27 Fevereiro 2020
"Deveríamos também abandonar definitivamente um modo de pensar paternalista e, finalmente, respeitar os direitos das mulheres na Igreja Católica. Porque Deus se fez humano em Jesus Cristo, não apenas um homem em sentido masculino", reflete Hubert Wolf, historiador e professor de história da Igreja em Münster, em entrevista editada por Christina Rietz, publicada por www.zeit.de (Christ & Welt), 21-02-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Prof. Wolf, numa escala de alfa a ômega, o quanto se sente desapontado pelo documento "Querida Amazônia" do Papa Francisco?
(após um momento de silêncio)
Estou bastante decepcionado. Estou muito perto do ômega. Mas a um historiador da Igreja pede-se um olhar analítico sobre a fonte.
No ano passado, no documento final, o Sínodo sobre a Amazônia aconselhou a ordenação dos viri probati, ou seja, de diáconos casados, para remediar a falta de padres na região amazônica. Na sua opinião, o que o documento papal diz a esse respeito?
Realmente não fala sobre isso. Pelo contrário, há afirmações exageradas sobre a dignidade do presbiterado em geral. O papa tenta ir ao encontro de seus críticos conservadores. Mas ele também escreve que o sacerdócio não é monolítico. O mais importante, porém, é que, na introdução, Francisco disse explicitamente que ele, com esse documento, não anula o documento final do sínodo. Em outras palavras, que continua sendo válida a decisão de três quartos dos bispos de querer ordenar viri probati. Francisco então manda a bola de volta aos bispos da Amazônia. Aos quais agora é solicitado dar um exemplo e ordenar homens casados.
E os bispos da Amazônia parecem de alguma forma convencidos do propósito.
Diante da catástrofe pastoral, no entanto, uma clara maioria é. No final, padres casados fazem evidentemente parte de nossa tradição como os celibatários. Com razão, o Concílio Vaticano II inculcou mais uma vez que o celibato não faz parte da essência do presbiterado. Mas os fiéis têm ou não têm o direito de receberem uma explicação clara sobre qual é a opinião do papa sobre esse tema? É preciso uma grande sutileza de interpretação para poder ler em "Querida Amazônia" a possibilidade de ordenação para os viri probati. Mas, em princípio, a porta está aberta.
Há um ponto cínico em Querida Amazônia: para superar a falta de padres, diz o papa, dever-se-ia rezar muito mais pelas vocações e incentivar jovens missionários a ir à Amazônia. Rezar em vez de afrouxar a disciplina do celibato, mas é uma zombaria!
Sim! No conjunto, no entanto, o documento possui duas partes. Existem visões muito boas para a ecologia e a identidade cultural na Amazônia que praticamente não são percebidas. E existem propostas de soluções tradicionais: fechar os olhos e rezar e, dessa maneira, atribuir a Deus a responsabilidade. A graça divina é irrenunciável, mas pressupõe a natureza. Até o papa deve fornecer uma pista de aterrissagem para o Espírito Santo. Francisco não pode fugir de sua responsabilidade se às pessoas for negada por muito tempo a fonte da vida da Eucaristia, porque quase não há mais padres. Aqui é necessário fazer uma clara análise de custo-benefício em favor da Eucaristia necessária para a salvação e uma relativização da disciplina eclesiástica do celibato determinada historicamente.
A imagem da mulher apresentada por Francisco, como é abordada no documento, não difere de forma alguma da imagem da mulher de seus antecessores. É baseada no modelo mariano e virginal e morre nessa dicotomia.
Essa imagem da mulher vem do século XIX e há muito foi superada entre nós. Acima de tudo, porém, não faz justiça às mulheres que lideram comunidades na Amazônia há cinquenta anos. E atribuir a essas mulheres, sem cujo empenho a Igreja amazônica já teria acabado há muito tempo, clericalismo e busca de poder, é mais do que cínico e faz justamente pensar no machismo clerical.
Esse documento é um tapa na cara para as mulheres católicas compromissadas.
Claramente. Eu não aceito de forma alguma essa imagem de mulher. Como poderia motivar seriamente jovens mulheres talentosas a prestar um serviço na Igreja Católica?
A intervenção de Ratzinger em favor do celibato, há algumas semanas, obrigou Francisco a propor esse documento conservador?
