07 Fevereiro 2020
“Sem um conhecimento real da encíclica Laudato Si’ será impossível compreender o Sínodo Amazônico e suas reais implicações e, no sentido oposto, é necessário entrar na experiência sinodal sobre a Amazônia, ainda em processo, para reconhecer uma das mais importantes concretizações desta encíclica social sobre o cuidado da casa comum. O que o Papa disse expressa que na dupla encíclica-sínodo está uma das rotas atuais mais contundentes para a Igreja frente à crise climática global”, escreve Mauricio López, secretário executivo da REPAM, em artigo publicado por Vida Nueva, 06-02-2020. A tradução é do Cepat.
No dia 9 de agosto de 2019, o Papa Francisco expressava em uma entrevista para ‘La Stampa’ que o Sínodo para a Amazônia “é filho do Laudato Si’. Quem não leu, nunca entenderá o Sínodo para a Amazônia. A Laudato Si’ não é uma encíclica verde, é uma encíclica social, que se baseia em uma realidade verde, a guardiã da Criação”.
Essa afirmação é contundente e não deixa dúvidas sobre a importância deste Sínodo para toda a Igreja e, ao mesmo tempo, estabelece a relação deste território amazônico com o futuro do planeta, pela maneira como o próprio Papa o conecta de maneira direta com sua revolucionária encíclica sobre o cuidado da casa comum. Francisco continua dizendo que estamos em “uma situação de emergência mundial. Nosso sínodo será de urgência”.
Sem um conhecimento real da encíclica Laudato Si’ será impossível compreender o Sínodo Amazônico e suas reais implicações e, no sentido oposto, é necessário entrar na experiência sinodal sobre a Amazônia, ainda em processo, para reconhecer uma das mais importantes concretizações desta encíclica social sobre o cuidado da casa comum. O que o Papa disse expressa que na dupla encíclica-sínodo está uma das rotas atuais mais contundentes para a Igreja frente à crise climática global.
O Papa Francisco se caracteriza por acompanhar suas intuições e orientações com gestos concretos, de modo que o Sínodo especial que aparentemente se concentrou em um território específico é, na realidade, uma expressão paradigmática do que significa o chamado urgente e inadiável pelo cuidado da casa comum para todo crente e para toda pessoa de boa vontade, a partir de um território específico que fala do local e do global simultaneamente e de modo interconectado.
Nos próximos dias, o Papa apresentará sua Exortação sobre o Sínodo da Amazônia, e então todo o processo de escuta, discernimento e definição de novos caminhos se tornará ‘magistério’, isto é, delineamento explícito e inescapável para toda a Igreja e seus membros, e como um auxílio a ser compartilhado com qualquer pessoa de boa vontade que se sinta identificada. Nesse momento, o impulso do Sínodo Amazônico como voz da periferia que ilumina o centro será, ainda mais, uma contribuição essencial para que as abordagens da encíclica Laudato Si’ permaneçam ativas e vigentes na Amazônia, e muito para além dela, pelo que foi dito anteriormente.
Não é um segredo que muitíssimos crentes não consideram que o cuidado da casa comum seja um elemento inerente a sua identidade como membros desta Igreja. Diante disso, é imperativo mudar essa situação.
O crente do tempo presente, para ser genuinamente seguidor de Cristo, deve assumir um compromisso real e credível com o cuidado da casa comum em obras e palavras. Deus criou tudo para que tenhamos vida e vida em abundância, e quando nosso planeta está em risco, sua diversidade, e o próprio futuro da humanidade, o dos ecossistemas, de outros seres vivos e, sobretudo, o dos irmãos e irmãs mais atingidos pelos efeitos atuais de nosso modelo de sociedade sobre o seu ambiente e a continuidade de suas vidas, é impossível não reconhecer nossa responsabilidade para atuar em coerência com o chamado do Evangelho de Jesus. A fé em Cristo deve, necessariamente, estar associada ao cuidado da vida e a garantir a continuidade desta no planeta, sempre com um olhar prioritário sobre os mais vulneráveis em termos de justiça socioambiental, e reconhecendo a Terra como verdadeira irmã e mãe.
A terra é a origem e o sustento de nossa vida e, portanto, o lugar onde acontece a Encarnação.
Dito isto, a encíclica Laudato Si’ é, portanto, um dos documentos contemporâneos mais importantes para a Igreja e para toda a sociedade. No entanto, corre o risco de ser reduzida a um texto que, apesar de sua relevância incomparável, caia no esquecimento, seja associada exclusivamente àqueles que já têm um compromisso ou sensibilidade nessa área, ou seja considerado de menor valor em nosso magistério, mesmo quando faz parte do corpus da Doutrina Social da Igreja.
Não é possível ser membro da Igreja Católica hoje e não assumir a encíclica Laudato Si’ como uma referência vital em nossa própria identidade e modo de ser no mundo. Cristo é crucificado hoje quando se mata a possibilidade de vida em nosso planeta, e quando assassinam mulheres e homens defensores da natureza, de suas culturas e territórios, por interesses materiais mesquinhos associados ao desejo de acumulação de muito poucos.
A verdade é que quando vemos os dados existentes das mais importantes instâncias intergovernamentais, dos mais reconhecidos painéis de cientistas multidisciplinares sobre o tema ambiental, e vendo a complexa situação socioambiental do nosso dia a dia, que continua sendo agravada por nossa inação ou pela fraqueza de nossa resposta, não podemos a não ser assumir que alcançamos e ultrapassamos os limites da razão tecnocrática, diante da chegada do “tempo do mundo finito”, como disse Serge Latouche.
Existe um consenso praticamente absoluto sobre isto por parte dos mais relevantes grupos de pesquisa, sendo assim, não é necessário nos determos nesses detalhes que serão desenvolvidos mais adiante, em outros artigos. A verdade é que, além de uma resposta a partir dos organismos internacionais e dos governos sobre os valores mínimos não negociáveis, precisamos de uma perspectiva ético-moral global sobre o cuidado da casa comum, dada a incapacidade de nossa comunidade planetária em reconhecer os limites de nosso modelo de sociedade de consumo.
Nesse sentido, gostaria de mencionar os “traços da cosmologia social ocidental” e os “traços da estrutura social ocidental” de Johan Galtung, para identificar, para além dos diagnósticos, as causas estruturais dessa crise ambiental associada a uma globalização sem limites e a uma “cultura do descarte”:
- Uma concepção ocidental centrista e universalista do espaço;
- Uma concepção linear do tempo, centrada no presente;
- Uma concepção analítica, mais do que holística da epistemologia;
- Uma concepção das relações humanas em termos de dominação;
- Divisão do trabalho vertical e centralizada;
- Condicionamento da periferia pelo centro;
- Marginalização: divisão social entre exterior e interior;
- Fragmentação: atomização dos indivíduos dentro dos grupos;
- Segmentação: divisão dentro dos indivíduos.
A opção da Igreja diante dessa situação se expressa de maneira bela e contundente na encíclica Laudato Si’, mencionada acima, e pode ser compreendida, sobretudo, com esta afirmação:
“Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a sobriedade e o cuidado” (Laudato Si’, n. 11).
Nesse sentido, é necessário fazer uma leitura pessoal, comunitária e social dessa encíclica a partir de três perspectivas que nos ajudam a nos perguntar o quanto levamos a sério esse chamado:
- Metanoia. Chamado a uma transformação profunda e radical do coração. Ou seja, uma mudança séria e determinante, que me leve a ser e a fazer a partir de uma visão diferente de mim mesmo. Assumir a mudança no cuidado de nossa casa comum e de todos os que nela habitam, significa repensar e reformular todo o nosso esquema de vida, começando com essa conversão pessoal.
- Alteridade. Esta palavra significa encontrar o sentido da própria vida, inclusive sobre o meu próprio mistério, a partir dos olhos e da existência do outro. Minha essência está fortemente determinada pela capacidade de reconhecer o mistério da vida que me plenifica na medida em que me reconheço para além de mim mesmo, e nos olhos dos outros. E, nesse sentido, a Laudato Si’ nos chama a dar mais um passo ao reconhecer a irmã-mãe terra como outra com quem temos uma relação de interdependência e da qual viemos.
Parresia. Significa a ousadia de se entregar, de falar e de atuar com coragem. Trata-se de ter a coragem de tornar possível o necessário diante da crise climática que segue piorando. Precisamos nos perguntar se temos a coragem de passar da mudança interior, e do reconhecimento do outro-a, para chegar a uma disposição de gastar a vida e entregá-la por um anseio e horizonte maior que o nosso, e de ser um sujeito atuante e transformador dessa situação, mesmo com as consequências que isso possa ter.
O Sínodo Amazônico foi em boa medida o resultado das intuições presentes na Laudato Si’, mas é, também, consequência de um longo processo histórico e eclesiológico que incorpora essas três perspectivas: metanoia, alteridade e parresia, e que suscita uma série de desafios ou possibilidades que precisam ser desenvolvidos no tempo, naquilo que reconhecemos como um verdadeiro kairós, ou seja, um tempo propício, que não podemos sujeitar, controlar ou medir, e diante do qual somos convidados a entrar nas águas deste Sínodo e navegar ao ritmo do Espírito. Ou seja, atuando e trabalhando incansavelmente diante da crise socioambiental tão urgente e crítica à Amazônia e seus povos, e a todo o planeta, seguindo as principais lições que este Sínodo nos deixa em relação à encíclica Laudato Si’:
- A experiência de conversão, ou seja, ser transformados por e para a Amazônia como território vivo e diverso, e por e para seus povos e comunidades, é ao mesmo tempo a maneira pela qual o próprio Deus vai nos mostrando o caminho que devemos seguir como Igreja a serviço da vida à luz das orientações da Doutrina Social, na encíclica Laudato Si’. Confiar em que Deus caminha conosco, que está e esteve presente nesse processo, e que nos convida a ser verdadeiros cocriadores de novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral.
- Este Sínodo já é uma experiência inédita de caminhar juntos e transformou a Igreja a partir dos dons da periferia, antes considerada indesejável, que chegam ao centro lhe ajudando em seu próprio processo permanente de reforma em andamento. Uma conversão real liderada pelo Papa Francisco e que hoje é irrenunciável, para ser mais uma Igreja em saída, que dialoga com os outros diversos em um nível de respeito e igualdade, que se afirma como uma voz ética, mártir e profética diante da crise socioambiental sem precedentes, e que assume posição, como o próprio Jesus, ao lado daqueles considerados descartáveis e que hoje ilustram os novos caminhos.
- Os testemunhos de incontáveis mulheres e homens mártires da Amazônia, que mostram a força viva do caminho de entrega para ser sementes que são semeadas no coração dos povos, na opção pela justiça, e sendo vida e vida em abundância para eles. Nesse mesmo sentido, tantos profetas, os conhecidos e os anônimos/as, que entregaram sua vida e que a entregam a partir de suas opções particulares, institucionais, em rede, e a partir de seu ser leigos/as, missionários/as, religiosos/as, padres, bispos e muitos outros que abriram o coração para dar vida a esse processo sinodal e para encarnar as orientações da Laudato Si’, sendo muitas vezes questionados, criticados, desacreditados e até caluniados por assumirem essa opção.
- A vida dos povos indígenas em geral, e das mulheres em particular, que deram um tom totalmente diferente, mais vivo, renovado e corajoso a este Sínodo, projetando os elementos da ecologia integral presentes na Laudato Si’. Sua clareza, o testemunho de suas vidas, sua conexão espiritual com a Amazônia, e o corajoso clamor por uma mudança já, pedindo que a Igreja seja sua aliada e que respondamos para além das diferenças diante da emergência climática, deixaram uma marca inapagável neste Sínodo que teve voz de mulher, com rosto intercultural.
- E, sobretudo, saber que o Sínodo é um processo contínuo e de longo prazo, o que implica continuar aprendendo com os povos e comunidades, fazendo com eles uma opção inculturada e intercultural, sabendo que o melhor vinho ainda está por vir. É o novo vinho que requer odres novos para poder amadurecer pouco a pouco e saber que o reino e a possibilidade de outro mundo está aí, que devemos lutar por isso, e que a morte não tem, nem nunca terá a última palavra. Devemos descobrir nos povos amazônicos, com suas próprias fragilidades, os ensinamentos para um possível novo caminho para o bem viver e para uma relação mais harmoniosa com o todo, com o cosmos.
- Texto original publicado na Revista Ibero, n. 66, fevereiro-março de 2020. ‘Salvar la Casa Común’.
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Da encíclica Laudato Si’ ao Sínodo da Amazônia. Artigo de Mauricio López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU