04 Outubro 2019
"Por séculos, o cristianismo católico foi um parceiro dos empreendimentos coloniais que buscavam, pela força, difundir a Igreja e o império, supondo a invalidade ou, no mínimo, a inferioridade das tradições não ocidentais e não cristãs. Este documento de trabalho deixa claro que os vários contextos culturais dos diversos povos da Amazônia devem ser vistos como interlocutores iguais e mutuamente enriquecedores."
O comentário é de Daniel P. Horan, frade franciscano e professor assistente de teologia sistemática e espiritualidade na Catholic Theological Union em Chicago. Seu mais recente livro, intitulado Catholicity and Emerging Personhood: A Contemporary Theological Anthropology (Catolicidade e pessoalidade emergente: uma antropologia teológica contemporânea, em tradução livre), foi publicado semana passada. O artigo é publicado por National Catholic Reporter, 02-10-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Instrumentum Laboris (ou “documento de trabalho”) para o Sínodo dos Bispos pan-amazônico deste mês em Roma é ousado, desafiador e surpreendente em vários sentidos, e não só pelos motivos que a maioria das pessoas lhe atribui. Uma quantidade desproporcional de atenção tem sido dada às propostas delineadas em um único parágrafo (129) de um documento que contém 147 parágrafos. O foco dos apoiadores e dos detratores também tem se voltado às discussões de uma possível ordenação de índios mais velhos ao ministério sacerdotal e à exploração da ideia de expansão do papel da mulher no ministério (embora aqui não se mencione a ordenação sacerdotal). Ainda que importantes e oportunos, estes tópicos não deveriam ser tratados isoladamente.
Com o sínodo marcado para começar no domingo, creio que seja válido considerar a importância dos outros 146 parágrafos do documento de trabalho, que delineiam uma pauta sinodal diferente daquela que tipicamente precede uma assembleia vaticana desse gênero. Em particular, o documento invoca uma linguagem familiar aos estudiosos da decolonialidade (termo acadêmico que se refere a abordagens de conhecimento, experiência e interpretação que não priorizam cosmovisões ocidentais, eurocêntricas como normativas) e de estudos interculturais, os quais sinalizam, para mim pelo menos, uma abertura maior a diálogos teológicos e pastorais que refletem uma Igreja verdadeiramente global.
Um dos aspectos mais surpreendentes do documento de trabalho deste sínodo é o tom dado pelo texto. O documento não encobre a cumplicidade colonial da Igreja na América Latina e os séculos subsequentes de subjugação e injustiça que se seguiram, especialmente na medida em que fala do tratamento dado pela Igreja aos povos indígenas. No parágrafo de abertura da primeira parte do documento, lemos: “o anúncio de Cristo se realizou frequentemente em conivência com os poderes que exploravam os recursos e oprimiam as populações” (6). Mais adiante, o documento afirma: “Neste passado, às vezes a Igreja foi cúmplice dos colonizadores, sufocando a voz profética do Evangelho” (38).
Além de reconhecer o papel histórico da Igreja no processo de colonização das terras, dos povos e das culturas da região amazônica, o documento de trabalho igualmente reflete algumas das características centrais daquilo que os estudiosos chamam de decolonialidade – uma visão e um modo de interpretação. Além das esferas materiais, sociais e políticas, uma consequência da história colonial europeia em lugares como a América do Sul tem sido uma cooptação de conhecimento e uma imposição das assim-chamadas culturas e cosmovisões ocidentais.
Abraçando a decolonialidade, o texto começa por reconhecer esta hegemonia ocidentais que buscou destruir não só comunidades indígenas como também apagar suas culturas, convicções, tradições, religiões, linguagens, histórias e visões de mundo. Retornar a estas fontes subjugadas de experiência e sabedoria é um objetivo importante da decolonialidade. O professor da Universidade Duke Walter Mignolo explica que “decolonialidade significa primeiro desvincular-se (desconectar-se) daquela estrutura [colonial] geral para se engajar em uma reconstituição epistêmica. Reconstituição do quê? Das maneiras de pensar, das linguagens, modos de vida e de estar no mundo que a retórica da modernidade repudiou e que a lógica da colonialidade implementou”.
Um movimento em direção à acolhida da decolonialidade é o reconhecimento da necessidade de valorizar e priorizar fontes de sabedoria e experiência que não apenas vêm dos contextos geográficos da Europa ocidental ou da América do Norte, ou do horizonte intelectual da modernidade. Em vez disso, como sugere o documento de trabalho, há locais subvalorizados, ignorados de conhecimento que devem ser valorizados e considerados.
A primeira parte do documento focaliza na escuta da “voz da Amazônia”, um apanhado de ideias vindas dos vários grupos de trabalho realizados nos variados países e culturas da região amazônica. “Desta maneira, a escuta dos povos e da terra por parte de uma Igreja chamada a ser cada vez mais sinodal, começa entrando em contato com a realidade contrastante de uma Amazônia repleta de vida e sabedoria” (5). A mesma sabedoria tradicional das diversas comunidades da região amazônica que os colonizadores europeus rejeitavam como inferiores ou como inutilmente “pagãs” em gerações anteriores é, agora, proposta como o lócus próprio para intuições com as quais a Igreja universal pode e deve aprender. Temas priorizados no recente magistério católico, como aquele que o Papa Francisco chama de “ecologia integral”, há tempos são conceitos e abordagens situadas dentro dos ensinamentos e práticas tradicionais de várias populações indígenas.
Sempre há o risco de uma simplificação exagerada, um mal-entendido ou apropriação indevida de experiências e conhecimentos das comunidades há muito subordinadas pelos colonizadores e pela lógica da colonialidade, especialmente quando os que buscam “aprender” são os que ocupam posições de poder e privilégio. É aí onde o documento de trabalho, embora não perfeito, não obstante defende o diálogo intercultural em um esforço consciente para preservar a integridade das distinções tradições e culturas.
O documento se refere ao discurso de 2018 do Papa Francisco a um encontro de indígenas da Amazônia, e diz: “Referindo-se à Amazônia, o Papa considera que é ‘imprescindível fazer esforços para (...) um diálogo intercultural no qual [os povos indígenas] sejam os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os [seus] espaços. O reconhecimento e o diálogo serão o melhor caminho para transformar as velhas relações, marcadas pela exclusão e a discriminação” (35).
Enquanto a história do encontro modelada pela lógica colonial levou à supressão das culturas e experiências tradicionais, um encontro modelado pela interculturalidade é um “mútuo enriquecimento das culturas em diálogo” (122). O significado deste movimento não deve ser ignorado.
Por séculos, o cristianismo católico foi um parceiro dos empreendimentos coloniais que buscavam, pela força, difundir a Igreja e o império, supondo a invalidade ou, no mínimo, a inferioridade das tradições não ocidentais e não cristãs. Este documento de trabalho deixa claro que os vários contextos culturais dos diversos povos da Amazônia devem ser vistos como interlocutores iguais e mutualmente enriquecedores. Mais que isso, juntamente com esta mudança decolonial e metodologia intercultural, o documento reitera a importância da inculturação da fé – o cristianismo válido não se limita a iterações europeias ocidentais ou norte-americanas, mas pode se encarnar na (e refletir a) pluralidade de contextos ao redor do mundo.
Embora a atenção dos meios de comunicação nas próximas semanas estará inevitavelmente preocupada com as questões vistas como as mais contenciosas e polêmicas deste Sínodo dos Bispos, um outro tipo de mudança na forma como fazer história pode estar a caminho, modelando como a Igreja compreende a si e se envolve com outras tradições.
Se a possibilidade de um clero casado ou de uma expansão do papel da mulher na Igreja for além dos debates sinodais (caso esses temas forem, em primeiro lugar, discutidos seriamente), um apoio a se acolher a decolonialidade e um engajamento no diálogo intercultural poderão ter um efeito duradouro na Igreja Católica que melhor reflita a sua identidade diversa e mundial no futuro.
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Esperanças decoloniais e interculturais do Sínodo para a Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU