Política nacional de habitação: "o desafio é não pensar em pacotes". Entrevista especial com Camila Leal Costa

"Para termos uma transformação das cidades, precisamos, primeiro, de uma transformação social", diz a arquiteta e urbanista

Conjunto popular habitacional | Foto: Ubirajara Machado / Ministério do Desenvolvimento Social

Por: Patricia Fachin | 28 Setembro 2021

 

"As cidades são um reflexo da nossa sociedade. O que é produzido enquanto cidade é um reflexo da sociedade". É a partir desse raciocínio que Camila Leal Costa, conselheira do Conselho de Arquitetura e Urbanismo Nacional - CAU, analisa e reflete sobre o déficit habitacional brasileiro que, em 2019, era de 5,8 milhões de moradias. Segundo ela, esse contingente, que possivelmente já é mais expressivo depois de dois anos de pandemia, expressa as profundas desigualdades que marcam a sociedade brasileira: moradias inadequadas, coabitação, habitações em locais irregulares, com falta de acesso a serviços, como, abastecimento de água, energia, problemas de mobilidade e gasto excessivo com aluguel. "Não tem como falarmos do problema da moradia no Brasil sem falar do acesso à terra. Ter onde construir a moradia e depois ter o recurso para construí-la estão diretamente ligados", assegura.



Na entrevista a seguir, concedida via a plataforma Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Camila argumenta em favor de uma política habitacional que leve em conta as particularidades habitacionais não só dos grandes centros, mas dos municípios interioranos, considerando as características e necessidades de cada habitação. "Não tem como pensar uma política habitacional que vá atender São Paulo e Picuí, no interior da Paraíba. São coisas totalmente diferentes. Então, o grande desafio de se pensar a política nessa escala nacional é considerar justamente a diversidade e não pensar em pacotes. Temos uma herança de pensar modelos, pacotes, receitas de bolo, que vem do modernismo, dos padrões, das normas, mas que não cabem mais para a dinâmica contemporânea", propõe.

 


Camila Leal Costa (Foto: Arquivo pessoal)

Camila Leal Costa é arquiteta urbanista formada pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB e mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Atualmente é Conselheira Federal do CAU.BR, Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, pelo estado da Paraíba. Tem experiência no acompanhamento de políticas urbanas com foco em pequenas cidades e na docência em curso de arquitetura e urbanismo, ministrando disciplinas de planejamento e de análise urbana.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Qual é o déficit habitacional do Brasil hoje e em que regiões do país o déficit é maior? Ele aumentou com a pandemia?

Camila Leal Costa – O dado com o qual trabalho é o da Fundação João Pinheiro, cujo último levantamento foi feito em 2019. Com certeza, hoje, esse dado está defasado. Mas em 2019 o déficit habitacional era de 5,8 milhões de moradias, principalmente concentrado no Norte e Nordeste. É importante entendermos o que é o déficit habitacional, porque não se trata apenas de falta de moradia. Quando analisamos o déficit habitacional, estamos falando de moradias inadequadas, de coabitação, habitações em locais irregulares, com falta de acesso a serviços, como abastecimento de água, energia, problemas de mobilidade e gasto excessivo com aluguel. Todas essas variáveis compõem esse índice de 5,8 milhões de moradias. Mas, sem dúvida, com a pandemia, esse número deve ter aumentado significativamente, até porque esse já era um número que estava em crescimento ao longo dos anos.

 

 

IHU - O problema da moradia não é um problema isolado. Que outros problemas sociais circundam essa questão no Brasil?

Camila Leal Costa – Não tem como falarmos do problema da moradia no Brasil sem falar do acesso à terra. Ter onde construir a moradia e depois ter o recurso para construí-la são fatores que estão diretamente ligados. As ocupações irregulares, as favelas, as ocupações clandestinas estão nesse cenário e, portanto, temos que pensar a habitação não como algo isolado, mas onde ela está localizada, em que contexto está inserida, quais os serviços que estão disponíveis na região.

 

 

Programas habitacionais

Não adianta termos programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida ou o Casa Verde e Amarela, e pensar as habitações de maneira isolada. Às vezes tem uma ocupação irregular no centro da cidade, onde a vida das pessoas funciona, mas elas são retiradas dali e colocadas na periferia, sozinhas. Como essas pessoas vão viver e trabalhar? Portanto, não é possível colocar a questão da habitação separada da discussão sobre a cidade e o acesso à terra. Quando pensamos as habitações, a terra é o instrumento de maior valor, porque no conjunto da habitação ela é o elemento mais caro, e não a construção da unidade habitacional em si. Nesse sentido, a construção civil que constrói habitação popular juntamente com os programas de governo pensa no maior lucro possível e, para obter esse lucro, investe em uma terra mais barata, que é aquela que não tem infraestrutura. Então, é uma engrenagem.

 

 

IHU - Além da questão fundiária, a que outros fatores você atribui, de um lado, a falta de moradia e, de outro, a má qualidade de inúmeras habitações no país?

Camila Leal Costa – É um conjunto que está atrelado à base econômica e à estrutura capitalista, mas também à estrutura social, quando pensamos, por exemplo, nas desigualdades, no racismo, no machismo, na questão de gênero. Cada camada dessas é um fator a mais que dificulta essa relação e esse acesso.

 

 

Programa habitacional versus política pública

A falta de moradia e a má qualidade das habitações estão relacionadas basicamente à questão econômica. As opções de moradias pensadas sempre vêm em um pacote de programa e, nesse sentido, temos que diferenciar o que é política habitacional, o que é programa habitacional e o que é o produto, a edificação em si. Quando o produto é ligado exclusivamente à questão econômica, as empresas sempre buscam o maior lucro. Então, vão trabalhar com produtos de menor qualidade, com produção em massa, em larga escala, e tudo que pode ser feito para diminuir o custo da habitação – o que vai impactar na qualidade –, será feito; essa é a lógica que existe hoje nos programas habitacionais. Não podemos chamar isso de política, porque a política diz respeito ao conjunto todo, no sentido de repensar a lógica [da habitação]. O programa entra apenas como uma ação e não vai resolver a questão habitacional. Ficar pensando programas pulverizados não é pensar política habitacional.

 

IHU – Como os programas e as políticas habitacionais têm sido pensados no país? Que modelo essa política poderia existir, considerando a diversidade das cidades brasileiras?

Camila Leal Costa – Se fizermos um breve resgate histórico da habitação no país, a partir da criação do Ministério das Cidades [criado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1º de janeiro de 2003], veremos que esse foi o momento em que essa política começou a ser pensada. Primeiro, porque existia um ministério que pensava todas as questões ligadas às cidades, com seus respectivos eixos, saneamento, mobilidade, transporte, habitação e programas urbanos de maneira articulada. Isso é pensar política. Se iniciou, inclusive, a política nacional de habitação. Com isso, foi criada a lei do Sistema Nacional de Habitação e de Interesse Social [2005] e, posteriormente, a lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social - ATHIS, em 2008, e aí começamos a pensar vários aspectos, para elaborar e pensar uma política macro.

 

 

Minha Casa Minha Vida: um programa econômico

Nesse contexto, de repente, surge o programa Minha Casa Minha Vida. Vários pesquisadores, como Raquel Rolnik e Erminia Maricato, fazem críticas ao programa porque ele veio como a solução para o problema, com a proposta de construir milhões de habitações, mas descolado do que vinha sendo pensado, e com o objetivo muito mais de dinamizar a economia naquele momento de crise do que resolver o problema habitacional. Nesse sentido, ele se tornou mais um programa econômico do que habitacional.

Se pensarmos na quantidade de habitações produzidas – não lembro do número agora – e as faixas I, II, e III, veremos que a maior parte das habitações não foi destinada à faixa I, que seria o público mais pobre e que mais necessita, mas, sim, as faixas II e III, que eram aquelas que contavam com financiamento e com subsídio do governo. Mas pensando em um programa, é nas faixas II e III onde justamente se teria a maior margem de lucro e de pagamento por parte das pessoas, porque o governo não estaria dando a habitação. Por isso digo que esses programas pontuais são descolados e não pensam o todo.

 

 

Soluções variadas

Não existe uma única solução para tratar esse problema. Há casos em que é necessária a construção de novas habitações, mas em outros, bastaria a recuperação de edificações vazias nas áreas centrais, que podem ser transformadas em habitação. Além disso, tem políticas de aluguel social, e a própria lei de Assistência Técnica, que permitiria melhorias habitacionais para resolver alguma questão, porque às vezes a moradia já tem uma certa estrutura, mas falta um banheiro, um problema de coberta [telhado], não tem uma janela. Nesses casos, não precisaria fazer uma nova unidade; seria possível melhorar aquela que já existe e minimizar o número do déficit habitacional.

 

 

IHU – Como colocar em prática uma política ampla, mas que leve em conta as particularidades individuais de cada situação, como você propõe?

Camila Leal Costa – É superdifícil e se eu tivesse a resposta, me candidataria à presidência do Brasil (risos). Mas, durante alguns anos eu trabalhei na Confederação Nacional dos Municípios – CNM em Brasília e prestava assessoria às prefeituras do país inteiro. Naquele momento, entre 2009 e 2010, ainda existia o Ministério das Cidades e a nossa função era justamente fazer a ponte entre o que se pensava no governo federal e como a política urbana do município, em escala local, poderia traduzir as decisões nacionais para a realidade local. Eu gostava muito daquele trabalho porque nos permitia ver o quanto as coisas estão descoladas.

A crítica que eu faço é que a política nacional, num país como o nosso, gigantesco e com uma diversidade muito grande, normalmente tem como foco principal os grandes centros urbanos. Claro que nesses lugares está concentrada a maior parte da população, mas quando analisamos a realidade do Brasil, dos 5570 municípios, 70% deles são de pequeno porte, de 20 mil habitantes. Não tem como pensar uma política habitacional que vá atender São Paulo e Picuí, no interior da Paraíba. São coisas totalmente diferentes. Então, o grande desafio de se pensar a política nessa escala nacional é considerar justamente a diversidade e não pensar em pacotes. Temos uma herança de pensar modelos, pacotes, receitas de bolo, que vem do modernismo, dos padrões, das normas, mas que não cabem mais para a dinâmica contemporânea.

 

IHU – Que formato poderia ter uma política pública para atender as necessidades das favelas, especialmente em relação à habitação, valorizando a vida das comunidades?

Camila Leal Costa – Nesse contexto das favelas, não tem como pensar a urbanização, as áreas públicas, coletivas e externas sem pensar a habitação. Trata-se de duas coisas. De um lado, na escala urbana, temos que pensar as políticas de urbanização das favelas para conseguir levar os serviços de abastecimento de água, tratamento de esgoto e não ter milhões de instalações de “gatos”, mas um serviço de energia adequado. De outro lado, na habitação, o foco na discussão de melhorias habitacionais e assistência técnica é um caminho: trabalhar pequenas reformas nas unidades habitacionais, como ampliação de cômodo, colocar banheiros nas residências. O CAU/RS está com um programa chamado Nenhuma Casa Sem Banheiro, associado ao governo do Estado, que é justamente de construção de banheiros nas unidades onde não têm. Quando vai se trazendo essa melhoria, se minimiza a situação.

Quando falamos em valorizar puramente a vida nesses espaços, parece algo romântico e utópico, porque no dia a dia, quem está lá, sentindo na pele os impactos da falta de infraestrutura e de dignidade, não acha nada daquilo romântico. Então, temos que pensar os processos de urbanização, de regularização fundiária, dar a garantia de posse da terra para as pessoas que estão ocupando esses espaços há décadas e pensar a melhoria das unidades habitacionais.

 

 

IHU – Que ações podem ser feitas junto aos municípios para regularizar a situação das ocupações irregulares, que crescem em várias cidades, nas quais as pessoas precisam se submeter a situações de vulnerabilidade para, décadas depois, talvez conseguirem a regularização do território?

Camila Leal Costa – As legislações urbanas, quando discutimos plano diretor – quando ele é feito de maneira séria –, têm arcabouço jurídico para resolver essas questões, como o Estatuto da Cidade. Por exemplo, se o município tem um estoque de terras para a criação de Zonas Especiais de Interesse Social - ZEIS, isso é pensado dentro do planejamento urbano, ou seja, o poder público precisa estar disposto a deixar esse estoque de terras para moradia popular e se utilizar de outros instrumentos, como Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU progressivo, para conter os processos de especulação imobiliária. Quando as pessoas invadem e ocupam esses espaços vazios, que estão sendo especulados, elas estão precisando de casa e, normalmente, esses locais estão inseridos em territórios onde há infraestrutura. O que resta é ocupar.

Temos que voltar historicamente no tempo para entender que nossas desigualdades vêm do processo de colonização. A Lei de Terras, de 1850, que define que as terras não podem mais ser ocupadas, e passarão a ser vendidas, e que pessoas negras não podem ser proprietárias de terras, é a base para o contexto que temos hoje. São séculos de desigualdade, exclusão e falta de acesso à terra. E, nesse contexto, as pessoas, com “o jeitinho brasileiro”, dão um jeito de resolver a necessidade por habitação.

 

 

 

IHU - Quais são os maiores problemas do planejamento urbano brasileiro quando se trata de pensar pequenos municípios e grandes centros? As cidades precisam ser planejadas ou não? Por quê?

Camila Leal Costa – As cidades são planejadas. Isso é um fato. A pergunta é: por quem e para quem? No caso de uma ocupação, as pessoas que ocupam um território planejam aquela ocupação a partir da lógica delas, do que elas entendem. Quando elas ocupam o território, sabem que precisam deixar um espaço para circulação, se vão passar carros ou não, como vai ser a organização das moradias dos vizinhos. Isso é planejamento. Pode não ser o planejamento formal, técnico e reconhecido por nós, arquitetos e urbanistas, mas é um tipo de planejamento.

Então, pensando nessas questões – por quem e para quem a cidade é planejada? –, historicamente, a visão de arquitetos, advogados, incorporadores imobiliários, e de uma série de atores que têm o saber e o poder econômico, tem prevalecido na forma de pensar as cidades. Essa visão vem sendo implementada desde a Lei de Terras até hoje e é isso que gerou cidades com extrema desigualdade. Falar em resolver essa situação é algo bastante otimista, mas para tentar mudar um pouco esse contexto, é preciso inserir os outros atores no processo de planejamento, com poder de decisão.

 

 

Participação com poder de decisão

João Pessoa está fazendo a revisão do plano diretor e, na tentativa de estimular a participação, criou formatos de elaboração de planos diretores participativos. Eles têm esse nome bonito, mas, na prática, como é essa participação? Ela existe? Estamos numa briga com a consultoria que está fazendo o plano diretor, dizendo exatamente isto: a participação está sendo de faz de conta; ela não é real. Ainda mais nesse contexto de pandemia. Como se faz uma transmissão no YouTube e chama isso de participação? Isso é comunicação: está se dizendo o que será feito e não se está perguntando o que será feito. São coisas diferentes.

A pergunta é: quem está à frente desse planejamento? Por isso é tão importante ter mulheres à frente desses processos, para pensar uma cidade que seja menos desigual para elas. Não são os homens que estão preocupados com essas questões. Então, é preciso inserir os atores, porque cada um tem o seu lugar de fala dentro da cidade. Se as diversas pessoas forem inseridas no processo de planejamento, talvez esse seja um caminho para reduzirmos as desigualdades. Também é preciso reconhecer que os espaços que não têm a chancela do planejamento urbano, do saber técnico, foram, de alguma forma, planejados. É preciso entender o que são essas outras lógicas de ocupações dos territórios. Muitas vezes, a favela tem uma lógica de coletividade, de uso do espaço coletivo, que é totalmente diferente da lógica da cidade formal, do bairro de classe média, que é diferente da do bairro popular, do bairro da elite, dos condomínios fechados. O conceito de espaço coletivo em todos esses locais é completamente diferente. Não tem como planejar uma cidade ouvindo um desses atores e a partir da perspectiva dele.

 

 

IHU - Como essa temática de moradia, planejamento urbano e reestruturação urbana tem sido discutida no CAU?

Camila Leal Costa – A nossa gestão é nova; assumimos em 2021. Nesse primeiro ano, a bandeira que o CAU tem levantado é a da assistência técnica, de pensar as melhorias habitacionais, e de como o arquiteto vai se inserir nesses espaços, porque a melhoria habitacional, como comentei, é um dos caminhos para diminuir o impacto do déficit habitacional.

Como nós, arquitetos, vamos sair desse imaginário de que arquiteto é coisa de gente rica, artista, detentora do saber, que trabalha só para as classes altas, que só faz grandes obras e soluções mirabolantes? Como vamos tirar o arquiteto desse lugar e entender que ele é profissional necessário nos espaços populares? Debatemos muito esta questão: de que a assistência técnica funcione como um Sistema Único de Saúde - SUS. Do mesmo jeito que todo mundo tem acesso ao serviço de saúde, todo mundo que tem direito à moradia deveria ter acesso ao serviço de um profissional de arquitetura para pensar seus espaços e suas casas. A autoconstrução existe, é um fato e não adianta pensarmos que um dia a autoconstrução vai acabar. Isso não existe. Fazendo um paralelo com o SUS, as pessoas se automedicam. Então, as pessoas constroem. A questão é: como nós, arquitetos, podemos nos aproximar dessas pessoas e contribuir para que isso aconteça da melhor maneira possível.

O CAU tem debatido essa temática e realizamos, no primeiro semestre, a Campanha Mais Arquitetos, sobre moradia. O caminho é este mesmo: parar de dialogar entre nós e começar a dialogar com a população. Além disso, participar da discussão sobre o direito à cidade e acompanhar as tramitações [no Congresso] é importante, como a do licenciamento urbanístico, que foi um tema que acompanhamos no primeiro semestre.

 

 

Mês passado, aprovamos a comissão temporária de raça, equidade e diversidade, da qual faço parte, para inserirmos, dentro de todas essas discussões, a discussão sobre raça, gênero e inclusão de uma maneira não descolada da atuação profissional. Muitas vezes as pessoas pensam que nós vamos ficar dizendo que “as mulheres precisam ter os mesmos direitos que os homens”, que “o salário das mulheres é menor do que o salário dos homens”, mas não é isso. O nosso papel, enquanto comissão, é inserir essas questões dentro de toda a discussão política e profissional que o CAU pauta. É uma comissão que quer trabalhar junto das demais que existem, desde a de finanças até a de ética profissional.

 

 

IHU - A pandemia evidenciou ainda mais a situação das mulheres, especialmente aquelas que são chefes de família, negras e vivem em áreas periféricas. Como discutir a questão da moradia e a organização das cidades a partir da realidade dessas mulheres? O que é urgente nessas pautas a partir dessas realidades?

Camila Leal Costa – O fato de os programas habitacionais terem assegurado a propriedade da unidade habitacional como algo prioritário para as mulheres já foi um avanço significativo e uma segurança, tendo em vista a vulnerabilidade em que vivem essas mulheres. Por conta da nossa estrutura machista, são elas que ficam em casa para cuidar dos filhos e o homem assume o papel de quem sai para trabalhar e sustentar o núcleo familiar. Mas em um momento de separação, a mulher se encontra em uma situação de vulnerabilidade porque não tem renda e não tem trabalho. Então, ter a mulher como proprietária do imóvel é um avanço. Mas somente isso não é suficiente.

 

 

É preciso inserir, dentro do pensar a cidade, essas mulheres, porque são elas que vão poder dizer exatamente o que é necessário. Quanto mais mulheres estiverem participando dentro dos processos de planejamento urbano, mais se tende a pensar uma cidade menos desigual. Por exemplo, uma amiga que mora no Rio de Janeiro contou que certa vez ela e outras mulheres e homens desembarcaram da barca Rio Niterói à noite. Ao desembarcarem, todas as mulheres pararam e todos os homens seguiram andando, porque estava tudo escuro. Para os homens, falta de iluminação não é um problema. Eles seguem andando e às vezes nem percebem que o local está escuro. As mulheres não fazem assim. Se nós saímos de casa para ir até a padaria, nós calculamos qual é o melhor caminho, se vamos passar numa rua mais ou menos movimentada, se a via é iluminada ou não. Às vezes as mulheres fazem um percurso maior porque estão preocupadas com a sua segurança. Então, ter mais mulheres à frente desse processo de pensar a cidade é um caminho para minimizar os problemas e trazer questões que muitas vezes não são vistas por quem está tomando as decisões, que normalmente são os homens.

 

 

IHU – O que é a arquitetura popular? Pode nos dar exemplos do que tem sido feito no Brasil em termos de arquitetura popular? Como o arquiteto pode ser introduzido nesse contexto e deixar de ser visto como um gasto adicional?

Camila Leal Costa – Arquiteto ser visto como um gasto adicional é a premissa sempre. Independentemente da classe, inclusive, ele é visto como um gasto. Essa imagem vem do estigma da nossa profissão, dessa coisa artística, talentosa e grandiosa das grandes obras.

Não sei nem se consigo definir o que é arquitetura popular porque, para mim, arquitetura popular é tudo que é feito nas cidades, toda a produção com ou sem arquiteto. Existe uma camada da população, que não é aquela periférica que não tem acesso aos serviços, mas uma camada de trabalhadores populares, a qual não conseguimos acessar ainda. Mas hoje existem escritórios de arquitetura trabalhando nessa categoria que chamamos de arquitetura popular que vêm fazendo trabalhos interessantes, como o Arquitetura na Periferia, desenvolvido por um grupo de Minas Gerais. Em São Paulo tem o pessoal da Vivenda, do Artemisia; em João Pessoa tem as meninas do Reformaria, um grupo só de mulheres que trabalha com reformas de habitação popular; e tem os grupos de empreendedorismo de negócios sociais, como eles se autointitulam, que têm conseguido financiar reformas. Normalmente, o modelo que eles trabalham não é o de vender um projeto de arquitetura, mas vender uma reforma, financiando o material e, dentro disso, está inserido o projeto de arquitetura. Para quem pode pagar, esse tem sido um caminho.

Para quem não pode pagar, o caminho é defendermos mais uma vez a lei de assistência técnica enquanto política pública, como um serviço. As prefeituras poderiam e deveriam ter um escritório de arquitetos ou escritórios como o da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal - CODHAB, em Brasília, que é uma política de postos de atendimento de assistência técnica. Eles têm containers que ficam em unidades das cidades satélites, com arquitetos disponíveis para atender a população. O arquiteto visita as moradias das pessoas que procuram o serviço, faz um projeto e discute com os moradores.

Quando falamos de projeto de arquitetura, se tem essa ideia de um jogo de pranchas de desenhos técnicos, mas não é com esse tipo de projeto que vamos conseguir dialogar com esse público, porque muitas vezes essas moradias são autoconstruções e muitas vezes as pessoas sequer entendem aqueles desenhos. Hoje temos outros recursos tecnológicos, modelos 3D e ilustrativos para deixar o projeto de arquitetura uma coisa mais palpável para quem não tem conhecimento técnico. Então, rever essa linguagem e a forma de nos comunicarmos é importante. Esse exemplo de Brasília é uma política pública e ninguém estava fazendo filantropia – o que é algo importante de dizer. Nesse caso, todos os arquitetos são vinculados ao governo do DF, remunerados para esse trabalho, e a população tem acesso a esse serviço.

 

 

IHU - Quais são as maiores dificuldades em termos de moradia e construção de novas moradias entre os moradores que precisam adaptar ou construir as suas casas? O que eles relatam acerca das suas necessidades e dificuldades para solucioná-las?

Camila Leal Costa – É sempre a limitação de recursos. As pessoas não têm dinheiro e quando têm, é um recurso muito limitado. Às vezes, há soluções muito complexas que não podem ser resolvidas com pouco recurso. Quando digo isso não é porque as pessoas querem transformar suas casas em casas de luxo, mas às vezes tem uma unidade habitacional em que é preciso refazer toda a instalação elétrica porque está a ponto de dar um curto-circuito ou precisa trocar toda a coberta da casa, que envolve a compra de madeiramento, telha, e tudo isso tem um custo muito alto. Aí entra na lógica do financiamento. Por isso, os exemplos que mencionei de empreendedorismo social, que vem crescendo com os escritórios que já pensam um financiamento para a reforma, têm sido uma alternativa para conseguir desembolsar um montante único para viabilizar a reforma, ou parcerias público-privadas.

Em Recife tem o caso de um escritório que fez parceria com um shopping para financiar melhorias habitacionais de uma ocupação existente ao lado do shopping, a comunidade Entra Apulso. Se temos políticas públicas e recursos, é possível fazer. O problema está aí: como destinamos esse dinheiro. E aí voltamos para o começo da nossa conversa: normalmente os programas de habitação são pensados a partir da execução de novas moradias, mas os recursos, dentro do Ministério de Desenvolvimento Regional - MDR, para melhorias habitacionais são ínfimos.

 

 

IHU - Quais são as principais transformações que as cidades brasileiras necessitam hoje para resolver o problema da moradia?

Camila Leal Costa – As cidades são um reflexo da nossa sociedade. O que é produzido enquanto cidade é um reflexo da sociedade. Então, para termos uma transformação das cidades, precisamos, primeiro, de uma transformação social. Para isso, não tem uma receita de bolo. Até porque, as cidades são diferentes. Se eu disse para você o que João Pessoa precisa, vai ser diferente do que São Leopoldo precisa. Então, precisamos dar um passo anterior: avançar enquanto sociedade em relação à nossa base capitalista, de exploração das populações pretas e pobres, de não permitir que essas populações tenham os mesmos direitos dos demais.

Na discussão sobre o plano diretor de João Pessoa, sobre uma área de expansão à beira-mar, onde hoje existem algumas ocupações irregulares, escutei frases do tipo: “temos que ocupar esses espaços para que as pessoas que estão lá ‘aprendam’ a como ser um cidadão”. É isso que as pessoas pensam, porque aí vai ter juízes, médicos, toda essa casta de cidadãos que vai poder se aproximar desses pobres coitados que estão lá e ensiná-los a ser cidadãos. Essa é a lógica de pensamento que temos. Enquanto a lógica for essa, a cidade que vamos produzir é essa aí que temos hoje, que reforça as desigualdades.

 

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