiva com a comunidade universal dos fiéis”.
Isso se dá, afirma Bento XVI, porque “as redes facilitam a partilha dos recursos espirituais e litúrgicos, tornando as pessoas capazes de rezar com um revigorado sentido de proximidade àqueles que professam a sua fé”, mediante “oportunidades de oração, meditação ou partilha da Palavra de Deus”.
Como já pudemos analisar anteriormente (E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet, Ed. Santuário, 2012), as pessoas hoje passam a encontrar uma oferta de experiência religiosa não apenas nas igrejas de pedra, nos sacerdotes de carne e osso e nos rituais palpáveis, mas também na religiosidade existente e disponível nos bits e pixels na internet. Como reconhece Bento XVI, onde quer que esteja, quando quer que seja – diante de um aparelho eletrônico conectado à internet –, o fiel pode desenvolver um novo vínculo com a Igreja e o sagrado, e um novo ambiente de culto.
Porém, é preciso perceber que, se a internet traz consigo novas formas de lidar com os “recursos espirituais e litúrgicos”, a religiosidade como tradicionalmente a conhecemos também está mudando, e a nova religião que se descortina diante de nós nesse “odre novo” traz também “vinho novo” que caracteriza a midiatização digital (suas formas características de ser, existir, pensar, saber, agir na era digital).
O pontífice, ao contrário, afirma que “estas redes podem também abrir as portas a outras dimensões da fé”. Graças a um contato inicial online, as pessoas passam a descobrir “a importância do encontro direto, de experiências de comunidade ou mesmo de peregrinação, que são elementos sempre importantes no caminho da fé”. E diz: “Procurando tornar o Evangelho presente no ambiente digital, podemos convidar as pessoas a viverem encontros de oração ou celebrações litúrgicas em lugares concretos como igrejas ou capelas”.
Embora o ambiente digital não seja um mundo paralelo ou puramente virtual, como o próprio papa havia afirmado anteriormente, ele não seria suficiente para a prática sacramental (embora Bento XVI lembre que “não deveria haver falta de coerência ou unidade entre a expressão da nossa fé e o nosso testemunho do Evangelho na realidade onde somos chamados a viver, seja ela física ou digital”).
O que vemos, contudo, é a manifestação, na internet, não apenas de uma liturgia “assistida”, mas também centrada, vivida, praticada e experienciada pela mídia, em que esta também oferece modelos para as ações e o imaginário litúrgicos. Exemplo disso são as inúmeras práticas devocionais e religiosas que circularam pelas redes sociodigitais a partir da tragédia de Santa Maria: tanto no Facebook quanto no Twitter, apenas para citar as redes mais conhecidas, inúmeras mensagens religiosas e pedidos de oração manifestavam essa nova sacramentalidade que surge a partir das práticas religiosas online – mais cômodas, fáceis, simples, rápidas e acessíveis.
O terceiro desafio, portanto, é como lidar com essas midiamorfoses da fé e com essa “liturgia digital” nascente, marcada por uma lógica da seleção e por uma lógica do banco de dados, em que o fiel coconstrói a sua experiência religiosa a partir das possibilidades e limites do sistema, e das suas escolhas a partir de seus interesses e necessidades pessoais.
Como indica o próprio Bento XVI, “a confiança no poder da ação de Deus deve ser sempre superior a toda e qualquer segurança que possamos colocar na utilização dos recursos humanos”. Deus supera os limites da técnica, portanto. A internet, dessa forma, poderia também ser um “veículo da Graça” e um “sinal sensível” da ação de Deus na vida dos fiéis?
Esses desafios ainda não têm respostas prontas, mas exigem reflexão e estudos sérios, que possibilitem captar os verdadeiros “sinais dos tempos” da contemporaneidade, e não apenas suas modas passageiras. Nesse contexto, o caso @Pontifex, a conta oficial de Bento XVI no Twitter, merece ser aprofundado.
* * *
@Pontifex, o primeiro papa a tuitar
No dia 3 de dezembro do ano passado, foi lançada a conta oficial de Bento XVI no Twitter com o nome de usuário @Pontifex (pontífice, ou seja, “construtor de pontes”, em latim). Existem ainda outras oito versões para os diversos idiomas, incluindo português e latim. No total, são mais de 2,6 milhões de seguidores (a conta mais seguida é a versão em inglês, com cerca de 1,4 milhão; a conta em português possui quase 75 mil seguidores; e a conta menos seguida é a versão em latim, com cerca de 13 mil seguidores).
O primeiro tuíte foi enviado no dia 12 de dezembro, e, desde lá, o papa já enviou 28 tuítes (uma média diária de 0,6 tuítes, contando a sua última postagem no dia 27 de janeiro passado).
A revista Popoli, dos jesuítas da Itália, fez um balanço do primeiro mês de Bento XVI nessa rede, a partir da metodologia sentiment analysis, sobre um corpus de todas as 270.456 mensagens que faziam referência ao @Pontifex nesse período. E a constatação é de que as reações dos usuários à presença oficial do papa no Twitter se dividem quase igualmente entre positivas (26.426) e negativas (22.542).
Segundo a análise, percebe-se que as mensagens negativas se concentraram principalmente sobre a questão dos padres pedófilos (26%) ou consistiam em injúrias (25%). No caso das mensagens positivas, a categoria mais representada é a da retuitagem de tuítes e frases do papa (26,5%), seguida por agradecimentos e bons votos (25%).
E basta acompanhar as referências atuais ao @Pontifex (ou à sua versão em português, @Pontifex_pt) para ver que as menções nem sempre “contribuem para favorecer formas de diálogo e debate que, se realizadas com respeito e cuidado pela privacidade, com responsabilidade e empenho pela verdade, podem reforçar os laços de unidade entre as pessoas e promover eficazmente a harmonia da família humana”, como aponta Bento XVI na sua mensagem ao 47º Dia Mundial das Comunicações Sociais.
Por isso, alguns pontos merecem reflexão, pois apontam para paradoxos que contradizem ou a prática ou a teoria comunicacional da Igreja.
1) Como se viu ao vivo, no envio de seu primeiro tuíte, Bento XVI não tem qualquer familiaridade com as tecnologias digitais – diversos comentaristas confirmam que seus livros ainda hoje são escritos à mão. Portanto, a “presença oficial” do papa no Twitter é apenas simbólica. Os tuítes não são nem escritos, nem enviados por ele: cabe ao papa apenas aprovar as mensagens, escritas previamente e enviadas posteriormente pelos responsáveis da comunicação vaticana. Assim – a partir da própria mensagem do papa –, podemos questionar: a troca de informações, o contato e a conexão com os representantes do papa podem se transformar em uma “verdadeira comunicação”, podem “amadurecer em amizade”, podem “facilitar a comunhão” dos fiéis com seu pai espiritual?
2) Bento XVI, embora com milhões de seguidores no Twitter, segue apenas a si mesmo. Um avanço, se levarmos em consideração a conta oficial do Dalai Lama (@DalaiLama), que, embora com o triplo de seguidores, não segue ninguém. Porém, se esse dado não é apenas uma ideia nem uma informação, mas também o papa “comunicando-se a si mesmo”, o que significa o fato de ele seguir somente a si mesmo, em suas diversas “personalidades linguístico-digitais”? No mínimo, significa uma não compreensão da lógica e da dinâmica das redes. Não “seguir” ninguém ou seguir apenas a si mesmo é o contrário de “estar em rede”.
3) Daí decorre um terceiro elemento: a escolha da rede. Por que o Twitter? É uma dúvida honesta, levando-se em consideração o status social mundial de Bento XVI e o fato de haver outras redes sociodigitais à disposição. Segundo Dom Claudio Maria Celli, presidente do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, “não vemos a necessidade de uma presença do papa no Facebook”, já que “pela sua estrutura, o Facebook é pessoal demais. O Twitter, ao invés, é mais institucional”. E, em “institucional”, podemos ler um quê de marketing, e não apenas de práxis pastoral: um papa tuiteiro é sinal de uma Igreja “atualizada”, “atenta às novidades”, “sintonizada com o seu tempo”. Porém, é o próprio papa que reconhece que, independentemente da plataforma utilizada e das ideias e informações partilhadas, “a pessoa comunica-se a si mesma”. Na escolha do Twitter e de uma plataforma “mais institucional”, pode-se manifestar também um papa “pessoal de menos”. É esse o papel do ministério petrino?
4) Por fim, mesmo sendo mais institucional, qualquer plataforma que fosse escolhida apresentaria limites e possibilidades aos quais o papa deveria se submeter. E o Twitter não foge à regra. Bento XVI, entre um tuíte e outro, se coloca em meio ao cruzamento de sentidos sociais que varre o Twitter. Isso não necessariamente pressupõe uma perda de autoridade, pois, para seus seguidores católicos, o pontífice não perde nada com esse gesto, mas ganha ainda mais prestígio por estar “atento aos sinais dos tempos”. O que se perde é o controle sobre a imago publica. Ao descer à “praça pública e aberta” do Twitter, o papa será apenas mais um tuiteiro, ao alcance de um clique, sobre cujo perfil podemos derramar todos os discursos possíveis – e publicamente –, e estará sujeito às mesmas regras que os demais usuários, desde as mais óbvias (o papa, embora infalível e detentor do poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal sobre a Igreja, não poderá enviar um tuíte com 141 caracteres, já que o sistema só possibilita mensagens com no máximo 140), até as mais significativas (o Twitter informa que coleta e usa diversas informações de seus usuários – e de seus seguidores – para medir e melhorar seus serviços). Portanto, um banco de dados como o da conta @Pontifex (e seus derivados), com milhões e milhões de perfis reunidos e cadastrados como seguidores, oferece à empresa Twitter enormes possibilidades em termos de mineração de dados e de publicidade.
E desse cálice o papa não poderá se afastar – e nem mesmo suas orações poderão guardar os seus desse mal.
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@Pontifex e os sacros tuítes: As redes sociais digitais segundo Bento XVI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU