17 Fevereiro 2020
Eu acredito que o “sonho eclesial”, que a “Querida Amazônia” escreveu com fogo e que deixará a sua marca, também deve contemplar um “sonho feminino”, um sonho sobre as mulheres, mas, acima de tudo, um sonho das mulheres, que brota do seu corpo, do seu desejo e do seu discernimento da Palavra.
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 14-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O debate levantado pelo novo documento papal é de grande interesse. Não apenas porque levanta as mais diversas reações, do total pessimismo sobre as possibilidades de renovação eclesial até a descoberta de novos caminhos de transformação real que se descerram justamente graças a essa exortação.
Aqui, porém, gostaria de me deter sobre um ponto particular da exortação, ou seja, considerando que ela reserva à categoria de “leigo” e, em seu interior, à de “mulher”. E gostaria de partir de dois textos importantes, que lemos nesses dias.
Por um lado, a audaz reação de Cristina Simonelli, no blog da revista Il Regno. Por outro, a afiada leitura de Riccardo Cristiano, em relação a um texto do arcebispo Víctor Manuel Fernández, para o blog Formiche.
Em uma síntese extrema, surpreende-me como pode se dar, ao mesmo tempo, uma grande mutação de horizonte, que possa prever uma “Igreja marcadamente laical”, até mesmo uma “Igreja Católica de rito amazônico”, fundada sobre uma autoridade predominantemente laical, e, ao mesmo tempo, apareça no mesmo texto uma compreensão tão limitada e tão desajeitada da mulher, na qual ela é pensada e apresentada “fora do espaço e fora do tempo” e sem impulso.
Esse é o ponto sobre o qual eu gostaria de me deter. A questão é rapidamente formulada: para pensar o “processo eclesial” de transformação da “forma tridentina” da instituição, precisaríamos de uma elaboração bem mais avançada daquilo que chamamos de “leigo” e daquilo que dizemos sobre a “mulher”.
Vejamos rapidamente algo de ambas as categorias.
A categoria “leigos” continua sendo uma categoria residual e pouco significativa, tanto do ponto de vista teológico, quanto do ponto de vista eclesiológico. Se continuarmos raciocinando “por diferença” – leigos são todos aqueles que não são clérigos – não obteremos muito fruto com isso.
Penso que deveríamos deixar de falar assim. Porque os cristãos, todos os cristãos batizados, são “conformes a Cristo” e, na relação, com ele participam do “sacerdócio comum”, a serviço do qual existe um sacerdócio ministerial.
É evidente que a vantagem da categoria “laicato” é justamente deixar inalterada uma categoria de sacerdócio reservada aos clérigos. Mas isso, a partir do Concílio Vaticano II, é uma visão velha, datada e ineficaz. Eu entendo muito bem que se deva trabalhar por modelos eclesiais diferentes, mas, acima de tudo, devemos começar pelas palavras.
Na Amazônia – como na Alemanha, na Polônia ou na África – não há “leigos”, mas sim fiéis que participam do sacerdócio comum, além do múnus profético e real. Se começarmos a pensar desse modo, certamente podemos ver que uma Igreja “de batizados” – que não é uma coisa nova – exige uma reavaliação acurada dos sujeitos comuns e dos sujeitos ministeriais.
As páginas dedicadas à mulher estão entre as menos felizes da “Querida Amazônia”. Mas isso não ocorre sem motivo. Com efeito, o tema do laicato já é redutivo; se acrescentarmos o adjetivo “laicato feminino”, alcançaremos o máximo da redução. Trata-se de uma redução que sofre de uma dupla minoridade.
- A primeira depende da pretensão de que “o modelo de mulher” seja sempre o mesmo, no espaço e no tempo. E que, portanto, não deve ser afetado pelas variáveis culturais. Que tudo pode ser inculturado, menos a mulher, imune a qualquer mudança, seja as “modernas”, que fizeram emergir uma nova identidade “pública” da mulher; seja as provenientes de “tradições diferentes”, nas quais, não por causa da modernização, mas por outras razões, as mulheres exercem um papel “público” e “de autoridade” de modo estrutural.
- A segunda depende da interferência “espiritual” desse modelo “a-histórico”, em que a vocação da mulher é lida projetando todo o peso da definição sobre alguns modelos femininos da tradição. Até o ponto de correlacionar os homens batizados com Cristo e as mulheres batizadas com Maria. Essa operação é teoricamente fragilíssima e sem um verdadeiro fundamento, senão nos hábitos de uma parte da tradição europeia, que assim elaborou a pretensão de uma identidade estática.
Por isso, parece-me, o grande valor da “Querida Amazônia” deriva de um grande esforço de “conhecimento direto” do fenômeno Amazônia. Podemos dizer “querida” para a Amazônia, porque fizemos o esforço de conhecê-la realmente, de subtraí-la dos estereótipos, de vivê-la com paixão. A sua floresta se torna hospitaleira e cheia de vida se não a submetemos imediatamente às regras da floresta urbana ou da floresta curial.
Devemos fazer a mesma coisa com a “mulher”. A floresta do feminino, que cobre metade da terra, também deve ser subtraída à força de preconceitos seculares, da cegueira de correlações ingênuas demais ou maliciosas demais, das quais a floresta curial é mestra.
Uma teologia da mulher só pode passar por uma teologia das mulheres. O caminho eclesial, que é clarividente, já tem mulheres, muitas e qualificadas, que podem ensinar teologia e ter autoridade na Igreja, não apenas em privado. Nenhuma mulher jamais teria escrito aquilo que os homens da Cúria escreveram sobre ela, sem conhecê-la realmente.
Eu acredito que o “sonho eclesial”, que a “Querida Amazônia” escreveu com fogo e que deixará a sua marca, também deve contemplar um “sonho feminino”, um sonho sobre as mulheres, mas, acima de tudo, um sonho das mulheres, que brota do seu corpo, do seu desejo e do seu discernimento da Palavra.
Eu não gostaria que nos iludíssemos de que estamos construindo uma “Igreja do povo”, na Amazônia ou em outro lugar, sem rever, bem a fundo, o modo com que falamos das mulheres. Salvas pelo único Cristo e a serviço do único Senhor. Sob a “proteção” de Maria, certamente, mas exatamente como todos os outros.
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“Querida Amazônia” também pode se tornar “Querida Mujer”? Sobre os leigos e o ministério das mulheres. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU