Em linhas gerais, o Sínodo Pan-Amazônico quer discutir a importância da floresta para todas as formas de vida e como a Igreja Católica pode se inserir nesse contexto de preservação. Mas, é mais do que isso. De um lado, é a possibilidade da Igreja de se colocar em saída, se fazer presente no mundo, sentindo o mundo e abraçando tanto seus problemas como também se envolvendo na busca por um planeta melhor. De outro, a possibilidade de fazer com que a fé e a ciência somem esforços – e superem disputas milenares – na busca por um ideal.
Assim, tanto para o teólogo Paulo Suess, que vive a realidade amazônica, como para o cientista Carlos Nobre, que acompanha de perto as discussões e estudos sobre o desequilíbrio climático, o Sínodo se configura um momento ímpar. “É muito importante perceber que o Sínodo ouve a ciência. A ciência que é um elemento que apoia a expansão e a implementação do conceito de ecologia integral”, pontua Nobre, lembrando os conceitos já presentes na Encíclica Laudato Si’, a primeira de Francisco. “A questão do rosto amazônico é bálsamo para minha alma. Bálsamo no sentido de que vai ao encontro do que nós sempre defendemos”, completa Suess.
Ambos participam dos encontros sinodais na Cidade do Vaticano, em Roma, e, depois de cerca de cinco dias do Sínodo, os dois conversaram com Luis Miguel Modino sobre essa primeira semana. Modino é um parceiro do Instituto Humanitas Unisinos – IHU que acompanhou toda a preparação do Sínodo e agora está em Roma acompanhando atentamente os debates. Diariamente, e em uma página especial, o IHU publica notícias e textos que repercutem as reuniões sinodais.
Nobre está entre o grupo que entregou aos padres sinodais, na semana passada, um documento em que alerta que a devastação da Amazônia está próxima de um ponto irreversível. Se isso ocorrer, a floresta irá desaparecer e trará problemas para o mundo inteiro. “Em 30 ou 50 anos, entre 50 e 70% da floresta amazônica dará lugar a uma savana bem empobrecida, muito seca”, aponta. As consequências são inúmeras. “A primeira e mais óbvia é que a floresta é um grande reservatório de carbono. O desaparecimento da floresta e a substituição por uma savana ou pela agricultura e pela pecuária joga esse carbono todo na atmosfera, na forma de gás carbônico, o mais importante gás do aquecimento global”, completa.
Paulo Suess considera fundamental que essas questões, e outras demandas específicas de povos amazônicos, estejam na pauta da Igreja. Do contrário, estaria indo de encontro aos princípios defendidos por Francisco já desde a sua Encíclica Laudato Si’ e do próprio pontificado. “A partir de uma igreja com rosto amazônico, vai ser missionária não alienante, não colonizadora, uma igreja mesmo segundo o espírito de Jesus que se encarnou nesse mundo”, observa. Para ele, outro aspecto positivo do encontro é a demonstração de que a estrutura vaticana está se abrindo para ouvir e compreender que a Igreja é muito mais do que os ritos romanos. “Não há proibições estruturais. Um ou outro cardeal quer proibir alguns temas, acha inconveniente falar de algumas coisas e gostaria de fechar algumas questões. Mas, a partir da presença do papa Francisco, tudo está aberto, tudo está interligado e com isso apareceram todos esses temas”, comemora.
O teólogo pondera que, depois de encerrado o encontro, fazer de fato acontecer o que se propor no Sínodo não será fácil. Imagina que será como o momento posterior ao Concílio Vaticano II, em que muitas questões são deixadas de lado. “Vai haver momentos em que se esquece, momentos em que nos lembramos e vai haver, sobretudo, horizontes e processos iniciados e, mesmo se não der para concluir tudo no Sínodo, na admoestação apostólica que o Papa vai fazer no documento, marcará que os caminhos são abertos”, diz. Já Nobre vislumbra esse momento como o início de uma soma de forças para uma longa batalha. Para ele, este é um Sínodo que está num “momento histórico de uma enorme percepção de risco para a Amazônia e para as suas populações, para o ambiente e para a sociedade amazônica e que, ao mesmo tempo, se ampare na ciência e também mostre que há caminhos”. E conclui: “a ciência pode muito apoiar um caminho sustentável, um caminho em que a floresta e as populações tradicionais continuem a existir, sejam respeitadas e valorizadas e que tenham condições de adquirir uma melhor qualidade de vida e justiça social”.
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Entre suas últimas publicações, estão Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4. ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).
Carlos Nobre possui graduação em Engenharia Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica e doutorado em Meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology. Foi pesquisador no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa e no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe.
Exerceu funções de gestão e coordenação científicas e de política científica, atuando como presidente da Capes, diretor do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - Cemaden, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI, chefe do Centro de Ciência do Sistema Terrestre - CCST-Inpe e coordenador geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos - CPTEC-Inpe.
Também atuou na coordenação de experimentos científicos, como coordenador científico do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia - LBA, coordenador brasileiro do Anglo-Brazilian Climate Observations Study - Abracos e coordenador brasileiro do Experimento Amazalert entre instituições europeias e sul-americanas. Exerceu a presidência do International Advisory Group do Programa de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil - PP-G7.
Atualmente é membro do Joint Steering Committee do World Climate Research Programme - WCRP, preside os Conselhos Diretores da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas – Rede Clima e do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas - PBMC.
IHU On-Line – Qual a importância da promoção de uma discussão como essa do Sínodo Pan-Amazônico, de uma Igreja com rosto indígena, com rosto amazônico?
Paulo Suess – Vai ser muito importante, pois nós criaremos raízes como Igreja. E, nas igrejas locais, passaremos de uma Igreja de visita para uma igreja de presença. Isso vai tocar todo nosso esquema, inclusive a nossa identidade católica. Se falou, hoje mesmo num grupo, dessa identidade católica. Precisamos aprofundar os estudos bíblicos, estudos catequéticos, mas, às vezes, se esquece o essencial dessa identidade, pois ela anda com duas pernas: com a palavra e com o sacramento.
Paulo Suess, um dos padres sinodais (Foto: Luis Miguel Modino)
No que diz respeito à palavra, é relativamente fácil, pois basta aprofundar o que já fizemos, o que as igrejas pentecostais fazem, e ampliar a palavra. Mas, com a palavra somente, podemos tirar os altares das nossas comunidades. Então, a palavra pode ser feita pela visita, pela internet, por um curso em que aprofundamos e mandamos literatura depois. Agora, o sacramento exige a mudança, o câmbio de uma igreja de visita para uma igreja de presença. E tal só pode ser feito estando presente. Então, essa outra perna, essa outra parte da identidade católica que é o sacramento, ao lado da palavra, exige uma igreja descentralizada, uma igreja que passa a ser presente.
E, uma vez já sendo presente, vai ser mais barato, porque se queixam que na Amazônia é tudo muito caro, precisa de muito dinheiro para gasolina, para chegar nos locais, viajar. Então, se é assim, que fiquemos lá. Assim, não se precisa mais pagar a gasolina porque você é da comunidade. Ou seja, é fazer ser da comunidade esses ministérios. Só quando esses ministérios são da comunidade haverá também uma presença sacramental e uma presença da palavra.
Creio que o novo caminho poderia ser este: o que fizemos com visitas, o que fizemos com gente de fora pode passar a ser feito com gente do local. Isso não quer dizer que vamos substituir a missionalidade, pois essa igreja local também vai ser missionária. A partir de uma igreja com rosto amazônico, vai ser missionária não alienante, não colonizadora, uma igreja mesmo segundo o espírito de Jesus que se encarnou nesse mundo.
IHU On-Line – Como avalia as primeiras movimentações do Sínodo? O que o senhor destacaria dos debates nesses primeiros dias?
Paulo Suess – É um grande balaio, uma cesta em que apareceu tudo. E apareceu tudo com uma grande liberdade. Eu estive aqui, certa vez, participando do Sínodo para as Américas e na ocasião havia temas proibidos. Não se poderia falar porque o Papa não queria. Agora não, não há proibições estruturais. Um ou outro cardeal quer proibir alguns temas, acha inconveniente falar de algumas coisas e gostaria de fechar algumas questões. Mas, a partir da presença do Papa Francisco, tudo está aberto, tudo está interligado e com isso apareceram todos esses temas.
Agora, vai depender muito da redação, dos primeiros esquemas, capítulos, o que se aproveita a partir também dos grupos, porque atualmente estamos todos com um leque de temas. Já iniciamos o segundo passo essa semana, a construção do documento final. É nesse momento que vai depender muito das escolhas desse balaio, o que tiramos e realmente achamos como um novo caminho que estamos procurando.
IHU On-Line – E nos cafés, nas residências e em outros encontros que vão ocorrendo, nos bastidores, o que está sendo comentado?
Paulo Suess – Eu estou sentindo que estamos com certo otimismo. Se conhece a máquina e como ela funciona, se conhecem as forças presentes, porém, numericamente, ao menos, há muitos que querem andar nesses novos caminhos. Nesses 500 anos aqui, nos tornamos de uma igreja majoritária em uma igreja minoritária, porque ocuparam os espaços que deixamos abertos por causa da centralização dos ministérios. Por isso, creio que a maioria vai compreender que descentralizando os ministérios vamos marcar presença e vamos poder retomar, de uma certa maneira, essa Amazônia com espírito do Evangelho que luta por justiça e liberdade e contra a violência e tudo que observamos na análise da realidade.
IHU On-Line – O Sínodo tem sido um momento muito elogiado, mas também muito criticado, inclusive dentro da própria Igreja. Essas críticas estão incidindo de alguma maneira dentro da assembleia sinodal?
Paulo Suess – Creio que não tenha um impacto. Porém, é bom observar as vozes contrárias, analisar seus motivos, que às vezes são pessoais, sentir como pode ser uma quebra na sua trajetória profissional aqui em Roma, porque agora a linha é outra e eles ainda não se deram conta do espírito da época em que vivemos. Então, a gente escuta e procura esvaziar os argumentos que muitas vezes não são argumentos, são apenas autodefesas para continuar assim como sempre se fez e com isso estamos fora do processo histórico em que se desenvolve a evangelização.
IHU On-Line – Esse Sínodo é o que conta com mais presença feminina. Até agora, nesses primeiros dias, como estão se posicionando as mulheres dentro da Assembleia Sinodal?
Paulo Suess – O Sínodo é um sínodo de bispos e não de leigos, de padres nem de mulheres. Porém, sempre que são mencionados temas candentes para as mulheres se percebem os aplausos, as interrupções, as satisfações e se vê em todos os casos a presença das mulheres. Assim, embora não tenham a presença, a força pelo voto se introduz mais pela força do argumento.
IHU On-Line – E, pessoalmente, o que mais o marcou até agora?
Paulo Suess – Essa abertura, em que se pode falar de tudo, em que há um grande consenso sobre os novos caminhos, sobre a descentralização, sobre a ministerialidade, sobre o rosto amazônico. Eu cheguei na Amazônia em 1966, trabalhei dez anos em diferentes regiões, depois trabalhei com a questão indígena. Por isso, a questão do rosto amazônico é bálsamo para minha alma. Bálsamo no sentido de que vai ao encontro do que nós sempre defendemos. Assumir para redimir, isso está em Puebla N. 400. É preciso assumir essas culturas, assumir o rosto e sua diversidade e depois vamos falar em redenção.
IHU On-Line – O papa Francisco, inclusive, tenta trazer imagens para mostrar que está muito perto do povo. Tem uma imagem, que até apareceu como capa do L'Osservatore Romano, em que ele abraça uma mulher negra brasileira que está participando da assembleia. Também apareceu tomando chimarrão e em fotos com todas as pessoas. Como isso influencia aqueles que estão participando da assembleia?
Paulo Suess – O chimarrão, provavelmente, já tomava na Argentina. Não precisava muito de inculturação (risos). Mas os outros são grandes elementos. O Papa é bom em dar sinais, que vão mais longe do que as palavras. Porém, nós sabemos que ele está numa estrutura ainda muito cristalizada e, para aquecer um pouco esses cristais, ainda não conseguiu tudo. E não pode fazer tudo como nós pensamos, como falamos nos corredores porque, se ele fizer isso, amanhã outro papa iria desfazer. Então, ele precisa também em tudo lutar internamente por um grande consenso para poder dar durabilidade para novos caminhos e para que não possam dizer que esse não é o caminho e parar tudo, levando para outra direção.
IHU On-Line – Qual é sua expectativa para o “pós-sínodo”, o que espera que pode nascer dessa experiência sinodal?
Paulo Suess – Eu creio que o pós-sínodo vai ser como o [Concílio] Vaticano II. Vai haver momentos em que se esquece, momentos em que nos lembramos e vai haver, sobretudo, horizontes e processos iniciados e, mesmo se não der para concluir tudo no Sínodo, na admoestação apostólica que o Papa vai fazer no documento, marcará que os caminhos são abertos. E são abertos para, na região, nos sentarmos e pensarmos como vamos aplicar essa parte do Sínodo em nossa região, em nossa diocese.
Esse é o caminho sinodal, ele é mais complicado do que o caminho ditatorial ou imperial em que se decide. No Sínodo, se quer trabalhar na base do consenso. E consenso não da unanimidade, porém num grande consenso, o que leva tempo, tempo de conscientização da própria Igreja, dos nossos irmãos. E, ainda, vai depender da nomeação de bispos, da escolha de padres, vai depender muito da formação de padres, que se falou que não se faça em redomas, mas com processos participativos, com o povo, com a comunidade. Tudo isso leva tempo porque implica em mudanças culturais.
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IHU On-Line – A comunidade científica apresentou um documento no Sínodo sobre a realidade da Amazônia, no qual o senhor é um dos autores. No início do documento, diz que a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, está em grande risco de destruição e com isso também está em risco a nossa e as gerações futuras. Como fazer as pessoas, de forma concreta, compreenderem em que consiste esse perigo?
Carlos Nobre – A Amazônia, diferente de outras florestas de latitudes médias e até altas, desenvolveu em milhões de anos uma capacidade de também modificar o clima a seu favor. Quer dizer, a Amazônia cria uma condição em que ela ajuda a produzir a chuva que a ajuda a se manter. Ela aumenta as chuvas que ocorrem sobre a bacia amazônica e, se não tivesse floresta, a chuva seria de 20 a 30% menor. Esse aumento de volume de chuva é justamente o que mantém a floresta. Essa interação, que é muito única de florestas tropicais, e é muito marcante na Amazônia, até mesmo mais marcante do que nas florestas tropicais da África e do sudeste asiático, significa que, por outro lado, se aumentar o desaparecimento da floresta ou o planeta continuar aquecendo, esse mecanismo é colocado em risco.
Carlos Nobre durante a conferência de imprensa do Sínodo para a Amazônia (Foto: Luis Miguel Modino)
Isso significa que se esse mecanismo, que ajuda a manter a floresta, enfraquecer ou desaparecer, nós atingiremos o que os cientistas têm chamado de ponto de não retorno. A floresta irá começar a desaparecer em poucas décadas. Em 30 ou 50 anos, entre 50 e 70% da floresta amazônica dará lugar a uma savana bem empobrecida, muito seca. E, com isso, teremos consequências globais. A primeira e mais óbvia é que a floresta é um grande reservatório de carbono. O desaparecimento da floresta e a substituição por uma savana ou pela agricultura e pela pecuária joga esse carbono todo na atmosfera, na forma de gás carbônico, o mais importante gás do aquecimento global.
E essa quantidade enorme – se nós colocarmos em números, são cerca de 200 bilhões de toneladas de gás carbônico que iriam parar na atmosfera – já tornaria muito difícil atingir as metas do Acordo de Paris para não deixar o planeta superaquecer. Se esse gás carbônico chegar na atmosfera, nós já teríamos engolido 50% do que é possível ainda a atmosfera receber de gás carbônico para a temperatura não exceder um grau e meio, que seria o limite menos perigoso para o planeta.
Outro elemento é que, desaparecendo 50, 70% da floresta, perderíamos, certamente, centenas de milhares de espécies. Seria uma extinção global de espécies da floresta tropical. E a Amazônia é também um estabilizador, ajuda a estabilizar o clima sobre ela, mas também o clima em regiões da América do Sul. Por exemplo, sem a floresta, o vento que passa pela Amazônia e chega no Cerrado chegaria entre um grau e meio ou dois graus mais quentes. O Cerrado, que já é uma região mais quente que a Amazônia, ficaria ainda mais quente, com uma série de impactos na saúde humana, nos ecossistemas e também nos sistemas de produção agrícola.
Há estudos também que indicam que as chuvas na Amazônia criam uma situação em que o vapor da água que passa por ela acaba chegando até o sul da Bacia do Rio da Prata. Então, isso influencia muito as chuvas do sul da Bacia do Prata, Brasil, Paraguai e centro-leste da Argentina. O desparecimento de boa parte da Amazônia afetaria as chuvas e essas regiões passariam a ter menos chuva principalmente durante o inverno.
Esses são muitos dos impactos que a ciência mostra sobre o risco de ultrapassarmos esse ponto de não retorno. E nós estamos, infelizmente, muito próximos. Os estudos científicos indicam que se o desmatamento da Amazônia ultrapassar 20 a 25%, nós corremos o risco de ultrapassar esse ponto ou se o aquecimento global aumentar as temperaturas entre três e quatro graus nós temos um total desmatamento entre 15 e 17% na Amazônia como um todo. Então, estamos muito próximos.
Ao ritmo atual dos desmatamentos, que cresceram muito nos últimos anos, diríamos que temos não muito mais do que 30 anos, qualquer coisa entre 15 e 30 anos, e teríamos ultrapassado esse ponto. Essa mudança, se ultrapassarmos esse ponto, é irreversível: a vegetação vai mudando para uma savana seca e essa savana estará em equilíbrio com esse novo clima da Amazônia e, portanto, a floresta não volta mais. Seriam necessários, talvez, milhares de anos para a floresta voltar.
Então, nós temos este enorme desafio, que é zerar o desmatamento — esse é o primeiro desafio. O segundo desafio é buscar restaurar a floresta Amazônica, principalmente nessas áreas de máximo desmatamento no chamado Arco do Desflorestamento, que vem desde a Bolívia, passando por Rondônia, norte do Mato Grosso e do Tocantins e o centro-sul e o leste do Pará. Nós temos essa imensa área e temos realmente que fazer um grande esforço de restaurar a floresta para que possamos evitar esse risco, que será um prejuízo para sempre para o planeta Terra e para as futuras gerações. Não parece moralmente correto aceitarmos ou corrermos esse risco, quando temos alternativas, pois não precisamos desmatar a Amazônia para atingir qualquer meta de desenvolvimento econômico.
IHU On-Line — O documento denuncia os grandes violões do desmatamento — pecuária ineficiente, agricultura de baixa produtividade e mineração. Como ajudar a sociedade, inclusive o atual governo brasileiro, a entender que existem alternativas e que o modelo econômico poderia ser outro a partir da sustentabilidade?
Carlos Nobre — Existe o desafio de convencer os governos dos países amazônicos, principalmente onde essas taxas de desmatamento têm sido historicamente mais altas, em primeiro lugar o Brasil, mas também a Bolívia, o Peru, a Colômbia e a Venezuela. Felizmente o norte da Amazônia é mais preservado: Guiana, Suriname e Guiana Francesa, assim como o norte do Brasil — ao norte do rio Amazonas.
É o desafio de vencer um discurso político que é assentado em bases falsas, que diz que esse modelo de desenvolvimento da Amazônia, iniciado nos anos 1970 do século passado, é o único modelo que pode trazer bem-estar às populações amazônicas. Isso é facilmente desmentido porque cerca de 60% da população amazônica é pobre, classes D e E, de acordo com o Censo do IBGE. Portanto, esse modelo não é um modelo que tem trazido bem-estar social ou econômico para as populações amazônicas, pois tem um impacto macroeconômico, mas não traz desenvolvimento real para todos os países amazônicos.
O maior vetor de desmatamento é a agropecuária, ainda que a infraestrutura e a mineração respondam por cerca de 10% dos desmatamentos. A agropecuária na Amazônia é muito ineficiente, principalmente a pecuária. Existem, sim, maneiras de mudar essa realidade, se de fato houver o desejo dos governos; da sociedade existe, sim, porque a sociedade brasileira e de outros países amazônicos, mas principalmente a brasileira, é radicalmente contra o desmatamento da Amazônia. Em todas as pesquisas de opinião dos últimos 20 anos, sempre mais de 90% da população brasileira é contra o desmatamento da Amazônia. Então, se não tivéssemos uma tão imperfeita democracia, não estaríamos vivendo essa crise, porque a classe política e os governos tomariam a vontade da maioria da população e já teriam modificado suas políticas para a Amazônia. Mas, infelizmente, na imperfeita democracia dos países amazônicos — em quase todos os países amazônicos —, os interesses econômicos de curto prazo direcionam sempre as ações políticas. Portanto, nós realmente temos que atuar para mostrar que uma agropecuária um pouco mais eficiente é essencial para reduzir o desmatamento.
E, logicamente, também há muitos elementos de crime. Para isso precisamos contar com uma ação muito eficiente de governo, com políticas públicas que reduzam — eliminar é muito difícil — fortemente a criminalidade. Quase toda a madeira tirada da Amazônia é ilegal, 90% dos desmatamentos são ilegais, são áreas de grilagem, roubo de terras. O garimpo, por exemplo, quase todo é ilegal. Então, é preciso fazer valer, não só na Amazônia brasileira, mas em quase toda a Amazônia, uma democracia. Um Estado Democrático de Direito é uma questão muito importante.
Nós temos um excelente exemplo de redução do desmatamento no Brasil, entre 2005 e 2012, permanecendo baixo até 2014, simplesmente com políticas que fizeram o cumprimento da lei e políticas que desenharam um futuro mais sustentável para a Amazônia. Durante esse período — 2005 a 2014 — a produção agropecuária da Amazônia mais que dobrou, portanto não existe nenhuma relação entre a produção total – que tem a ver com a segurança alimentar — e desmatamento. O desmatamento é um fenômeno ainda muito relacionado com o crime e com o desejo cultural de posse de terra, de ter a posse de uma grande propriedade pecuária. Esses são os valores culturais de quem chegou na Amazônia, não das populações tradicionais, e que não são valores totalmente legítimos e são muito associados com o crime organizado. Afinal, como falei, praticamente todo o desmatamento é ilegal.
Precisamos mudar também a percepção cultural, que é possível, sim, reduzir o desmatamento — temos que zerar de fato se quisermos preservar a Amazônia —, criar programas de restauração florestal e desenvolver o que nós chamamos de uma nova economia, uma bioeconomia, uma economia da biodiversidade, uma economia com os valores econômicos da biologia amazônica. Os valores econômicos escondidos nessa enorme diversidade de espécies da Amazônia são infinitamente superiores a tirar toda a floresta e substituir por pecuária ou por agricultura. Os poucos exemplos que já temos de sistemas agroflorestais e até mesmo de extrativismo de alguns produtos, como açaí, castanha, babaçu e cacau, já dão uma rentabilidade para os agricultores familiares que o praticam muito maior do que a pecuária, para citar um exemplo. E nós temos esse modelo.
Temos, ainda, que pensar nos países amazônicos, pois se algum dia quisermos atingir classe média, precisamos pensar um modelo de industrialização, porque país desenvolvido é país industrial. Então, é preciso industrializar essa riqueza biológica na própria Amazônia, que não pode ser apenas um produtor de produtos primários. É vital pensar numa revolução científica e tecnológica para a Amazônia, uma revolução que chamamos de “Revolução Bioindustrial”: criar dezenas de milhares de bioindústrias disseminadas nas mais de 5 mil comunidades da Amazônia para que se gere valor econômico que traga bem-estar e qualidade de vida para as populações amazônicas.
IHU On-Line — Dentro dessa problemática, como a sociedade poderia aprender com os povos originários técnicas milenares, nessa ideia de “economia sustentável”?
Carlos Nobre — Um desafio que a ciência deve enfrentar — e começa cada vez mais a enfrentar — é como unir essas duas formas de sabedoria: sabedoria tradicional, principalmente dos povos indígenas, e a sabedoria que vem do mundo científico. Se olharmos os 11 mil anos de seres humanos na Amazônia, veremos que os inúmeros grupos — etnias indígenas — antropizaram a floresta, pois a floresta hoje não é igual a quando os seres humanos chegaram na floresta há 11 mil anos. Eles foram desenvolvendo uma distribuição de espécies, das espécies de uso humano — mais de mil espécies — e essa antropização manteve plenamente a floresta, manteve toda a sua biodiversidade.
Nos jardins e roças indígenas, esse é um trabalho que foi feito principalmente pelas mulheres indígenas, onde foram derivados milhares e milhares de variedades das espécies, como, por exemplo, a mandioca – que tem mais de 600 variedades –, o cacau – com centenas de variedades –, o açaí e a castanha. Essas variedades todas foram desenvolvidas nesses jardins, o que é uma antropização que manteve a floresta em pé, que a manteve funcionando perfeitamente, que não significou a extinção de uma única espécie. Esse é um conhecimento que nós temos que aprender: como a ciência moderna pode vir e ter a mesma visão que os indígenas tiveram em milhares de anos? Um aproveitamento da imensa biodiversidade para os fins humanos, mas mantendo a floresta, mantendo a biodiversidade e os rios.
A ciência moderna tem muito a contribuir e ela pode de fato aprender com esse saber tradicional e desenvolver uma economia de floresta em pé. Essa é uma meta muito importante para os países amazônicos, para a comunidade científica e para os governos. E que os governos possam apoiar o desenvolvimento dessa nova economia de floresta em pé.
No desenvolvimento dessa nova economia é muito importante também a ciência aprender bastante com os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas; esse aprendizado é essencial, mas também tem que ser um aprendizado que beneficie as comunidades indígenas. Há vários bons exemplos, mas eu cito um: o conhecimento tradicional de várias etnias no território Yanomami fez com que alguns grupos indígenas daquele território já comercializem cogumelos. Eles milenarmente aprenderam a cultivar cogumelos, prática que é muito difícil.
Uma coisa que evoluiu com etnias Yanomami — isso existe em toda a Amazônia — é que esse cultivo de cogumelo já se tornou um produto disponível em alguns mercados. Isso mostra que é possível unir o conhecimento tradicional com os mecanismos mais modernos de distribuição e de uso daquele recurso. Esse é um pouco o exemplo e o potencial é muito maior, pois esse potencial de unir o conhecimento tradicional com o conhecimento científico está apenas começando a ser explorado. Mas, reitero: é preciso unir e beneficiar principalmente as comunidades indígenas.
IHU On-Line — Como o Sínodo para a Amazônia pode ajudar a refletir sobre a realidade amazônica?
Carlos Nobre — Em primeiro lugar, assim como na Encíclica Laudato Si’, é muito importante perceber que o Sínodo ouve a ciência. A ciência que é um elemento que apoia a expansão e a implementação do conceito de ecologia integral. É muito importante que haja e que tenha havido esse reconhecimento do Sínodo de que a voz da ciência precisa ser ouvida. A voz da ciência não é a voz final, a voz final é o que as sociedades definirem. Mas a voz da ciência precisa ser ouvida e ela pode, sim, ser a mensageira de soluções sustentáveis para toda a Amazônia.
Então, já é um fator muito importante o Sínodo reconhecer que a ciência pode contribuir. E, claro, um Sínodo que também abarque soluções, e não só diagnósticos do problema, é um Sínodo com o potencial de ter uma enorme longevidade. Um Sínodo que marque um momento histórico de uma enorme percepção de risco para a Amazônia e para as suas populações, para o ambiente e para a sociedade amazônica e que, ao mesmo tempo, se ampare na ciência e também mostre que há caminhos. E a ciência pode muito apoiar um caminho sustentável, um caminho em que a floresta e as populações tradicionais continuem a existir, sejam respeitadas e valorizadas e que tenham condições de adquirir uma melhor qualidade de vida e justiça social.