Por: Jonas Jorge da Silva | 12 Março 2024
“Quem se arranca de si e parte como peregrino da justiça e da paz, prepare-se para enfrentar desertos” [1], alertou-nos o irmão Hélder Câmara (1909-1999). Aquele homem de sorriso largo e sedutor, promotor da cultura do encontro, enfrentou desertos em sua própria pátria e em sua própria Igreja. Cabe-nos perguntar como a experiência espiritual deste grande ícone da Igreja do Brasil no século XX pode nos orientar na caminhada eclesial, ajudando-nos na travessia dos desertos atuais.
Dom Hélder Câmara soube transformar as adversidades em terra fértil e sua esperança jamais esmoreceu, mesmo quando a face mais sombria da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985) lhe impôs grandes golpes. Com sua capacidade de discernir os sinais do tempo, concretizou em vida o chamado da Igreja do Vaticano II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” [2].
Um encontro com Hélder Câmara, pela iniciativa Rezar com os Místicos, promovido pelo CEPAT, 10-03-2024. (Foto: Isabelle Bastos Ferreira)
“Não é aos pobres que cabe partilhar minha esperança: antes é a mim que cabe partilhar a deles”, confidenciou, certa vez, em poesia. Também é célebre a sua seguinte profecia: “Acredite que conosco, sem nós, contra nós, as massas vão abrir os olhos. As massas terão a consciência despertada. E se amanhã elas tiverem a impressão de que o cristianismo teve medo, que não teve a coragem de dizer a verdade, de mostrar a verdade, então, acabou-se o cristianismo” [3].
Homem com uma vida de oração fecunda – diz-se que acordava às 2h da manhã para rezar –, Hélder Câmara intuía que os processos de mudança social eram consubstanciais a um mergulho na própria interioridade, questionando as raízes do egoísmo humano. Foi sua vida mística que o fez antever muitos dos atuais dilemas do cristianismo, defendendo o caminho da revitalização eclesial em favor da cultura do diálogo e da solidariedade, buscando no mandato evangélico a promoção da paz e da justiça social.
Para ele, era imperante que saíssemos de nossas sacristias, tendo “o privilégio de jamais trabalhar numa paróquia. Isso teria sido para ele uma grande provação, pois na paróquia muitos se deixam aprisionar pelas coisas sagradas e perdem de vista a vida mística que deve animá-los. Tornam-se prisioneiros dos ritos e das palavras e transformam-se em funcionários da religião”, conforme escreveu a seu respeito o saudoso Pe. José Comblin [4].
Fazer memória da vida de Hélder Câmara é crucial para avançarmos no programa do pontificado do Papa Francisco, um filho do Vaticano II, do qual o bispo nordestino foi um protagonista. E hoje, quando há uma oposição cerrada de grupos conservadores às reformas do atual pontificado, vemos uma espécie de “ditadura ardilosa” que deseja deter o impossível: o sopro do Espírito Santo sobre os rumos da Igreja de Jesus Cristo.
Ainda que em contextos e posições diferentes, Francisco vem atravessando desertos muito parecidos aos vividos por Hélder Câmara. Sua legítima autoridade se vê questionada por aqueles que em outras situações recorreriam ao atributo da obediência para silenciar qualquer forma de profetismo na Igreja. Quais seriam as reações de Dom Hélder diante daqueles que, inclusive, desejam a morte do Papa? Certamente, seriam de solidariedade e fidelidade a Francisco, muito diferente de um certo silêncio que reina em muitos âmbitos da atual hierarquia eclesial.
Sabe-se que o bispo nordestino foi, acima de tudo, um homem obediente à Igreja. É verdade que possuía laços de amizade com Paulo VI, que havia grande sintonia entre os dois, assim como é verdade que com João Paulo II, mesmo quando foi deixado de lado nos últimos 14 anos de sua vida, também manteve uma atitude de reverência, cultivando um silêncio místico. É do papa polonês a famosa frase: “Dom Hélder, irmão dos pobres, meu irmão”.
Partilha em grupo – Um encontro com Hélder Câmara, pela iniciativa Rezar com os Místicos, promovido pelo CEPAT, 10-03-2024. (Foto: Isabelle Bastos Ferreira)
Quando forças reacionárias resistem à esperança dos pobres da Terra e procuram silenciar as palavras proféticas do Papa vindo “do fim do mundo”, precisamos voltar ao irmão Hélder: “Quem não confia na própria força: quem se protege contra toda e qualquer amargura; quem se mantém humilde; quem se sabe nas mãos de Deus; quem não deseja senão participar na construção de um mundo mais justo e mais fraterno, não desanima, não perde a esperança. E sente, invisível, a sombra protetora do Pai!” [5].
De fato, confiar e esperar em Deus é o primeiro ato de liberdade daqueles que não temem as mudanças. Como aponta o teólogo tcheco Tomáš Halík, “nas noites escuras coletivas da história do mundo e da Igreja, precisamos da paciência da esperança para vencer a tentação do desespero, esta ‘doença que conduz à morte’. Muitas coisas – incluindo muitas formas de Igreja e formas imaturas de fé – devem morrer. A ressurreição não é um retorno ao que era antes, mas uma mudança radical. O Cristo ressuscitado se aproxima de seus amigos como um peregrino desconhecido”. [6]
É nesse sentido que o irmão Hélder já nos advertia: “Um sacerdote, uma religiosa, ao tentarem viver o espírito do Concílio Ecumênico Vaticano II e das Conclusões de Medellín não se devem espantar ao sentirem-se incompreendidos pelos irmãos da própria Casa em que reconhecem virtudes e as melhores intenções. Isso seria o primeiro passo para a tentação de deixar a Congregação, tornar-se pessimistas e cair perigosamente na amargura” [7]. Esta mensagem não só permanece atual como também se estende a tantos leigos e leigas que buscam uma experiência de fé madura e encarnada em nossos tempos.
A Igreja de Francisco é a mesma Igreja do irmão Hélder Câmara, que é a mesma Igreja de tantos santos e profetas que nos antecederam. Com eles, precisamos atravessar os desertos de hoje. Diz o Evangelho: “O céu e a terra desaparecerão, mas as minhas palavras não desaparecerão” (Mt 24, 35). O amor de Deus transcende todos os nossos esquemas humanos e superabunda em lugares e situações insuspeitáveis, mesmo quando possa parecer que estamos exilados em nossa própria casa. Nessa direção, cristãos como Hélder Câmara nos lembram que o amor de Deus é eterno e nunca nos decepciona.
“Não deixe que o tempo escorra entre os dedos abertos de tuas mãos vazias. Segura-o de qualquer maneira para que ele vire eternidade” [8], exortou-nos Hélder Câmara. Que façamos valer o tempo que nos cabe viver, que sejamos dóceis ao Espírito Santo de Deus e que a esperança seja a nossa ousadia.
[1] Câmara, H. D. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
[2] Constituição Gaudium et Spes. In: Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000.
[3] Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde. Direção de Erika Bauer. Brasília: Cor Filmes, 2006.
[4] COMBLIN, José. A espiritualidade de Dom Hélder. Disponível em: https://teologianordeste.net/index.php/publicacoes/artigos/114-a-espiritualidade-de-dom-helder. Acesso em: 9 mar. 2024.
[5] Câmara, Hélder. D. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
[6] Halík, Tomáš. Ser católicos hoje. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/616154-ser-catolicos-hoje-artigo-de-tomas-halik. Acesso em: 9 mar. 2024.
[7] Câmara, Hélder. D. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
[8] Arquivo A: vida e obra de Dom Hélder Câmara. TV Aparecida. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=43Xo7R2OCEc. Acesso em: 7 mar. 2024.
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De Hélder Câmara a Francisco, deserto e profecia continuam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU