Desde a Lei Áurea, “as pessoas negras e periféricas acabam sendo colocadas em um espaço de estado de exceção permanente, como se as polícias pudessem suspender o direito dessas pessoas constantemente em nome de uma lei que deu brecha para tanta arbitrariedade”, ilustra o pesquisador
A escravidão foi aprovada em 1988 pela elite, para evitar a reforma agrária. De lá para cá, as classes dominantes continuaram agindo para que o racismo fosse institucionalizado e moldasse a sociedade brasileira. Um fator que também explica a criação das polícias no país, conforme esclarece o advogado Almir Felitte. Para ele, “o traço que melhor explica a criação e o desenvolvimento das polícias no Brasil é o racismo”.
O autor do livro A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente? (Autonomia Literária: 2023) pondera que “este não é o único traço, mas a história da polícia no nosso país está muito ligada ao período”. Contudo, “essa transição do trabalho escravo para o trabalho livre foi alvo de muitas preocupações das elites. O número crescente de pessoas livres circulando pelas cidades nesse período, sobretudo pessoas negras livres, era um fato que deixava a elite brasileira ressabiada”, ressalta.
É a partir da abolição da escravatura que o perfil dos presos do sistema carcerário começa a mudar, conforme descreve o pesquisador em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. É “justamente nesse período que a população carcerária, que até então era majoritariamente branca, passa por uma inversão, passando a ser de uma maioria de pessoas negras. É como se, de certa forma, sem ter mais o instituto da escravidão para exercer um controle privado sobre essa grande massa brasileira, a burguesia tivesse se utilizado da máquina estatal para criar uma forma de controle público sobre essa mesma massa”, complementa.
Ao longo da conversa, além de dizer que o lobby militar impediu que a democracia chegasse à Segurança Pública, Felitte discutiu outras questões, como a guerra às drogas, o encarceramento em massa e a explosão da violência policial nas periferias, ressaltando a tragédia provocada pela Operação Escudo, realizada na Baixada Santista. Segundo o entrevistado, esta se configura como a “maior chacina de São Paulo desde o massacre do Carandiru”.
O entrevistado ainda adverte sobre a importância medular da Polícia Militar daqui para a frente no cenário político. “A PM deve exercer um papel central no xadrez político dos próximos anos. Tanto em São Paulo como em Goiás, estamos vendo governadores que enxergam na violência policial um enorme capital político”, sustenta Almir Felitte.
Almir Felitte (Foto cedida pelo entrevistado)
Almir Felitte é mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP), advogado e academicamente atua na sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo.
IHU – Qual a questão central da segurança pública no Brasil?
Almir Felitte – Se formos debater o cenário atual, eu diria que a questão central é finalmente conseguirmos estabelecer mecanismos de controle civil sobre as polícias, principalmente sobre a polícia militar. Existem várias questões que precisam ser abordadas, é claro. A desmilitarização, o fim da guerra às drogas, o desencarceramento, o combate ao crime organizado, a violência contra às crianças e às mulheres, todos temas diretamente ligados ao enfrentamento da violência de forma geral. Além de temas interdisciplinares, com a ideia de que a segurança pública não é uma “ilha”, de que políticas de educação, emprego, lazer, cultura, também influenciam nos índices de segurança.
A questão é que, enquanto as polícias brasileiras continuarem sem qualquer mecanismo de controle civil, todos estes debates vão continuar interditados, porque nenhuma política pública que saía deles vai ser implementada na prática enquanto a polícia continuar a agir como um órgão acima da própria sociedade civil. Em suma, para nós, da sociedade civil, debatermos políticas públicas para as nossas polícias, primeiro precisamos garantir que teremos alguma governabilidade sobre elas.
IHU – Você é autor do livro História da polícia no Brasil. Pode explicar qual é a história da polícia no Brasil e como ela ajuda a compreender o estado de coisas da segurança pública hoje?
Almir Felitte – Historicamente, o traço que melhor explica a criação e o desenvolvimento das polícias no Brasil é o racismo. Não é o único traço, mas a história da polícia no nosso país está muito ligada ao período entre o começo da década de 1820, quando aparecem as primeiras leis abolicionistas, e a abolição em si em 1888. Analisando documentos e falas públicas de autoridades da época, vemos que essa transição do trabalho escravo para o trabalho livre foi alvo de muitas preocupações das elites. O número crescente de pessoas livres circulando pelas cidades nesse período, sobretudo pessoas negras livres, era um fato que deixava a elite brasileira ressabiada.
É nesse período que surgem os primeiros Código Criminal e Código de Processo Criminal no país, a figura do inquérito policial, a lei que permitiu que cada estado criasse sua própria polícia militarizada. Também é nessa época que uma grande parte das pessoas passa a ser abordada e presa pela polícia sob a acusação genérica de vadiagem. Observamos que, justamente nesse período a população carcerária, que até então era majoritariamente branca, passa por uma inversão, passa a ser de uma maioria de pessoas negras. É como se, de certa forma, sem ter mais o instituto da escravidão para exercer um controle privado sobre essa grande massa brasileira, a burguesia tivesse se utilizado da máquina estatal para criar uma forma de controle público sobre essa mesma massa. Claro que a massa trabalhadora como um todo virou alvo nessa estrutura, mas o racismo foi um componente central nessa história. E esse traço de controle social sobre a classe trabalhadora, com o racismo ocupando um lugar de destaque, vai acompanhar a história da polícia brasileira até hoje.
IHU – Como a correlação entre polícia e racismo opera no século XXI?
Almir Felitte – Veremos muitos pesquisadores dizendo que a guerra às drogas substituiu a criminalização da vadiagem na estrutura social brasileira de hoje, e essa é uma afirmação muito verdadeira. O crime de vadiagem era o que chamávamos de “crime de perigo abstrato”, ou seja, um crime em que a mera conduta, por si só, já é considerada um risco, mesmo que nenhum dano tenha sido causado. E ele também era um crime bastante genérico, aberto a interpretações, bastava uma pessoa ser acusada de não ter uma moradia fixa e uma fonte de renda para ser enquadrada e presa.
Em um país em que a abolição da escravidão não foi acompanhada por leis de moradia, terra ou inclusão de pessoas negras no mercado de trabalho, esse crime era uma justificativa perfeita para que a polícia pudesse abordar pessoas pobres, principalmente negras, nas ruas de forma completamente arbitrária, mantendo esse controle permanente sobre elas. Hoje, o tipo penal que ocupa esse espaço, já desde os anos 1970, é o da criminalização das drogas. Também é um crime de perigo abstrato, embora muitos discordem, e demasiadamente aberto.
O artigo da lei de drogas, por exemplo, tem 18 verbos incriminadores para estabelecer o que pode ser considerado tráfico. Essa abertura na lei é um prato cheio para a arbitrariedade policial. É o policial que, muitas vezes, acaba decidindo como ele vai enquadrar a pessoa que esteja portando drogas, e a versão do policial sempre acaba tendo um peso maior no Judiciário. Em um país racista como o Brasil, é claro que sabemos em quais pessoas essa arbitrariedade vai recair com mais força.
Então, as pessoas negras e periféricas acabam sendo colocadas em um espaço de estado de exceção permanente, como se as polícias pudessem suspender o direito dessas pessoas constantemente em nome de uma lei que deu brecha para tanta arbitrariedade. É uma forma de controle social, altamente racializada, que se justifica por uma pretensa segurança da sociedade, embora a violência só tenha aumentado desde então.
IHU – Há uma certa captura simbólica da pauta da segurança pública pela direita e extrema-direita no Brasil. Por que isso ocorre?
Almir Felitte – Existe uma parcela de culpa na própria esquerda partidária, que negligenciou o tema e não o levou aos espaços de poder quando teve a chance. Mas acho que é muito raso atribuir só a isso. É curioso perceber que, na comissão que tratou da segurança pública na nossa Constituinte, dos 28 convidados ao debate, 26 eram ligados às Forças Armadas ou às forças policiais do país. Houve um lobby muito forte de militares e policiais para que a arquitetura policial da ditadura fosse mantida na democracia, e foi exatamente o que eles conseguiram com o artigo 144, impedir que a democracia chegasse ao setor da segurança pública. É algo tão danoso aos nossos dias atuais quanto foi a anistia irrestrita a torturadores. Como se um pedaço da ditadura tivesse conseguido sobreviver nesse enclave dentro do próprio Estado democrático de direito.
Isso se traduz na falta de transparência das instituições policiais, na falta de abertura que elas têm às propostas da sociedade civil e, principalmente, para forcarmos nessa questão mais narrativa, no monopólio que militares e policiais têm sobre o discurso “pseudotécnico” do que deve ser a segurança pública.
No meio policial não há o menor respeito pela opinião civil, a quem eles pejorativamente gostam de chamar de “paisanos”, que o contradiga. Por isso, volto a dizer da importância dos mecanismos de controle. É preciso inverter esse jogo.
IHU – Isso tudo está relacionado ao espólio político bolsonarista, considerando que o ex-presidente está inelegível. Nesse sentido, como essa questão afeta as polícias de estados como São Paulo e Goiás, onde Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado disputam essa herança?
Almir Felitte – Ainda não temos a certeza se Bolsonaro já é carta fora do baralho, mas a questão é que o fascismo brasileiro, que temos chamado de “bolsonarismo”, é muito maior que o próprio Bolsonaro. Acho que a extrema-direita sabe disso, sabe que pode facilmente arranjar outro nome que represente o mesmo projeto.
As movimentações de Tarcísio e Caiado parecem ir nesse sentido, e nos mostram bem como a PM deve exercer um papel central no xadrez político dos próximos anos. Tanto em São Paulo como em Goiás, estamos vendo governadores que enxergam na violência policial um enorme capital político. Tarcísio e Caiado parecem se inspirar um no outro, ao mesmo tempo que competem para ver quem tem a polícia mais letal. É nítido que ambos fazem isso de olho no Planalto. E isso vem acompanhado de um movimento que está acima de nomes, que podem ser descartados, que é o movimento de uma autonomia cada vez maior sendo concedida às polícias no Brasil.
Tarcísio chegou a cogitar extinguir a pasta da segurança pública estadual para dar aos comandantes das polícias um status de secretário. Caiado já assinou decreto abrindo mão de poderes de decisão em certos casos envolvendo a segurança pública. Não é à toa que, pela primeira vez na história, o Secretário de segurança pública de SP é, ele mesmo, um policial.
IHU – Quais os riscos de uma autonomização das polícias sem controle civil?
Almir Felitte – Primeiro, é importante dizer que enxergo esse processo como algo inédito no Brasil. Na nossa história, a polícia sempre agiu como uma mera força auxiliar de grupos políticos dirigentes. Foi assim com as oligarquias, com Getúlio Vargas, com as Forças Armadas. De um tempo para cá, temos visto uma movimentação diferente.
Os membros das forças policiais têm apresentado pautas próprias, criaram seus próprios influencers e canais de mídia, organizaram seus próprios cursinhos e, hoje, foram capazes de se articular para debaterem praticamente sozinhos suas novas leis orgânicas. Um movimento que se traduziu bem nos recordes de policiais eleitos para o Congresso em 2018 e 2022, hoje algo em torno de 50. Então essa autonomização é, ao mesmo tempo, um objetivo e um meio das forças policiais em um processo de politização muito forte desse grupo.
Os riscos desse processo são vários, e o alcance deles vai depender da resposta que a sociedade civil conseguir dar a ele. Podemos falar da explosão da violência policial nas periferias, o que estaria longe de ser um evento inédito no país, mas atingindo números nunca antes vistos, ou podemos falar de algo ainda mais geral, como uma verdadeira e total captura do regime político brasileiro pelas instituições policiais. Os dois resultados seriam catastróficos para o país.
IHU – Pode falar um pouco da Operação Escudo, na Baixada Santista, e por que os assassinatos praticados pela Polícia na região não são objeto de debate público nacional?
Almir Felitte – A Operação Escudo se encaixa justamente no primeiro resultado catastrófico que expus agora. Estamos falando da maior chacina de São Paulo desde o massacre do Carandiru. Não que outras já não tenham acontecido, mas, dessa vez, a polícia teve tanta autonomia e respaldo que conseguiu dar nome e sobrenome oficiais a uma operação de vingança. Uma vingança coletiva, aliás, porque submeteu comunidades inteiras a uma violência brutal, e não apenas os responsáveis pelo assassinato de policiais.
Tarcísio e Derrite simplesmente lavaram as mãos para tudo isso em declarações que beiraram o deboche. Infelizmente, uma boa parte da população brasileira acredita que a violência policial é uma forma eficaz de combate à criminalidade, mesmo que as estatísticas mostrem justamente o contrário. Na própria Baixada Santista, por exemplo, os índices criminais aumentaram durante a operação. Mas talvez eu discorde que isso tudo não tenha sido um debate público, até mesmo com visões contrárias sendo expostas. A operação inclusive foi finalizada por conta da comoção que a morte de uma mãe de 6 crianças causou nas pessoas. A situação do país pode não ser boa nessa questão, mas creio que nem tudo está perdido. É uma disputa desigual de visões de mundo, mas ainda é uma disputa.
IHU – Um tema bastante debatido na última semana foram as chamadas “saidinhas” de apenados. Lula vetou algumas partes do projeto votado no Congresso e sancionou outras. Como essa questão, que mobiliza tanto o debate público, afeta a segurança pública?
Almir Felitte – Não acho que o tema seja só uma questão de “populismo penal” da direita como a maior parte da imprensa tem noticiado. Não são só deputados individualmente buscando votos em ano eleitoral. Vejo uma ação coordenada e acho que há uma intenção nefasta por trás disso.
Pouco se falou no assunto, mas uma parte da lei aprovada, que obriga o exame criminológico, pode, na prática, acabar com a progressão de pena no país. Se muitos pedidos de progressão de pena forem negados, com as altas taxas de encarceramento que temos, o sistema prisional brasileiro implode em questão de meses. Isso traria uma instabilidade enorme ao governo Lula, sobretudo pela narrativa de que a segurança pública é um “calcanhar de Aquiles” para a esquerda, e a direita sabe disso. Se não soubesse, por que não buscou essa medida em quatro anos de governo Bolsonaro?
Não vai ser surpresa se eles pautarem outros projetos explosivos para o sistema carcerário, como a redução da maioridade penal, em breve. A esquerda não pode dar um tiro no pé apoiando projetos como esse.
IHU – A propósito, como o superencarceramento afeta a segurança pública no Brasil?
Almir Felitte – Costumo dizer que o superencarceramento é tudo o que as facções criminosas mais querem. As pessoas esquecem, mas as grandes facções não nasceram de ruas ou favelas, elas nasceram de presídios superlotados. É nos presídios que pessoas que cometeram crimes leves acabam se vendo obrigadas a se filiarem às facções como uma forma de proteção, ou até por conta de endividamento, já que as facções vendem produtos e serviços básicos, que deveriam ser oferecidos pelo Estado, para as pessoas presas a preços caríssimos. O superencarceramento acaba agindo como um facilitador para o recrutamento que é feito por essas facções. É aí e no valor econômico da criminalização das drogas que o poderio das facções se baseou no país e se transformou nesse monstro que agora se espalha por todo o continente.
IHU – Diante de um cenário tão complexo e considerando a força política que as polícias têm no Brasil, por onde passam as soluções para o problema da polícia e da segurança pública no país?
Almir Felitte – Eu diria que passa necessariamente pela construção de mecanismos de controle da sociedade civil sobre as polícias, não só como forma de coibir a violência estatal e esse processo de milicianização das polícias que temos visto, mas também como forma de destravar todos os demais debates necessários na área da segurança. Precisamos, enfim, tomar o espaço da sociedade civil no debate, mesmo com todas as contradições que a sociedade civil possa ter.
Infelizmente, não tenho a ilusão de que isso se fará, no atual momento, sem que haja conflitos. A polícia de hoje não é a mesma de décadas atrás, embora a violência tenha sido permanente em sua história. Ela adquiriu um caráter político diferente, autônomo, que precisa ser revertido. E isso não será feito sem desagradar a maioria das próprias fileiras policiais. Não podemos repetir a anistia dada aos militares da ditadura, agora, com os policiais golpistas dos últimos anos, por exemplo. A resposta enérgica dada pelo governo federal na intervenção feita em Brasília, em janeiro de 2023, mostra um pouco do caminho das pedras que devemos percorrer, mas parece ter sido apenas pontual. Sem reverter todo este processo, não vejo com bons olhos o futuro para o nosso país. Consigo apenas enxergar a violência nas periferias chegando a níveis estratosféricos e a ascensão de um novo grupo político conservador aos espaços de poder.