Na busca por solução para déficit habitacional, população de rua precisa ser ouvida. Entrevista especial com Tereza Beatriz Ribeiro Herling

Professora destaca que quem vive na rua sabe bem como pensar saídas que não só lhes concedam um teto, mas também qualidade de vida e inclusão urbana

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 08 Março 2023

Hoje, estima-se que é necessário criar 5,8 milhões de moradias para fazer frente ao déficit habitacional do Brasil. Porém, a questão é muito mais complexa do que construir quase 6 milhões de casas. Como bem destaca a professora, arquiteta e urbanista Tereza Beatriz Ribeiro Herling, os próprios números referentes ao déficit habitacional são como territórios em disputa, o que pode tensionar para empresas dos setores que defendam mais e mais programas que nem sempre atendem a população sem casa. “Há uma hipótese bastante estudada que se refere ao custo da terra nas cidades. Por um lado, o aporte de financiamento público para a produção habitacional pode ter tido efeito no aumento dos preços da terra, o que pode explicar a elevação de um dos componentes do déficit habitacional, que é o ônus excessivo com aluguel”, contextualiza.

Situações complexas não se resolvem com ações simplistas. Por isso, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Tereza defende ações intersetoriais e sem esquecer de ouvir a população que deve ser beneficiada. “É fundamental disseminar conhecimento e produzir conhecimento a partir das bases populares. A população conhece mais do que ninguém o que são os processos de segregação socioespacial. Convive com seus efeitos a vida toda”, observa.

No entanto, segundo a professora, essa população “desconhece muitas vezes seus direitos, o conjunto de direitos que nossa Constituição Federal garante e o direito à cidade. Neste sentido, é muito importante que projetos de extensão universitária sejam implementados para disseminação e troca de conhecimento e elaboração de projetos participativos a partir das realidades locais. E, claro, debater projeto e planejamento com o olhar da distribuição de recursos, tema diretamente ligado à elaboração e execução do orçamento municipal”, indica.

Tereza Beatriz Ribeiro Herling (Foto: Arquivo pessoal)

Tereza Beatriz Ribeiro Herling possui graduação e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo – USP. Sua atuação profissional é voltada para a área de urbanismo e habitação social. Atualmente, trabalha como professora de projetos urbanos e urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Confira a entrevista.

IHU – Qual é o tamanho do déficit habitacional que temos hoje? Como podemos compreender esse alto índice?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – O déficit habitacional brasileiro está estimado em 5,8 milhões de domicílios. Há uma persistência desse número em patamares altos, mesmo com a produção em larga escala ocorrida durante os governos Lula e Dilma, a partir de 2009, com a implantação do programa Minha Casa, Minha Vida.

Vale lembrar que o cálculo do déficit habitacional no Brasil em si é objeto de disputa, especialmente por aqueles setores interessados em advogar pelo aumento da produção de casas em larga escala. Portanto, os valores que servem de referência para essa resposta foram extraídos do trabalho da Fundação João Pinheiro, que vem realizando importante trabalho metodológico de análise e cruzamento dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE para o cálculo das necessidades habitacionais, classificadas em inadequação habitacional e déficit habitacional.

Enquanto a inadequação pode ser resolvida sem a necessidade de substituição do domicílio, através de programas habitacionais de urbanização, regularização fundiária e melhorias habitacionais, o déficit é composto por necessidades tais que demandam ou a substituição do imóvel por um novo (caso dos imóveis rústicos), ou a necessidade de produção para atendimento às dificuldades das famílias em acessar um novo imóvel (seja pelo ônus excessivo com aluguel, seja por coabitação familiar, ou adensamento excessivo em imóveis alugados). Os valores produzidos pelas pesquisas da Fundação João Pinheiro consideram apenas o retrato das necessidades no momento da pesquisa e não consideram a demanda futura.

Custo da terra nas cidades

Em 2010, o déficit estava calculado em 6,9 milhões de domicílios. Em 2015, passa para 6,3 milhões e em 2019 volta para o patamar de 5,8 milhões de domicílios. [1] No mesmo período, segundo dados da Secretaria Nacional de Habitação, foram contratadas 5,3 milhões de unidades habitacionais, das quais 1,8 milhão para a Faixa 1, que correspondia às famílias com renda média mensal de R$1.800,00 à época. Por que então o déficit persiste, se a produção foi tão expressiva, a mais expressiva da história para essa faixa de renda?

Há uma hipótese bastante estudada que se refere ao custo da terra nas cidades. Por um lado, o aporte de financiamento público para a produção habitacional pode ter tido efeito no aumento dos preços da terra, o que pode explicar a elevação de um dos componentes do déficit habitacional, que é o ônus excessivo com aluguel.

A tabela abaixo mostra que, mesmo com uma queda de 9% no número global do déficit entre 2010 e 2015, o aumento do ônus excessivo com aluguel teve um aumento de 50%.

 

 

Em São Paulo, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor variou 85,72% entre 2008 e 2018, a variação dos preços de aluguel em igual período variou 236,53%, o que pode explicar o aumento do peso desse item no orçamento familiar.

 

Não tenho dados disponíveis sobre o aumento dos aluguéis durante e depois da pandemia em São Paulo e no Brasil, mas com certeza a queda de renda das famílias pode ter feito com que o valor dos aluguéis pesasse ainda mais em seu orçamento. O que pode explicar o aumento de despejos e da população em situação de rua. Segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, a população em situação de rua no Brasil cresceu 38% entre 2019 e 2022, atingindo 281.472 pessoas.

IHU – A Prefeitura de São Paulo está implementando o projeto Reencontro que, entre outras medidas, cria casas de 18 m² e auxílio entre R$ 600 e R$ 1,2 mil a quem abrigar sem-teto. Como a senhora avalia medidas como essas, baseadas no modelo Housing First, que prioriza a moradia como ponto de partida para outros direitos sociais da população em situação de rua?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Eu não tenho experiência direta com programas de assistência à população em situação de rua, mas sim na área de habitação social e desenvolvimento urbano. A partir dessa experiência, posso afirmar que a população em situação de rua é hoje composta por grupos diversos, situações bastante diversas, que demandam serviços públicos de assistência social, saúde, direitos humanos e habitação de forma integrada.

Em São Paulo, o Plano Municipal de Habitação de 2016 propôs o Programa de Moradia Social, que previa ações de acolhimento institucional intensivo, aluguel de imóveis privados para abrigamento transitório e locação social.

Ainda não tive oportunidade de conhecer de perto a Vila Reencontro, mas avalio que é uma iniciativa bastante positiva, principalmente se considerarmos que ela é transitória e que o apoio do serviço social pode contribuir para a diminuição do tempo de estada da família neste local. As casas são diminutas, principalmente se considerarmos que são famílias com crianças.

Outro ponto importante de um programa como esse é a seleção de pessoas com condições de conviver entre si nesta vila, dadas as condições de saúde específicas que cada pessoa enfrenta (drogadição, alcoolismo, entre outros). Não conheço o trabalho social que vem sendo feito, mas suponho que a seleção das famílias considera esses fatores. Por outro lado, há um enorme contingente de pessoas com problemas de saúde que necessitam de tratamento intensivo. Esse problema não é abordado por esse programa.

Sobre o auxílio, não tenho notícias de sua aplicação até o momento.

IHU – Em São Paulo, mas também em outras capitais, já foram abertos editais para que hotéis e pensões ofereçam abrigos provisórios a pessoas em situação de rua, mas muitos desses certames deram deserto. O que isso indica?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Indica duas coisas: um certo preconceito de donos de hotéis e pensões em receber essas famílias e a desconfiança nas garantias dadas pelo poder público. Em 2001-2004, trabalhei na Secretaria Municipal de Habitação, na Cohab. Procuramos implementar esse programa, que teve um certo alcance inicial. A experiência nos indicou a necessidade de um aporte maior de garantias e um grupo especial de gestão para a negociação, especialmente daqueles hotéis populares que tinham sua capacidade bastante subutilizada.

É uma iniciativa que demanda muito esforço de gestão e negociação. Seria interessante estudar as condições que levaram a Prefeitura de Londres a ter sucesso no aluguel de quartos em hotéis para abrigar a população de rua durante a pandemia de Covid 19.

IHU – Diante do atual contexto econômico e social da população em situação de rua, como conceber um projeto ideal de habitação social que os atenda?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Acredito que um programa deste tipo demanda forte articulação intersecretarial, com membros de secretarias da Saúde, Assistência Social, Trabalho, Direitos Humanos e Habitação. Em segundo lugar, demanda pesquisa de campo extensa para mapear as diferentes situações a tratar – desde aquela família que acabou de ser despejada e foi morar na rua por falta de opção, mas que ainda tem condições físicas e mentais de se reerguer, até aquelas situações extremas de pessoas que estão com sua saúde física e mental fortemente abaladas por um tempo mais alongado de vida na rua.

Neste sentido, um programa ideal seria composto por vários subprogramas, com metas diferentes, com investimentos em ações sociais e produção habitacional também diferentes.

IHU – Um dos grandes programas dos governos petistas anteriores foi o Minha Casa, Minha Vida. Como avalia a concepção e a condução desse programa em termos de habitação popular? Caberia a reedição desse programa agora, para fazer frente a esse déficit habitacional?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Sim, com certeza caberia sua reedição. Participo de uma rede de articulação de movimentos sociais, academia e entidades da sociedade civil chamado BrCidades. Em fevereiro lançamos um manifesto a favor da participação na revisão do programa, com pontos a melhorar, como a localização dos empreendimentos em áreas mais bem servidas de infraestrutura urbana, serviços e equipamentos sociais.

IHU – Entre as primeiras ações do novo governo Lula está a recriação do Ministério das Cidades. Em que essa medida pode contribuir para a concepção de políticas públicas e fontes de financiamento para programas destinados a populações em situação de rua?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Essa medida é fundamental para retomar programas de investimento em habitação de forma planejada, com horizontes de investimento de curto, médio e longo prazos, com ações de negociação de conflitos para evitar despejos forçados, com investimentos em produção habitacional e, também, em urbanização integral de assentamentos.

IHU – Na fala de diversas lideranças do governo Lula, inclusive o próprio presidente, tem-se destacado o tema da transversalidade. Pensando na população em situação de rua, como e com que ministérios é fundamental construir essa transversalidade?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Transversalidade é essencial para dar atendimento adequado às diferentes necessidades dessa população que, definitivamente, não pode ser tratada de forma homogênea por um único programa. Ela deve incluir necessariamente representantes dos ministérios da Saúde, do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome, das Cidades (Secretaria Nacional da Habitação), dos Direitos Humanos.

IHU – O padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, na Arquidiocese de São Paulo, tem denunciado a forma como as pessoas em geral e a arquitetura das cidades não sabem acolher e nem dialogar com a população em situação de rua. Como reverter esse cenário e qual o papel da arquitetura e do urbanismo nesse contexto?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Uma forma de reverter é dar visibilidade para o problema e, nesse sentido, padre Júlio Lancelotti é essencial e seu trabalho deve ser publicizado, divulgado, apoiado pelo maior número de entidades e movimentos sociais possível.

Outra forma é tratar o problema com a seriedade que ele merece, em seus vários aspectos, dentro das universidades. Sou professora de projetos urbanos na FAU Mackenzie e tenho me surpreendido positivamente com o aumento do interesse de alunos e alunas sobre o tema. A formação de uma nova mentalidade, a disseminação de informação e a proposição de soluções é fundamental para reverter o quadro de indiferença e preconceito com que a sociedade tem tratado do problema.

IHU – A senhora atuou como consultora de políticas públicas de desenvolvimento urbano e habitacional para o Banco Mundial. A partir dessa experiência, que exemplos de projetos de sucesso em habitação social a senhora destaca?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – São inúmeros os exemplos positivos. Eu destacaria o já aclamado caso de Medellín, de urbanização integral de assentamentos precários associados a uma política urbana de médio prazo, com investimentos em transporte público e urbanização. É um exemplo que dialoga diretamente com nossas condições institucionais, políticas, urbanas, sociais. É um exemplo do que um país latino-americano é capaz de produzir.

IHU – Quais os desafios para incluir a população e motivar a participação popular nas discussões sobre planejamento urbano? Nesse sentido, experiências como o orçamento participativo são ainda interessantes ou já há outras concepções?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Sim, o orçamento participativo é fundamental. Mas, inicialmente, é fundamental disseminar conhecimento e produzir conhecimento a partir das bases populares. A população conhece mais do que ninguém o que são os processos de segregação socioespacial. Convive com seus efeitos a vida toda. Mas desconhece muitas vezes seus direitos, o conjunto de direitos que nossa Constituição Federal garante e o direito à cidade. Neste sentido, é muito importante que projetos de extensão universitária sejam implementados para disseminação e troca de conhecimento e elaboração de projetos participativos a partir das realidades locais. E, claro, debater projeto e planejamento com o olhar da distribuição de recursos, tema diretamente ligado à elaboração e execução do orçamento municipal.

IHU – Outro tema emergente quando se trata de planejamento e desenvolvimento urbano é a questão ambiental. Como avalia as discussões sobre o tema que tem sido proposto pelas administrações públicas das grandes cidades no Brasil?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – Eu não tenho um panorama geral do que vem sendo proposto pelas administrações das grandes cidades brasileiras. Mas, de maneira geral, vejo que há um enorme atraso na elaboração de políticas públicas que considerem que o combate à pobreza e a garantia do direito à moradia digna e à cidade são elementos-chave de qualquer política ambiental. Caso contrário, veremos sempre as mesmas tragédias se repetirem, agora agravadas pelas mudanças climáticas.

IHU – Qual a importância de trabalhar os conceitos de habitação social e preservação ambiental concomitantemente?

Tereza Beatriz Ribeiro Herling – É o de garantir que as áreas melhor localizadas sejam compartilhadas por todos, de modo a evitar a ocupação de áreas impróprias por aqueles que não têm dinheiro para acessar uma moradia adequada fora das áreas de preservação, de risco etc.

Nota:

[1] Dados da Fundação João Pinheiro, disponíveis aqui. A evolução do déficit habitacional é: 2010 – 6.921.961 domicílios; 2015 – 6.355.742 domicílios; 2016 – 5.657.249 domicílios; 2017 – 5.970.663 domicílios; 2018 – 5.870.041 domicílios; 2019 – 5.876.699 domicílios.

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