“A atual proposta de reforma não toca essencialmente no principal problema do sistema tributário brasileiro, que é a injustiça fiscal, a regressividade tributária, o excesso de participação dos impostos que incidem sobre o consumo na carga tributária brasileira”, diz a economista
O Imposto de Renda “é o tributo mais importante para implementar a justiça fiscal de acordo com a capacidade de pagamento do contribuinte, segundo a Teoria de Tributação Equitativa”, afirma a economista Rosa Chieza. Para ela, enquanto os trabalhadores que recebem renda acima de R$ 2.640,00 ao mês recebem o salário com desconto do Imposto de Renda na Fonte, sócios de empresas têm isenção sobre lucros e dividendos desde meados da década de 1990. “São 27 anos de renda não tributada que se transformou em patrimônio, que também é subtributado. São tributos que deveriam estar sendo usados para toda a nação, mas estão, sim, ampliando ainda mais a desigualdade”, sublinha.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Rosa Chieza comenta os pontos positivos e negativos da Reforma Tributária em tramitação no Senado. Na avaliação dela, o que está em disputa é o modelo de Estado que se quer implementar. “Infelizmente, a proposta não envolve a justiça fiscal. Os grupos de interesse que estão mais articulados nessa temática são justamente os que têm uma concepção de Estado mínimo e que não estão interessados em defender um Estado social capaz de ampliar e fortalecer o financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS, da segurança, da educação, e as política sociais, por exemplo, no enfrentamento das questões climáticas”.
A tributação sobre grandes fortunas, exemplifica, é uma contribuição relevante para o Estado subsidiar a reconstrução de cidades que foram amplamente destruídas pelos fenômenos climáticos no Rio Grande do Sul na semana passada. “Cada vez mais vai ocorrer a destruição de cidades inteiras como estamos vivendo (…) com cidades que foram simplesmente dizimadas. Pessoas perderam suas casas, seus empregos, perderam tudo. Empresas perderam sua atividade econômica. Essas famílias e cidades não terão como se recuperar sem o apoio do Estado, e o Estado precisa cobrar tributos e vai precisar fazer escolhas: ou ele ajudará estes setores e pessoas mais fragilizados ou a desigualdade será mantida”, observa.
A atual Reforma Tributária, acrescenta Chieza, “seria muito importante se o país conseguisse encaminhar conjuntamente a tributação sobre renda e propriedade para com isso poder reduzir a tributação sobre serviços, que é alta no Brasil. Para manter a mesma carga tributária e o Estado brasileiro não perder arrecadação para financiar suas políticas sociais, seria preciso reduzir a tributação sobre o consumo e aumentar a tributação sobre a renda e propriedade. Não creio que mantendo a atual carga tributária sobre tributação e serviços será possível ampliar a tributação sobre renda e propriedade, que deve ser a segunda etapa da reforma tributária prevista”.
Rosa Chieza (Foto: Reprodução)
Rosa Angela Chieza é graduada em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, mestra e doutora em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente leciona na UFRGS.
IHU – Quais são os pontos positivos e negativos da atual proposta de Reforma Tributária em tramitação no Senado? Quais os critérios que orientam a discussão sobre reforma tributária no país?
Rosa Chieza – Eu destacaria como pontos negativos o fato de que a atual proposta de reforma não toca essencialmente no principal problema do sistema tributário brasileiro, que é a injustiça fiscal, a regressividade tributária, o excesso de participação dos impostos que incidem sobre o consumo na carga tributária brasileira. Ou seja, há um peso muito significativo na tributação sobre o consumo e não na tributação sobre propriedade e renda.
Nos países desenvolvidos, a participação da tributação sobre o consumo é muito menor do que no Brasil e a maior parte incide sobre propriedade e renda. Nos Estados Unidos, 60% do que o país arrecada são tributos que incidem sobre renda e propriedade e o restante, sobre bens de consumo e folha. No caso brasileiro é o inverso. Praticamente o que incide sobre propriedade e renda no Brasil é em torno de 30%; o restante é sobre consumo.
O outro ponto negativo que identifico está dentro de um aspecto muito importante que a norma coloca: o estabelecimento de um Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA para os veículos aéreos e aquáticos, ou seja, helicópteros e iates. Mas dentro desse aspecto positivo tem o negativo, que a própria lei complementar colocará como exceção. Isto é, que os veículos automotores aéreos e aquáticos destinados à prestação de serviço vão continuar não pagando IPVA. Diante dessa possibilidade, não temos dúvidas de que todos os iates e helicópteros serão cadastrados como prestadores de serviços e continuarão não pagando IPVA. O mais grave é estabelecer essa exceção em uma emenda constitucional; não é adequado implementar esse tipo de exceção, mas isso indica o lobby desses setores na reforma tributária. Essas exceções ficariam por conta de uma lei complementar e não deveriam ser adotadas neste momento, mas o grupo econômico é tão poderoso que já está garantindo que não vai pagar IPVA.
Outro aspecto negativo é que o ambiente político possibilitou encaminhar a atual proposta de Reforma Tributária, a qual não pretende reduzir a carga tributária dos serviços. Ela seria muito importante se o país conseguisse encaminhar conjuntamente a tributação sobre renda e propriedade para com isso poder reduzir a tributação sobre serviços, que é alta no Brasil. Para manter a mesma carga tributária e o Estado brasileiro não perder arrecadação para financiar suas políticas sociais, seria preciso reduzir a tributação sobre o consumo e aumentar a tributação sobre a renda e propriedade. Não creio que mantendo a atual carga tributária sobre tributação e serviços será possível ampliar a tributação sobre renda e propriedade, que deve ser a segunda etapa da reforma prevista.
Como positivo, vejo a questão da progressividade das alíquotas do imposto sobre herança e doação, que vai estabelecer que o imposto terá que ser progressivo – o que não havia antes na legislação brasileira. O próprio IPVA sobre veículos automotores aéreos e aquáticos é positivo, mas ressalto novamente que ninguém vai pagá-lo porque o lobby fez uma emenda que não deveria estar na Constituição.
Outra mudança positiva é feita em relação ao Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU. Até o momento, segundo o Supremo Tribunal de Justiça – STJ, o poder executivo municipal não poderia atualizar a base de cálculo do IPTU por meio de decreto, somente por lei. Agora, com essa proposta de emenda constitucional, o prefeito poderá, por decreto, atualizar a base de cálculo do IPTU a partir dos critérios estabelecidos na lei municipal. Esse era o único imposto no Brasil que não podia ter sua base de cálculo atualizada por decreto. Esse foi um avanço importante.
Outro aspecto importante é a simplificação tributária. Ela é importante, mas não é, digamos, a questão mais importante da tributação. O problema mais sério da tributação brasileira não é a necessidade de simplificação, porque o sistema tributário é complexo por natureza. Faço uma analogia a uma cirurgia cardíaca, que é complexa.
IHU – Quais as distorções corrigidas com a atual proposta de reforma?
Rosa Chieza – As principais distorções que essa proposta corrige são a exigência de progressividade no imposto sobre herança e doações e a possibilidade de atualizar a base de cálculo do IPTU por decreto do prefeito a partir de critérios estabelecidos na lei municipal. Essas são as duas grandes questões que estão equacionadas.
IHU – É possível estimar qual será o impacto econômico e social da Reforma Tributária em tramitação?
Rosa Chieza – Os estudos que temos sobre os impactos de uma reforma são aqueles que reconhecem a necessidade de integração entre a Reforma Tributária sobre o consumo e a Reforma Tributária sobre a renda. Nesse sentido, vários estudos do Instituto Justiça Fiscal e de outras instituições tratam do impacto dessa reforma. Mas é preciso ficar claro que esses estudos consideram a manutenção da atual carga tributária com a redução da tributação sobre o consumo e o aumento da tributação sobre renda e propriedade, que não é o que está sendo proposto no momento.
Os dados que vou apresentar são de estudos que propõem a manutenção da carga tributária e uma distribuição interna. Como falei, um dos aspectos negativos da atual proposta é que ela não reduz a carga tributária sobre o consumo porque não há a garantia de que vai aumentar a carga tributária sobre renda e propriedade, que é necessário e o mais importante na tributação de uma Reforma Tributária no país.
Um dos estudos trata apenas da tributação sobre mudança na composição tributária com alíquotas de 15 e 20% sobre lucros e dividendos. No Brasil, infelizmente, desde 1996, ferindo o princípio da progressividade e da generalidade, passaram a isentar, do Imposto de Renda de Pessoa Física – IRPF, as rendas advindas de lucros e dividendos. Vários estudos indicam que o retorno dessa tributação, com alíquotas de 15%, possibilitaria um aumento do crescimento econômico do PIB de 1,2%. Se fosse uma alíquota de 20%, permitiria um aumento de 1,94% do PIB e de 3,49% do consumo das famílias. Isso significa dizer que, ao aumentar a tributação sobre a renda, é possível reduzir a tributação sobre as demais faixas de renda, e possibilitaria um aumento de 2,49% na taxa de investimento.
Esses estudos levam em conta a adequação da estrutura tributária no Brasil no sentido de reduzir a tributação sobre o consumo e aumentar a tributação sobre renda e propriedade, que é muito baixa. O Brasil é um paraíso fiscal para quem tem altas rendas e grande patrimônio. Hoje, no IRPF, os contribuintes que recebem acima de 320 salários-mínimos ao mês têm 70% da sua renda isenta de Imposto de Renda. Ou seja, sobre essas pessoas que recebem – frisando – mais de 320 mil reais por mês, apenas 30% da renda é tributada. Se essa renda fosse tributada com uma alíquota de 20%, teríamos uma arrecadação de aproximadamente 100 bilhões de reais, que seria muito importante para atender o equilíbrio fiscal tão necessário.
Mas o equilíbrio fiscal não pode ser atendido com cortes em políticas sociais como saúde, educação, segurança pública. O equilíbrio fiscal precisa ser obtido via opção das renúncias de receitas, que é uma política sem transparência necessária no país. Os beneficiários dessa política, as grandes empresas, não mostram o que entregaram em troca para a sociedade nem o parlamento cobra isso no momento de aprovar as leis. O artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal ainda não é cumprido em relação aos termos de renúncia de receita. Além disso, sobre os impactos econômicos e sociais, o Brasil ainda não tributou impostos sobre grandes fortunas. Essa tributação, segundo estudos, teria uma possibilidade de arrecadação – com alíquotas muito baixas, de 0,5% e 1,5% de fortunas acima de 10 milhões de reais, com faixas progressivas – de 60 bilhões. Esse valor contribuiria para o enfrentamento das diversas mazelas, entre as quais estando aquelas decorrentes dos efeitos climáticos. Cada vez mais ocorrerá a destruição de cidades inteiras, como estamos vivendo hoje no estado do Rio Grande do Sul, com cidades que foram simplesmente dizimadas. Pessoas perderam suas casas, seus empregos, perderam tudo. Empresas perderam sua atividade econômica. Essas famílias e cidades não terão como se recuperar sem o apoio do Estado, e o Estado precisa cobrar tributos e vai precisar fazer escolhas: ou ele ajudará estes setores e pessoas mais fragilizados ou a desigualdade será mantida.
Ainda não se cumpre o artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal, conforme a qual é crime de responsabilidade fiscal – ou faz parte da gestão fiscal responsável – instituir, arrecadar e cobrar tributos de sua competência. O imposto sobre grandes fortunas é um imposto de competência da União e até hoje esse imposto não foi implementado.
IHU – Representando profissionais liberais, algumas entidades trouxeram uma proposta de tratamento diferenciado na Reforma Tributária para seus setores. O que isso significa e indica sobre o modo como de compreender esta reforma e sua função?
Rosa Chieza – A Reforma Tributária não pode se limitar às questões técnicas e aos grupos de interesse que vão calcular as perdas e os ganhos financeiros entre os setores ou entes federativos. A reforma precisa considerar que existem diferentes concepções em disputa na sociedade. Há diferentes grupos de interesse e concepções sobre modelos de Estado e sobre a capacidade que queremos atribuir a ele. Infelizmente, a proposta não envolve a justiça fiscal. Os grupos de interesse que estão mais articulados nessa temática são justamente os que têm uma concepção de Estado mínimo e que não estão interessados em defender um Estado social capaz de ampliar e fortalecer o financiamento do SUS, da segurança, da educação, e as política sociais, por exemplo, no enfrentamento das questões climáticas.
O que está em jogo são concepções de qual é o modelo de Estado e a capacidade que queremos atribuir a esse Estado. Nesse sentido, é importante ficar claro que não temos certeza de que vai acontecer o que é urgente que aconteça, isto é, a reforma do IRPF, porque os grupos que pagam menos tributo estão se articulando. Portanto, a reforma de tributação sobre o consumo não está colocando em xeque os principais problemas do sistema tributário brasileiro.
Nessa disputa em torno da Reforma Tributária também é importante entender que o tributo tem muitas funções: econômica, distributiva, de financiamento das políticas sociais. Quando não reduzem a carga tributária sobre o consumo, fica afetada a possibilidade de reduzir custos de produção e de estimular o crescimento econômico. Ou seja, o sistema tributário tem uma função distributiva.
Novamente vou frisar isto: precisamos de uma reforma em que o tributo tenha uma função redistributiva porque, ao reduzir a tributação sobre o consumo, o tributo vai desempenhar sua função econômica, uma vez que os que menos ganham pagam proporcionalmente mais tributos. A redução da tributação sobre o consumo possibilitará que haja um aumento da demanda agregada de uma grande massa de trabalhadores e consumidores, e é isso que vai permitir o crescimento econômico. Um aumento da demanda agregada pressiona o aumento da produção por parte das empresas e, por consequência, o aumento do nível de emprego. A política tributária não serve só para o financiamento das políticas sociais; ela tem uma função macroeconômica que leva à retomada do crescimento econômico por abrir espaços de ampliação da demanda agregada por uma massa de consumidores e contribuintes.
Os grupos de interesse estão olhando a reforma somente a partir das questões técnicas e dos ganhos e perdas financeiros dos diferentes setores, mas precisamos olhar esta reforma a partir do olhar da política macroeconômica. Infelizmente, os contribuintes que pagam uma carga tributária mais alta, que são os mais pobres, não estão participando do debate. Segundo o último estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, quem recebe até dois salários-mínimos tem uma carga tributária de até 50%, ao passo que quem recebe mais de 30 salários tem uma carga tributária em torno de 25%. Por isso, a proposta do Instituto Justiça Fiscal, que foi aprovada em evento no Rio Grande do Sul, é fazer conferências nacionais sobre tributação, assim como são feitas as conferências sobre saúde, educação, assistência social, porque a sociedade precisa se apropriar desses conceitos.
Quem mais paga imposto no Brasil não está se apropriando e não está travando a luta política. Por esse motivo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS temos um curso de Educação Fiscal e Cidadania em parceria com o Instituto Justiça Fiscal, com a Receita Federal do Brasil, com a Receita Estadual e outras intuições. O objetivo é mostrar como funciona e como é o sistema tributário brasileiro, para que formemos uma cidadania que possa interferir e se articular nas decisões e nos rumos do país.
Os grupos de interesse estão olhando a reforma somente a partir das questões técnicas e dos ganhos e perdas financeiros dos diferentes setores, mas precisamos olhar esta reforma a partir do olhar da política macroeconômica – Rosa Chieza
IHU – Como a senhora reitera, a reforma tributária em tramitação no Congresso altera a tributação do consumo, mas não enfrenta as distorções existentes na tributação da renda, do patrimônio e das heranças. Neste contexto, o que essa reforma significa e representa?
Rosa Chieza – Significa que não está enfrentando as injustiças do sistema tributário brasileiro, ou seja, significa que não está corrigindo o descumprimento dos princípios de progressividade, universalidade (tratar igualmente as diferentes rendas) e generalidade (tratar igualmente os diferentes contribuintes ou contemplar todos igualmente à exposição ao fato gerador) da Constituição de 1988.
