03 Outubro 2019
“A irresponsabilidade de Bolsonaro é de tal monta que juristas mundiais cogitam acusá-lo de ecocídio, crime reconhecido pela ONU em 2006 e levá-lo ao tribunal dos crimes contra a humanidade. Derrubar a floresta é afetar o regime das águas. A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível. Sem água não há vida. Bolsonaro se faria com suas políticas atrasadas de mineração e de extrativismo de riquezas, abundantes nesse bioma”, escreve Leonardo Boff, eco-teólogo, filósofo e escritor.
O artigo foi publicado aqui no dia 05-09-2019. Tendo em vista o início do Sínodo Pan-Amazônico no próximo domingo, republicamos o artigo, em nova versão enviada pelo autor.
Os recentes incêndios da Amazônia brasileira e boliviana, mais as discussões dos G7 em Biaritz em setembro trouxeram à baila a importância do bioma amazônico para o equilíbrio e, eventualmente, para o futuro da vida. Quem melhor viu a questão em seu aspecto global foi Emmanuel Macron da França.
Os descasos com que o presidente do Brasil tratou a questão ambiental, negando os dados científicos mais sérios e as ameaças às reservas indígenas, acrescido ainda o desmonte feito pelo ministro do Meio Ambiente dos principais organismos de proteção da floresta e das terras indígenas e da vigilância do avanço descontrolado do agronegócio sobre a mata virgem, mostraram a gravidade da situação. Diante de madeireiros o Presidente, de forma ignorante das consequências ecológicas e numa restrita concepção de soberania como se estivéssemos ainda a alguns séculos passados, dizia a madeireiros que o que conta não são plantas em pé, mas em seu lugar a extração de misérias. E eles aplaudiam ávidos dos lucros e indiferentes às vidas sacrificadas da biodiversidade e dos povos da floresta.
Note-se no entanto, que segundo notáveis especialistas internacionais, a Amazônia é a segunda área mais vulnerável do planeta em relação à mudança climática provocada pelos seres humanos.
O próprio Papa Francisco advertiu “que o futuro da humanidade e da Terra está vinculado ao futuro da Amazônia; pela primeira vez, se manifesta com tanta claridade que desafios, conflitos e oportunidades emergentes em um território, são a expressão dramática do momento que atravessa a sobrevivência do planeta Terra e a convivência de toda a humanidade”.
São palavras graves, menosprezadas pelas grandes corporações depredadoras, porque se dariam conta de que deveriam trocar de modo de produção, de consumo e de descarte. Mas preferem o lucro que a salvaguarda da vida humana e terrenal.
Não sem razão, o Papa Francisco convocou O Sínodo Pan-amazônico para agora em outubro do corrente ano cujo tema é: ”Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Trata-se de uma aplicação de sua encíclica “sobre o cuidado da Casa Comum” para evitar uma catástrofe socioecológica mundial. Não se trata de uma ecologia ambiental e verde mas de uma ecologia integral, que envolve o ambiente, a sociedade, a política, a economia, o cotidiano e a dimensão espiritual.
Além disso quer favorecer uma eclesiogênese, o nascimento de uma Igreja nascida do encontro do evangelho com as culturas originárias. Que elas façam o que os cristãos nos inícios fizeram que foi dialogar com as culturas gregas, latina e germânica e mais tarde com a moderna e criar sua síntese que resultou no atual cristianismo. Os indígenas são convidados a seguir o mesmo caminho, de onde nasce uma Igreja de rosto indígena, com suas liturgias próprias e, provavelmente, com homens casados e ordenados sacerdotes.
Consideremos alguns dados gerais sobre o bioma amazônico: cobre uma extensão de 8.129.057 Km2 com nove países: Brasil (67%), Peru (13%), Bolívia (11%), Colômbia (6%), Equador (2%), Venezuela (1%), Suriname, Guiana e Guiana francesa (0,15). Vivem aí 37.731.569 habitantes, sendo que 2,8 milhões são indígenas de 390 povos distintos falando 240 idiomas, da rica matriz de 49 ramos linguísticos, um fenômeno inigualável na história da linguística mundial.
Existem três rios amazônicos: o visível, da superfície, o aéreo, os chamados “rios voadores” (cada copa de árvore com 20 metros de extensão produz 1000 litros de umidade que vão trazer chuvas para o cerrado, para o sul, até o norte da Argentina); o terceiro invisível é o rio “rés do chão” (não confundir com o lugarejo turístico Res do Chão), um rio subterrâneo que corre debaixo do atual Amazonas.
Todo o bioma amazônico constitui um Bem Comum da Terra e da Humanidade. Na visão dos astronautas isso é evidente: da Lua ou de suas naves espaciais, Terra e Humanidade formam uma única entidade. O ser humano é aquela porção da Terra que começou a sentir, pensar, amar e cuidar. Somos Terra, como enfatiza o Papa e a própria Bíblia. A própria Terra é viva, Gaia, que origina todas as formas de vida.
Agora, na fase planetária, todos nos encontramos numa mesma e única Casa Comum. O tempo das nações está passando; agora é o tempo da Terra, administrada por um corpo multipolar e orgânica para atender aos problemas da única Casa Comum e de seus habitantes. Será, como já previa Immanuel Kant no seu último livro “A Paz Perpétua”, de 1789, a República Mundial (Welrepublick) sob a égide da hospitalidade universal e da vigência dos direitos humanos, o mais sagrado que o Criador nos concedeu. Temos que nos organizar para garantir os meios que sustentarão a nossa vida e a da natureza. Ninguém é dono da Terra. Ela é o nosso maior Bem Comum. Todos têm direito de estar nela. Como a Amazônia é parte da Terra, ninguém pode considerar só seu o que é um Bem de todos e para todos.
O Brasil, no máximo, possui a administração da parte brasileira (67%) e o faz de forma irresponsável. Daí a preocupação geral.
Atualmente o bioma amazônico é objeto da cobiça mundial por causa de suas riquezas. Usa-se muita violência. Há na Amazônia brasileira, a partir dos meados dos anos 1980 mais de 12 mártires, o último a religiosa norte-americana Doroty Stang, indígenas, leigos e religiosos; no Equador 6, no Peru 2 e na Colômbia inumeráveis.
Os G7 reunidos em Biaritz, se deram conta da importância do bioma amazônico para o equilíbrio dos climas e da própria Terra. Suponho que a veem convencionalmente ainda como um baú de recursos para seus projetos econômicos. Suspeito que não incorporaram a visão da nova ecologia que entende a Terra como um superorganismo vivo e nós parte dele e não seus senhores. Mas muitos conhecem estas discussões no âmbito da ecologia, da cosmologia e das demais ciências da vida e da Terra.
Caso a Amazônia fosse totalmente abatida, todo o sul do Brasil até o norte da Argentina e do Uruguai se transformariam lentamente numa savana e até em alguns lugares num deserto. Daí a vital importância desse bioma multinacional.
A irresponsabilidade de Bolsonaro é de tal monta que juristas mundiais cogitam acusá-lo de ecocídio, crime reconhecido pela ONU em 2006 e levá-lo ao tribunal dos crimes contra a humanidade. Derrubar a floresta é afetar o regime das águas. A água é um bem natural, vital, comum e insubstituível. Sem água não há vida. Bolsonaro se faria com suas políticas atrasadas de mineração e de extrativismo de riquezas, abundantes nesse bioma.
Termino com palavras de um indígena ianomâmi Miguel Xapuri Ianomâmi:
“Vocês têm Deus, nós temos Omama. Ela criou a vida, criou os ianomâmis, permite tudo o que acontece. Nós nos comunicamos com ela permanentemente”. Quem do mundo secularizado falaria de coração desta forma?
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A Amazônia: Bem Comum da Terra e da Humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU