30 Julho 2019
"Eis que aqui está, então, aberto o canteiro de construção da teologia, da espiritualidade e, não menos importante, da liturgia", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado Vita Pastorale, de Agosto a setembro-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma "periferia" do mundo, a Amazônia, terra distante, pouco conhecida e até esquecida, pela vontade do Papa Francisco torna-se um sujeito eclesial, que celebrará seu Sínodo no coração da Igreja Católica, em Roma, em outubro próximo. Sujeito eclesial, esta "Igreja irmã" questiona-se sobre si mesma, sua colocação no mundo e o que está acontecendo na história do planeta terra. É por isso que o título do Sínodo é a Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral. Este Sínodo verá a Igreja da Amazônia como um sujeito paradigmático que, na escuta o que o Espírito Santo inspira e pede, também lançará luz sobre a vida e o futuro de outras Igrejas, especialmente aquelas no Ocidente. Será uma reflexão sobre a Amazônia, mas o que será dito terá uma recaída universal e provocará essa troca de dons que torna verdadeiramente multicolorida e universal a Igreja do Senhor Jesus Cristo, a "fraternidade" presente entre as pessoas da terra.
Após dois anos de preparação, processo que envolveu concretamente as comunidades cristãs da Amazônia (bispos, presbíteros, missionários, fiéis homens e mulheres), o Instrumentum laboris foi elaborado e publicado em 17 de junho. É um documento que surpreende, porque traça com ousadia novos caminhos para a evangelização e a vida eclesial. E, com paixão profética, convoca todos os cristãos e homens a tomar consciência de sua atitude em relação ao poder político, econômico e tecnocrático. E, consequentemente, em relação ao futuro do planeta, a partir da região amazônica.
O documento é composto de três partes: a primeira é a escuta do grito da Amazônia, que se autodefine e mostra a sua identidade; o segundo é a escuta do clamor dos povos indígenas, dos pobres que sofrem nas periferias ou nos movimentos migratórios; o terceiro reúne os desafios e esperanças da Igreja presente naquelas terras. No documento como um todo há reflexões que mereceriam ser comentadas na íntegra, mas apenas me debruço sobre a terceira parte, aquela que traça o caminho profético da comunidade cristã. Não sem, no entanto, enfatizar primeiro uma afirmação metodológica: "O processo de conversão ao qual a Igreja é chamada implica desaprender, aprender e reaprender. Este caminho exige uma visão crítica e autocrítica que nos permita identificar aquilo que devemos desaprender, o que prejudica a Casa Comum e seus povos." (102)
A conversão contém essa dinâmica de deixar de lado, de esquecer atitudes e costumes, na medida em que eles estão em contraste com o Evangelho. Trata-se do compromisso incessante da Igreja, que deve sempre fazer um exame de consciência e se converter, mudar, renovar. Certamente, a Igreja confessa seus defeitos e quer "deixar [para trás] uma tradição colonial monocultural, clericalista e impositiva que sabe discernir e assumir sem medo a diversificadas expressões culturais dos povos. [...] A universalidade ou catolicidade da Igreja, portanto, se vê enriquecida pela beleza deste rosto pluriforme, das diferentes manifestações das Igrejas particulares e de suas culturas, formando uma Igreja poliédrica" (110).
Com essa premissa, compreendemos o propósito de uma Igreja acolhedora e missionária, que saiba encarnar-se nas diferentes culturas. É uma operação extenuante que, especialmente no segundo milênio, parecia quase impossível, impraticável, efetivamente impedindo à evangelização a sua fecundidade e impondo, com pouco respeito a outras culturas, um Evangelho na forma monocultural ocidental e católica-romana. Quantas dificuldades, mesmo durante a recente reforma litúrgica pós-conciliar, em face dos pedidos e desejos, especialmente dos povos da África que se tornavam católicos!
O Instrumentum laboris apresenta propostas arrojadas, avançadas com audácia, paixão e convicção: "A diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja, mas expressa sua autêntica catolicidade mostrando a beleza deste rosto pluriforme" (124). Só assim a Igreja de uma região, de uma cultura, pode tornar-se sujeito, tornar-se plenamente Igreja. A mudança no paradigma missionário é radical. Trata-se, de fato, de ir entre as pessoas anunciando o Evangelho eterno, mas com atenção aos sinais dos lugares e dos tempos, com a positiva busca das "sementes da Palavra" presentes nas culturas e tradições daqueles a quem se dirige o Evangelho. Nenhuma imposição externa, nenhuma pretensão de levar a cultura, nenhuma atitude de posse exclusiva e exaustiva da verdade, mas uma verdadeira escuta do outro, na convicção de que as pessoas não são desprovidas de dons dados a elas pelo Senhor ao longo dos séculos: dons de fé, de esperança e de caridade, vividos em obediência às suas consciências, mas também às suas tradições espirituais e religiosas, que certamente necessitam de um discernimento, mas que não podem ser simplesmente subestimadas, esquecidas ou até mesmo renegadas.
Eis que aqui está, então, aberto o canteiro de construção da teologia, da espiritualidade e, não menos importante, da liturgia. A Igreja deveria recuperar a memória de como, no primeiro milênio, conseguiu expressar-se nas diferentes culturas do Oriente Médio: com diferentes teologias e liturgias, porque diversas eram as culturas e línguas que as expressavam, como testemunham os diferentes ritos orientais. Portanto, não se deve ter medo: sem espontaneísmo, mas tampouco sem nenhuma preclusão para trilhar novos caminhos e celebrar o Evangelho nas liturgias cristãs. Como já consta na Evangelii gaudium, reitera-se, de fato, que "sem esta inculturação, a liturgia pode se reduzir a uma ‘peça de museu’ ou a ‘posse de poucos’".
E, para que os fiéis possam viver uma vida sacramental plena e uma liturgia que não se reduza apenas à "Palavra pregada", também aqui está um desejo: “em vez de deixar as comunidades sem a Eucaristia, se alterem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la" (126). E novamente: "É necessário passar de uma "’Igreja que visita’ para uma ‘Igreja que permanece’, acompanha e está presente através de ministros provenientes de seus próprios habitantes." (129).
E se o celibato é um grande dom que a Igreja em sua disciplina latina pede aos presbíteros, como em outras igrejas (inclusive católicas, como, por exemplo, nas igrejas orientais) é preciso que, quando existam condições, se torne possível a ordenação de homens que vivem o sacramento do matrimônio. Ao lado dessa abertura, ditada pelo princípio da salus animarum, a Igreja precisa ser ousada em conferir um ministério a ser confiado às mulheres, que já agora desempenham um papel central na vida das comunidades cristãs, não só amazônicas.
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À escuta do clamor dos povos indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU