A contaminação por mercúrio na Amazônia, consequência do aumento das atividades em garimpos e da devastação da floresta. Entrevista especial com Heloisa Meneses

Segundo pesquisadora, a zona urbana de Santarém, no Pará, apresenta níveis de contaminação superiores ao recomendado pela Organização Mundial da Saúde

Imagem do sobrevoo na região de garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, no Pará (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real)

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 06 Abril 2022

 

Uma pesquisa inédita divulgada recentemente aponta que mesmo quem vive a 300 quilômetros dos garimpos ilegais que ficam no rio Tapajós está exposto aos malefícios do mercúrio. Segundo a pesquisa Mercury Contamination: A Growing Threat to Riverine and Urban Communities in the Brazilian Amazon, mais da metade dos moradores da zona urbana de Santarém apresenta níveis de contaminação por mercúrio até quatro vezes superior ao limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde. “A sintomatologia da exposição ao mercúrio é variada, mas em geral os sintomas começam mais brandos e vão se agravando com o tempo, conforme a exposição vai piorando”, acrescenta Heloisa Meneses, da Universidade Federal do Oeste do Pará, que também atuou nos estudos.

 

De imediato, associamos que toda essa contaminação tem relação direta com o aumento da atividade nos garimpos. Mas o que não imaginamos é que a situação pode ser ainda pior. “O garimpo, apesar de ter um efeito grande, não é o único responsável pela contaminação mercurial do ambiente amazônico”, revela a professora. “O garimpo é uma das fontes de contaminação do ambiente. Cessar o garimpo é reduzir a emissão de mercúrio no ambiente. Mas para zerar esta emissão também seria necessário cessar o desmatamento, as queimadas, a instalação das usinas hidrelétricas”, completa.

 

Ou seja, a destruição ambiental na região amazônica por outras atividades ainda torna os danos causados pelo garimpo ilegal ainda mais graves. “É possível supor que vai piorar a exposição humana nos próximos anos. Os efeitos para a saúde dependem do tempo a que estão sujeitos a essa exposição. Enquanto houver contaminação do ambiente, vai haver riscos para a saúde. Mesmo que toda a liberação de mercúrio fosse cessada hoje, ainda seriam necessários muitos anos para reduzir os riscos para a saúde humana”, analisa a pesquisadora.

 

Heloisa Meneses (Foto: Arquivo pessoal)

 

Heloisa Meneses é professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal do Oeste do Pará e coordenadora do Laboratório de Epidemiologia Molecular.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Para contextualizarmos nossos leitores, gostaria que a senhora explicasse como foi a pesquisa Mercury Contamination: A Growing Threat to Riverine and Urban Communities in the Brazilian Amazon. Qual o recorte de espaço (geográfico) e tempo e como foi abordada metodologicamente (coleta das amostras e análise em laboratório)?

 

Heloisa Meneses – Foi realizada uma pesquisa transversal com 462 moradores da área ribeirinha e urbana do município de Santarém (Pará), na região do Baixo Tapajós, durante os anos de 2015 e 2019. Coletamos sangue para medir os níveis de mercúrio e realizar as análises bioquímicas e aplicamos um questionário para informações sociodemográficas, hábitos alimentares e de saúde.

 

 Mapa da região, localizando região de Santarém | Imagem: Mercury Contamination: A Growing Threat to Riverine and Urban Communities in the Brazilian Amazon

 

IHU – Por que o mercúrio é nocivo à saúde? Quais são seus principais efeitos?

 

Heloisa Meneses – O mercúrio é um tipo de metal pesado que não tem função no corpo humano, por isso quando encontrado no corpo humano pode ser prejudicial à saúde. Os efeitos da exposição dependem da forma de mercúrio a qual se foi exposto e, também, do tempo de duração da exposição.

No caso da pesquisa, avaliamos a exposição crônica ao metilmercúrio. Moradores da região que possuem um hábito frequente de consumir peixe, ano após ano, várias vezes por semana, estão sob risco de exposição e consequentemente de desenvolver problemas de saúde, como dor de cabeça, fraqueza muscular, tremores, déficit de memória e problemas de visão e audição, entre outros. A sintomatologia da exposição ao mercúrio é variada, mas em geral os sintomas começam mais brandos e vão se agravando com o tempo, conforme a exposição vai piorando.

 

 

IHU – De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS, quais são os níveis toleráveis de mercúrio no sangue e qual é a média encontrada pela pesquisa que a senhora coordenou, cujo dado indica que 57,1% dos participantes moradores da área urbana de Santarém têm taxas elevadas?

 

Heloisa Meneses – A OMS considera como aceitável (baixa exposição) um nível de até 10 microgramas por litro de mercúrio no sangue. Níveis de mercúrio acima deste valor são considerados como alta exposição, pois já podem causar danos à saúde humana.

Dos 462 participantes da pesquisa, 203 eram da área urbana e 259 da área ribeirinha. Destes, 349 (75,6%) tinham níveis de mercúrio acima do considerado aceitável pela OMS, e a média de mercúrio encontrado nestes foi de 48,3 microgramas por litro de mercúrio no sangue. Entre os 203 participantes da área urbana, 57,1% estavam com os níveis acima de 10 microgramas por litro de mercúrio no sangue, com uma média de 21,8 microgramas por litro de mercúrio no sangue. Portanto, encontramos participantes com níveis de alta exposição ao mercúrio tanto na área urbana como na área ribeirinha.

 

 

IHU – Uma das conclusões do estudo é que os níveis de mercúrio no corpo advêm do consumo frequente de peixes e que a contaminação está associada à atividade de garimpo ilegal no alto e médio Tapajós, distante cerca de 300 quilômetros de Santarém. Por que mesmo com essa distância há contaminação?

 

Heloisa Meneses – Diferentes atividades são responsáveis pela contaminação por mercúrio do rio Tapajós, entre elas o garimpo, mas o desmatamento e as queimadas também contribuem para a contaminação mercurial do ambiente amazônico. Por isso que, assim como em Santarém, outros municípios localizados às margens do Tapajós também podem estar sujeitos aos efeitos da contaminação ambiental, visto que o mercúrio pode ser transportado para outros lugares através do ar (no caso do vapor de mercúrio) e da água, contaminando áreas afastadas do garimpo, mas que estão sujeitas ao desmatamento e às queimadas.

 

 

IHU – Além da contaminação por ingestão de peixes e água contaminada, há riscos ao se banhar no Tapajós?

 

Heloisa Meneses – Não é contaminação e sim exposição ao mercúrio. Não existe risco ao tomar banho no rio Tapajós. Não existem dados que comprovem exposição através do consumo de água. A exposição ocorre ao longo dos anos, é uma exposição através da ingestão de peixe contaminado com metilmercúrio e depende do tipo e da quantidade de peixe consumido ao longo dos anos.

 

 

IHU – Qual a importância de se incluir testagem de níveis de mercúrio na rede de atenção básica de saúde?

 

Heloisa Meneses – A dosagem dos níveis de mercúrio é importante para identificar se a pessoa está ou não exposta ao mercúrio. Como os sintomas são diversos e não constituem uma doença exatamente (por isso não falamos em contaminação), o quanto antes os sintomas forem identificados, mais rapidamente eles poderão ser tratados.

Quando não identificados, os sintomas podem agravar e podem inclusive se tornar irreversíveis. Como o metilmercúrio afeta principalmente o sistema nervoso central, muitos sintomas são graves e por isso precisam ser identificados logo no início para que possam ser tratados logo. Para relacionar os sintomas com a exposição ao mercúrio é necessário ter a dosagem deste no sangue para se confirmar a exposição. Portanto, a dosagem de mercúrio faz parte do diagnóstico da exposição a ele.

 

 

IHU – Não existem dados que comprovem exposição através do consumo de água?

 

Heloisa Meneses – Não existem dados que comprovem a exposição através do consumo de água. A exposição observada na Amazônia é a ambiental (através do consumo de peixe contaminado com metilmercúrio) e a ocupacional (relacionada ao ambiente de trabalho, que neste caso seria através da inalação do vapor de mercúrio, durante a queima do ouro).

 

 

IHU – Do ponto de vista ambiental e da saúde pública, qual a importância de cessar o garimpo na Amazônia?

 

Heloisa Meneses – O garimpo é uma das fontes de contaminação do ambiente. Cessar o garimpo é reduzir a emissão de mercúrio no ambiente. Mas, para zerar esta emissão, também seria necessário cessar o desmatamento, as queimadas, a instalação das usinas hidrelétricas. O garimpo, apesar de ter um efeito grande, não é o único responsável pela contaminação mercurial do ambiente amazônico.

 

 

IHU – Qual a correlação entre o alto consumo de pescados e as crises econômica e social que o Brasil vem enfrentando nos últimos anos, agravadas pela pandemia?

 

Heloisa Meneses – A crise econômica, provocada principalmente pela pandemia, trouxe um aumento no preço dos alimentos, especialmente carne e frango. No entanto, mesmo antes da pandemia, o consumo do pescado já era um hábito comum na região amazônica. O peixe sempre foi a principal fonte proteica da maioria da população amazônica. O consumo de carne e frango sempre foi menor que o do pescado, principalmente na área ribeirinha.

Então, não podemos afirmar que a crise econômica aumentou o consumo de pescado, visto que este consumo sempre foi alto na região. Inclusive por isso a grande preocupação com a saúde destes moradores, pois o consumo de pescado foi, é e continuará sendo grande nesta região, pois o peixe tem um grande valor cultural.

 

 

IHU – A coleta de dados de sua pesquisa encerrou em 2019, mas de lá para cá há dados que indicam que o garimpo na Terra Indígena Munduruku, localizada no médio Tapajós, cresceu em 363%. A que riscos esta população pode estar submetida?

 

Heloisa Meneses – Com o crescimento do garimpo, assim como do desmatamento, aumenta a liberação de mercúrio no ambiente. Então, é possível supor que vai piorar a exposição humana nos próximos anos. Os efeitos para a saúde dependem do tempo a que estão sujeitos a essa exposição. Enquanto houver contaminação do ambiente, vai haver riscos para a saúde. Mesmo que toda a liberação de mercúrio fosse cessada hoje, ainda seriam necessários muitos anos para reduzir os riscos para a saúde humana.

 

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Heloisa Meneses – Pontos importantes:

- A contaminação do rio Tapajós não deve interferir no turismo da região: os turistas não vão estar expostos ao tomar banho de rio e nem ao comer o peixe, pois a exposição que pode trazer graves consequências para a saúde é a de tipo crônica (um ano ou mais de exposição).

- A pesquisa revelou uma exposição e não uma contaminação ao mercúrio. Portanto, não podemos afirmar que todos os participantes da pesquisa ou mesmo a população está doente. O que podemos afirmar é que aqueles que possuem níveis considerados de alta exposição, estão sob risco de apresentar sintomas, mas não temos como afirmar quais serão e nem quando eles vão ocorrer, visto que existem vários fatores que influenciam no surgimento destes. No entanto, precisamos identificar precocemente a exposição para poder prevenir estes efeitos/sintomas.

- A população não deve deixar de consumir peixe. A recomendação é diversificar o tipo de peixe consumido: dar preferência aos peixes menores. E, sempre que possível, reduzir a quantidade consumida e a frequência com que se consome o peixe. Quando possível, alternar o consumo de peixe com outras fontes de proteína, e consumir frutas e alimentos antioxidantes.

 

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