O IRPF é o tributo mais importante para implementar a justiça fiscal de acordo com a capacidade de pagamento do contribuinte, segundo a Teoria de Tributação Equitativa. Apesar de apenas 15% da população brasileira declarar o IRPF, os dados revelam a desigualdade de renda. Vejamos: analisando as declarações de renda de 2021, calendário 2020, fica explícita a geração da desigualdade.
Os 31.634.843 declarantes analisados em salários-mínimos revelam que, no Brasil, contribuintes que recebem até 30 salários-mínimos ao mês, à medida que a renda cresce, também cresce a alíquota efetiva paga, atingindo o valor máximo de 10,6%. No entanto, os declarantes que recebem acima de 30 salários-mínimos, à medida que a renda cresce, pagam proporcionalmente menos IRPF.
Por exemplo, os dados mostram que um contribuinte que recebe mais de 320 salários-mínimos mensais contribui com 2,1% da sua renda apenas, ao passo que os contribuintes com renda mensal entre 5 e 7 salários-mínimos pagam proporcionalmente mais (3,87%). Estes dados mostram que o IRPF fere o critério de progressividade, previsto no artigo 153 da Carta Magna de 1988, pois quem ganha mais paga proporcionalmente menos imposto.
Além disso, os dados revelam que, à medida que aumenta a renda do contribuinte, maior é a parcela de sua renda isenta de tributação. Assim, aqueles contribuintes com renda superior a 320 salários-mínimos mensais, que são apenas 28 mil brasileiros, e que representa 0,01% da população de 206 milhões (IBGE, 2023), têm aproximadamente 70% de suas rendas isentas de IRPF. Pagam imposto apenas sobre 30% do que ganham.
Ao mesmo tempo, os contribuintes com renda mensal entre 5 e 7 salários-mínimos têm em torno de 15% de renda isenta ou não tributável, pagando IRPF sobre 85% dos ganhos. Este cenário que beneficia os contribuintes com as maiores rendas decorre principalmente da aprovação da Lei nº 9.249/1995, que isentou de IRPF as rendas advindas de lucros e dividendos – legislação que trata desigualmente as rendas provenientes do trabalho (salários), das rendas do capital (lucros e dividendos), que fere o princípio da universalidade e que contribui para que o país seja um dos mais desiguais do mundo.
Enquanto todo trabalhador já recebe o seu salário com o desconto do Imposto de Renda na Fonte – renda acima de R$ 2.640,00 mensais –, os sócios das empresas têm isenção total sobre seus lucros e dividendos desde 1996! São 27 anos de renda não tributada que se transformou em patrimônio, que também é subtributado. São tributos que deveriam estar sendo usados para toda a nação, mas estão, sim, ampliando ainda mais a desigualdade no país.
IHU – Constitucionalmente, como se entende a tributação da renda, do patrimônio e das heranças? Quais os benefícios sociais dessas tributações?
Rosa Chieza – Na Constituição Federal de 1988, consta o princípio da progressividade, isto é, os contribuintes com maior capacidade de pagamento devem pagar mais. É assim que ocorre nos países desenvolvidos. No Brasil, porém, historicamente usam-se as “ideologias desigualitárias”, conforme aponta Thomas Piketty, no campo da tributação. Aqueles com maiores rendas e patrimônio são os que menos pagam tributos e ainda são os que divulgam mitos sobre quem efetivamente paga mais tributos no Brasil.
Então, sim, no caso do IRPF é preciso ampliar as alíquotas para rendas mais altas, ampliar as faixas e tributar as rendas advindas de lucros e dividendos, e não apenas a renda de salários. Além de ampliar a progressividade dos tributos sobre patrimônio, os municípios (no caso do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU) e os estados (no caso do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD), além da União (Imposto Territorial Rural – ITR) têm grandes responsabilidades.
IHU – Quais são as principais resistências à taxação da renda, do patrimônio e das heranças? Quais grupos têm se manifestado contrários à proposta?
Rosa Chieza – Isso passa pelo debate da economia política, pois os grupos de poder, com maiores rendas e patrimônio, exercem influência sobre o Estado (poderes Legislativo, Executivo e Judiciário) e, depois de tudo, apesar de defenderem um Estado mínimo, esta defesa é apenas para os que dependem dos serviços públicos de saúde, educação assistência social. Este grupo de poder é o mesmo que defende uma austeridade fiscal, o corte de gastos públicos para as políticas sociais, mas não defende o corte dos gastos com juros, mesmo que ambos sejam pagos pelo mesmo Orçamento Geral da União – OGU.
No livro “Capital e ideologia” (Intrínseca, 2020), Piketty mostra as ideologias desigualitárias utilizadas pelo capital para se manter pagando menos tributos, comparativamente às classes com menores rendas. O debate é político. Por isso, é muito importante a formação da cidadania em educação fiscal, para que aqueles que mais pagam tomem conhecimento desta realidade, a fim de poderem exercer uma cidadania qualificada no debate democrático e contribuir para alterar este quadro de injustiças.
IHU – De outro lado, como a sociedade brasileira reage à proposta de taxação da renda, do patrimônio e das heranças?
Rosa Chieza – Infelizmente, parte da sociedade que já paga proporcionalmente mais tributos sobre sua renda em relação aos mais ricos, por desinformação, reage negativamente – lembrando que a desinformação é veiculada por um pequeno grupo de poder que paga proporcionalmente menos tributos.
O mesmo fato ocorre com a Imposto sobre Grandes Fortunas – IGF previsto na Constituição Federal. A campanha Tributar os Super-Ricos propõe isentar patrimônios de até R$ 10 milhões e cobrar alíquotas anuais modestas apenas de quem tem grandes fortunas e nunca foi taxado. A proposta é cobrar apenas 0,5% para patrimônios acima de R$ 10 até R$ 40 milhões; 1% para valores declarados entre R$ 40 e R$ 80 milhões; e 1,5% acima de R$ 80 milhões. No Brasil, apenas 65 mil pessoas têm mais de R$ 10 milhões de patrimônio declarado. Seria 65 mil pessoas de um lado, e quase 206 milhões de brasileiros, de outro.
Por que o IGF nunca foi implementado, descumprindo a Constituição de 1988 e a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000, em seu artigo 11? A Lei de Responsabilidade Fiscal, no artigo 11, aponta que é crime de responsabilidade fiscal, se o ente não instituir e arrecadar tributos de sua competência. E até hoje, 35 anos de vigência da Carta de 1988, apesar de inúmeros projetos que tramitam no Congresso Nacional, nenhum foi aprovado.
Precisamos de muita educação fiscal para que a cidadania se informe e se forme sobre o tema. Do contrário, teremos apenas “a mudança que não muda”, conforme apontou Florestan Fernandes ao analisar a Revolução Burguesa no Brasil.
IHU – Que tipo de Reforma Tributária o país precisaria para enfrentar os desafios sociais que necessitam de recursos estatais?
Rosa Chieza – Sem aumentar a carga tributária, o Brasil necessita de uma reforma tributária que comece pelo IRPF, que é o tributo mais importante para fazer justiça fiscal. É preciso ampliar a alíquota em pelo 45%, como é a alíquota no Chile e como foi determinado na Constituição de 1988, quando da aprovação do Estado de bem-estar social.
Também é preciso aumentar o número de alíquotas, implementar o imposto sobre grandes fortunas, revogar a isenção de lucros e dividendos e a tributação sobre fundos exclusivos. Hoje, se uma família ou pessoa física tem uma renda acima de 10 milhões aplicados em fundos exclusivos, o imposto não é debitado na sua conta a cada seis meses. Ao passo que qualquer outro cidadão que tenha cinco mil, dez mil, ou outro valor aplicado em qualquer fundo de investimento, tem tributo debitado a cada seis meses. É preciso que de fato haja isonomia no tratamento dos fundos; não se pode mais manter esse tipo de privilégio para grupos que têm maior poder econômico, renda e patrimônio.
Além disso, é importante implementar o imposto sobre grandes fortunas, que são rendas historicamente não tributadas. Poderia ter um imposto sobre um determinado período para suprir determinadas demandas e procedimentos do SUS porque pessoas estão morrendo. Isso permitiria reduzir a tributação sobre o consumo, que beneficiaria a todos, sem que se alterasse a carga tributária.