É difícil saber. Quando a exortação "Querida Amazônia" foi apresentada, várias traduções apareceram simultaneamente. É necessária alguma preparação para isso, então acredito que o documento já devia estar pronto há cerca de seis semanas. Mas, no geral, essas contínuas observações do papa aposentado sobre as decisões de seu sucessor são simplesmente inaceitáveis - não importa se Ratzinger faça isso conscientemente ou se é manipulado. E são contrárias às afirmações anteriores. Ele tinha dito que, depois de se aposentar, pretendia apenas ficar calado e rezar. Eu aconselharia Francisco a emitir urgentemente normas vinculantes em nível jurídico referentes à relação com os papas que renunciaram. Eu proporia: rigorosa clausura, isolamento taxativo da opinião pública, fim das peregrinações aos jardins do Vaticano.
Não é concebível que haja dois papas demissionários, ou sim?
A princípio, eu considerava que a demissão fosse um passo corajoso de Ratzinger, para evitar um fim como aquele de João Paulo II, que não era mais dono de suas decisões.
Mas dois homens vestidos de branco e a invenção do papa emérito é algo que contradiz a tradição da Igreja. Quando um papa se aposenta, ele deveria retornar ao status que tinha antes da eleição como papa, ou seja, ao cardinalato. Após as experiências desses anos, agora sou decididamente mais cético em relação à renúncia de um papa. Ela enfraquece a autoridade do magistério.
O que pensa sobre a palavra chave inculturação muito utilizada em "Querida Amazônia", o que o papa quer dizer com essa palavra?
O papa enfatiza, com razão, que a cultura específica da Amazônia deve ser levada a sério e que a Igreja católica deve realmente "inculturar-se" aqui, não apenas no que diz respeito à liturgia. Mas isso significa que a ideia deve ser ampliada: também os homens e as mulheres nas atuais modernas sociedades europeias têm o direito à inculturação do catolicismo. Mas então deveríamos também abandonar definitivamente um modo de pensar paternalista e, finalmente, respeitar os direitos das mulheres na Igreja Católica. Porque Deus se fez humano em Jesus Cristo, não apenas um homem em sentido masculino.
O Papa Francisco ainda pode ser considerado um papa a favor das reformas?
Eu diria que não. Ele recebeu no início elogios prematuros, foi celebrado como reformador - mas onde estão as corajosas reformas? Ele ficou nos anúncios. Façam-me propostas corajosas, ele disse. E agora ele as tinha sobre a mesa. E como reage sem coragem o sucessor de Pedro? Mas é interessante notar que mesmo os católicos a favor das reformas não olham primeiramente para seus bispos ou para sua própria consciência de crentes, mas continuam olhando para o papa. Introjetamos a imagem de uma Igreja monárquica do Concílio Vaticano I com a infalibilidade e a primazia jurisdicional - apesar das belas imagens do povo de Deus em caminho.
A Igreja tem uma constituição de monarquia absoluta. Onde se pode procurar outro modelo?
No entanto, os bispos são os sucessores dos apóstolos; todo batizado participa do triplo magistério de Cristo, essa é a doutrina da Igreja. Onde estão os bravos pastores? Se agora os bispos da Amazônia começam com a ordenação de viri probati, então os bispos alemães também voltam ao jogo. Talvez isso também tornasse o chamado Percurso Sinodal, pelo menos nesse tema, novamente um jogo interessante.
Como prossegue após a “Querida Amazônia” o Percurso sinodal que deve discutir as reformas na Igreja alemã?
Eu era muito cético desde o início, até porque todo o assunto é muito problemático do ponto de vista jurídico: o Percurso sinodal não é um sínodo, não tem competência para tomar decisões. Num sínodo, saberíamos o que esperar. E o que podemos dizer agora sobre o tema das mulheres e dos ministérios eclesiais depois que Francisco bateu a porta dessa maneira? Que bispo se colocaria abertamente em contraste com esse ensinamento apresentado pelo papa? E além do mais, agora, que o presidente da Conferência episcopal se retirou, ele que mais do que qualquer outra pessoa acreditava nesse processo. Não é por acaso que o cardeal Marx anunciou seu afastamento um dia antes da publicação de Querida Amazônia.
O pontificado de Francisco agora está politicamente morto?
Que grandes reformas ainda poderiam chegar? O que ainda pode se esperar de um papa que diz: façam-me propostas corajosas - e quando bispos e laicos, por grande maioria, fazem propostas corajosas ... o que acontece? Nada. Portanto, deste ponto de vista, não espero mais nada.
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Sínodo para a Amazônia: “O que ainda há para acontecer, agora?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU