24 Outubro 2019
"Há a “trumpificação” de um segmento da comunidade católica conservadora. O vulgar presidente dos EUA, que transita em epítetos raciais e na demonização das minorias, deu permissão para os racistas se revelarem, colocarem seu ódio em exibição, gravá-lo e vendê-lo na internet", constata o editorial de National Catholic Reporter, 23-10-2019, comentando o furto das imagens ocorrida em Roma, nesta semana, por ocasião do Sínodo da Amazônia. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o editorial, "o vandalismo é sempre feio. Ele leva o nome das tribos não cristãs que invadiram a Europa e, posteriormente, foram convertidas ao arianismo. Eles eram mestres da destruição e saquearam Roma em 455. Obviamente, eles não derrotaram a fé católica na época, e os seus imitadores do século XXI não se sairão melhor".
“¿No estoy yo aquí que soy tu madre?” Não estou eu aqui, que sou tua mãe? Essas são as palavras ditas a Juan Diego pela Virgem de Guadalupe. Ou quase. É assim que os católicos mexicanos se lembram da pergunta, mas Juan Diego ouviu a Mãe Santíssima falando com ele em Nahuatl, a língua nativa dos astecas, dos quais ele fazia parte. A devoção à Virgem sob esse título se espalhou por todo o México e além. Em 1999, o papa São João Paulo II proclamou a Virgem de Guadalupe como “Imperatriz das Américas”.
O fato de se saber que a Mãe Santíssima apareceu em lugares diferentes – no monte Tepeyac, em La Sallette e Lourdes, Fátima e Knock – é algo característico do catolicismo. A nossa fé é encarnacional. Os crucifixos na África retratam Jesus como negro, assim como as imagens mais populares de Jesus nos EUA o fazem parecer mais branco do que um judeu do primeiro século. Na Ásia, Cristo e a Mãe Santíssima são representados com características asiáticas.
Na Amazônia, assim como em outros lugares, os símbolos de fé surgem a partir de uma cultura indígena. A sua profanação em Roma, aparentemente por criminosos eclesiais, foi um ato desprezível e deveria ser condenado por todos. Ainda não se sabe nada sobre a motivação daqueles que realmente cometeram o furto e a destruição, mas a aparição de um vídeo em sites católicos de extrema direita e a torcida por parte dessa ala da Igreja certamente levantam suspeitas legítimas.
Desde o Concílio de Jerusalém, o Evangelho tem sido acessível a todos, independentemente de nacionalidade, raça ou gênero. “Em Cristo não há Oriente ou Ocidente, Nele não existe Norte ou Sul”, cantamos em um belo hino em inglês.
Para alguns católicos hoje, no entanto, o Evangelho se adequa apenas a uma cultura, a cultura ocidental por volta de 1955. Desde que o papa Francisco plantou uma árvore na Festa de São Francisco de Assis, e os povos indígenas da Amazônia levaram alguns de seus símbolos espirituais para o breve rito de oração que acompanhou o plantio de árvores, os críticos do papa têm se rebelado, reclamando da presença de ídolos pagãos dentro dos muros do Vaticano, especificamente de uma imagem de uma mulher grávida.
As autoridades vaticanas se recusaram a especificar se a imagem é ou não de “Nossa Senhora da Amazônia”; portanto, pode ser apenas uma imagem de uma mulher grávida, até mesmo um símbolo da Mãe Terra. São Francisco de Assis, em seu “Cântico das Criaturas”, reza: “Louvados sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a mãe Terra”, mas não nos lembramos de manifestantes que se dirigiram à cidade montanhosa de Assis para denunciar Francisco por sincretismo. Os meios de comunicação previsíveis – EWTN, LifeSite News, National Catholic Register, Catholic News Agency – alimentaram o mal-estar conservador até um ponto febril.
Portanto, não deveria surpreender que dois jovens tenham se encarregado de vandalizar uma igreja perto do Vaticano, roubar a estátua da mulher grávida e jogá-la no rio Tibre. Perguntamo-nos se a Guarda Suíça colocou sentinelas em frente à “Escola de Atenas” de Rafael, nos apartamentos papais, visto que ela apresenta vários pagãos dignos de nota, como Platão e Aristóteles.
O que está acontecendo? É a “trumpificação” de um segmento da comunidade católica conservadora. O vulgar presidente dos EUA, que transita em epítetos raciais e na demonização das minorias, deu permissão para os racistas se revelarem, colocarem seu ódio em exibição, gravá-lo e vendê-lo na internet.
Não usamos o termo “racistas” levianamente, mas o que mais é? É possível imaginar o clamor conservador se alguém jogasse a imagem de Nossa Senhora de Czestochowa no Tibre? Ou zombasse da imagem ocidental de uma mulher grávida do tipo encontrada em muitos cartazes da Marcha pela Vida todos os anos? Isso seria um insulto à cultura da vida.
Há muitas camadas nessa história, mas a nossa indignação nos obriga a falar imediatamente e a denunciar o racismo que tão obviamente animou esse ato covarde e o universo do Twitter que o encorajou e elogiou.
O vandalismo é sempre feio. Ele leva o nome das tribos não cristãs que invadiram a Europa e, posteriormente, foram convertidas ao arianismo. Eles eram mestres da destruição e saquearam Roma em 455. Obviamente, eles não derrotaram a fé católica na época, e os seus imitadores do século XXI não se sairão melhor.
Há um novo vento soprando na Igreja, um vento de engajamento e de discernimento, de acompanhamento e de misericórdia. Eles podem não gostar disso, mas não podem ordenar que ele pare, não podem mandar no próprio vento.
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Profanação de estátuas amazônicas foi um ato racista, afirma editorial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU