31 Mai 2019
Reconhecer os erros e o sucesso nos ajuda a crescer, especialmente quando isso é motivado por um sentimento de fé que nos leva a construir o Reino de Deus. São atitudes que se percebem em Dom Mário Antônio da Silva, Bispo de Roraima e recém-eleito segundo vice-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, um serviço onde ele quer ser representante da Igreja da Amazônia, que vive envolvida em um processo sinodal.
Nesta entrevista, Dom Mário Antônio fala sobre a realidade da migração, que mudou a vida social e eclesial de Roraima e, embora alguns, incluindo católicos, vejam isso como um problema, ele o vê como "uma oportunidade de conviver com as pessoas de outra nação, de se fazer diferente, não indiferente, diante dessas realidades, e treinar-se para uma vida de mais solidariedade".
Ao falar do futuro da Igreja no Brasil, o bispo de Roraima vê necessário "ter um serviço organizado da caridade nas nossas comunidades". Ele reconhece que "nos afastamos um pouco dessas lições de justiça social, de compromisso como cidadãos", que exige "necessidade de uma formação no campo da fé e política".
A Igreja de Roraima tem tradicionalmente um forte compromisso com o acompanhamento e a defesa dos povos indígenas, algo particularmente importante no processo do Sínodo para a Amazônia, que é "um processo vivenciado com muito vigor nas nossas comunidades". É hora "de dizer para nós bispos o que realmente precisam e esperam da Igreja católica", sendo uma resposta, segundo o bispo, "não de expectativas, mas de necessidades das comunidades da Amazônia". Para isso, será necessário escutar, para o que "é preciso uma verdadeira conversão ao Evangelho, uma conversão à pedagogia de Jesus, que era sempre aquela de escutar a realidade das pessoas e das comunidades".
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
A Igreja de Roraima está muito marcada nos últimos messes, anos, pela acolhida aos migrantes. Como está determinando o dia a dia da Igreja de Roraima o trabalho de acolhida aos migrantes?
A realidade da migração atinge o Brasil e o mundo, de maneira muito intensa o estado de Roraima, tendo em vista a fronteira na cidade de Pacaraima, que é a entrada, digamos assim, livre, como fronteira aberta da Venezuela para o Brasil. Isso, no realismo da migração, tendo em vista o contexto de Roraima, realmente provocou mudanças, eu vejo que a nossa vida mudou, a nossa vida social e também a nossa vida eclesial.
A diocese de Roraima tem se empenhado nos seus limites onde acolher, acompanhar aos migrantes que chegam, tendo em vista as suas necessidades, procurando amenizá-las. Isso fez com que nossa Igreja, em alguns dos seus setores, se preparasse melhor, com Caritas diocesana, com Pastoral do Migrante e até mesmo com outras pastorais sociais afins à vida e à dignidade do ser humano.
Mas também fez percebermos resistências e até mesmo divergências entre as nossas comunidades cristãs, algumas com mais facilidade para acolher, ser solidárias e partilhar algo do seu tempo, das suas celebrações, e até mesmo das suas economias, e outras também se fecharem com resistência a acolher, a acompanhar ou fazer algo em benefício dos migrantes. É edificante as comunidades e famílias que se abrem, colaboram no espírito de partilha, como é muito triste a realidade também de famílias e comunidades que se fecham nas suas qualificações, sem se abrir à acolhida do migrante.
Nós, aqui na Igreja de Roraima, reconhecemos que migrar é um direito, embora sejamos também conscientes do que está acontecendo no fluxo migratório da Venezuela, é uma migração forçada, é uma migração à procura de vida, de esperança, para não dizer simplesmente de comida, roupa, remédio, segurança e abrigamento. Mas entendemos também que no aspecto humano, e sobretudo cristão, a migração é uma oportunidade, uma oportunidade de conviver com as pessoas de outra nação, de se fazer diferente, não indiferente, diante dessas realidades, e treinar-se para uma vida de mais solidariedade.
Creio que nos convoca isso um mandamento novo de Jesus Cristo, temos a capacidade de nos amarmos uns aos outros como Ele nos ama, nos amarmos uns aos outros como Ele ama brasileiras e brasileiros, venezuelanos e venezuelanas, e também de outras nações. Então esse aqui é um grande desafio nesse contexto emergencial. Gostaríamos de que nesses três anos de fluxo migratório tivéssemos já possibilidade de instalar processos, tanto de acompanhamento, de inserção laboral, de integrações em nossas comunidades cristãs, mas ainda estamos, digamos assim, com lacunas na execução de um processo, tendo em vista o contínuo fluxo migratório que nos faz viver por esses últimos três anos numa permanente emergência, no campo da assistência e do acompanhamento.
É certo que alguns serviços já vêm se estruturando ao longo desse tempo, mas tantos outros se faz necessário ser implantados, para que o atendimento aos venezuelanos seja como eles merecem, na acolhida, proteção, promoção e integração.
A defesa dos migrantes é uma das grandes bandeiras do Papa Francisco, e isso muitas vezes provoca reações contrárias, nem só na sociedade como na própria Igreja. O senhor reconhece que dentro da Igreja de Roraima também existem esses conflitos entre aqueles que apoiam a acolhida dos migrantes e aqueles que se mostram mais distantes para com essa realidade. O senhor tem experimentado em algum momento essa rejeição por parte da própria Igreja, dos católicos de Roraima, pelo fato de se posicionar em favor da acolhida aos migrantes?
O Papa Francisco tem sido iluminador, encorajador, como também aquele que nos interpela, e diante das interpelações do Papa Francisco, como Igreja, ora ficamos alegres e celebrativos, mas ora também ficamos nos nossos questionamentos e até um tanto envergonhados de não nos avançarmos nas propostas que já vêm do Evangelho e que o Papa retoma numa linguagem muito atual, compreensiva, clara, para todos nós. Até para quem não comunga da nossa fé católica, ele tem sido uma luz iluminadora.
Na realidade das nossas comunidades, temos comunidades que têm aberto seus espaços para fazer comida, para abrigar, nos limites das suas estruturas, para acompanhar, para acolher os migrantes, com celebrações na sua própria língua, distribuir cestas básicas através das entidades que propiciam a aquisição e distribuição dos alimentos, e de outras atividades, evangelizadoras ou não, no acompanhamento dos migrantes. Mas é também inegável que temos comunidades, ou pessoas que participam das nossas comunidades, melhor dizendo, alguns membros de nossas comunidades católicas que são resistentes, alguns até indiferentes, outros realmente resistentes, a ponto de dizer, quero fazer doações, mas me limito a doar não para migrantes e refugiados, sobretudo os venezuelanos.
Neste fluxo migratório de emergência, a nossa cidade toda tem a presença de migrantes. É certo que alguns vizinhos de nossas comunidades onde tem alguns serviços, estão incomodados, não com o serviço que é prestado, mas com a presença dos migrantes nos momentos de auxílio e de serviço, seja de alimentação, seja de atendimento. Num contexto em que a população migrante atinge 10% da população local, é impossível não ter essa realidade que faz com que nós tenhamos uma vida diferente.
Alguns chamam isso de desconforto e de perturbação, eu vejo que longe de que realmente seja desconforto e perturbação, é preciso ver que isso é uma presença diferente, que nos interpela, até mesmo nós sairmos de nossos confortos, de nossa estagnação para a maneira cristã de olhar esses irmãos em extrema vulnerabilidade social, com muitas necessidades fundamentais para a vida, e fazer um pouco daquilo que eles merecem e que nós temos possibilidade. Esperamos que com o tempo, que essas indiferenças, essas resistências, elas deem lugar à solidariedade, mas é fantasia achar que isso vai se transformar da noite para o dia.
Sobretudo porque no contato com os migrantes, conversando com eles, a gente vê que, na maioria dos casos, são pessoas que tinham seu trabalho na Venezuela, que tinham uma vida mais ou menos estável, e que muitos dizem abertamente que nunca esperaram ter que passar por essa situação. Falta um pouco de conhecimento da vida dos migrantes, das causas que os trouxeram até aqui.
O senhor não pensa que a sociedade, os próprios políticos, estão contribuindo com esse sentimento de xenofobia?
De fato, de imediato, diante do fluxo migratório, parece ser muito fácil, desconhecendo toda a história, a ação e a causa da migração, de considerá-los como invasores de nosso espaço, de nossa cidade, é algo muito fácil, e também de muita acomodação, para não dizer até realmente desumano e infeliz. É preciso encarar essa realidade com muita franqueza, e ao mesmo tempo, reconhecer que as causas da migração, ainda nós não as conhecemos de maneira absoluta. Sabemos algumas motivações pelas quais eles chegam até nós.
Eu creio que o caminho seria ter na nossa mente a necessidade de acolhê-los como novos habitantes de nosso país e de nossa cidade. Não são invasores, são pessoas que vêm para uma nova etapa da sua vida. Gostaríamos que essas causas de crise humanitária não fossem reais, mas elas são até o ponto de chegarem até nós. Creio que a grandeza do nosso coração humano, cidadão, e até cristão, é de acolhê-los como novos habitantes entre nós, novos irmãos e irmãs. É claro que existe um discurso às vezes, político, social, histórico, e às vezes até eclesial, desfavorável a essa integração, tendo em vista interesses ou bandeiras políticas de querer achar que está fazendo tudo para brasileiras e brasileiros negando alguns direitos aos migrantes e refugiados.
Certo, certo, certo, é que aquilo que em nossa sociedade, sobretudo Roraima, Boa Vista, aquilo que já faltava ao brasileiro, saúde, educação, segurança, transporte, e às vezes até acolhimento nas nossas comunidades católicas, cristãs, agora veio a faltar ainda mais com essa emergência da questão migratória. Mas do que afastá-los de nós, ou repeli-los, com xenofobia ou preconceitos, ou atitudes que indicam um rechaço, um fato de não deverem estar aqui conosco, deveríamos abrir espaço, construir novos caminhos, para que a nossa sociedade brasileira tivesse realmente vontade de se preparar para o fluxo migratório.
Temos sim, a lei da migração em nosso país, mas falta a regulamentação para políticas públicas de migração em nossos municípios e estados, e isso fica, digamos assim, muito visível diante da realidade que estamos vivendo aqui em Roraima, de algo prejudicial, tanto para os migrantes quanto para nós brasileiros.
Esse trabalho com os migrantes deu visibilidade não só à diocese de Roraima como ao seu bispo. De fato, na última assembleia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, o senhor foi eleito segundo vice-presidente do episcopado brasileiro. Desde esse novo serviço que o senhor está assumindo, como vê a realidade da Igreja brasileira hoje?
A Igreja de Roraima tem uma história de mais de cem anos como Igreja particular, e o destaque dela é a coragem de todos os bispos, dos missionários e missionárias, e também das comunidades locais daqui, pela profecia, pela vida missionária, e pela opção preferencial da dignidade dos povos locais e também da vida humana. Com a questão migratória é evidente que tendo em vista um número grande dos migrantes estarem aqui em Roraima, deu visibilidade ao fato social, como também às atividades da nossa Igreja, os serviços que a diocese, através das suas instituições, através das congregações religiosas, das paróquias e comunidades, através também de outras instituições que nos apoiam, Caritas brasileira, Caritas diocesana, também a CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, as congregações de todo o Brasil, tem nos apoiado nesse sentido. Isso tem dado realmente visibilidade.
É fato que não poucas vezes recebo, digamos assim, congratulações, mensagens de solidariedade. E atribuo isso a todo o trabalho que vem sendo realizado, sempre partilho essas congratulações com as pessoas que estão na linha de frente dos inúmeros serviços que são realizados em favor dos migrantes, tanto aqui na capital como nos municípios do interior. Porque são essas pessoas, mulheres e homens, sem salário, muitas vezes voluntários, que estão aí, no dia a dia, ajudando na acolhida dos migrantes, acompanhando as suas dores e ao mesmo tempo amenizando os seus sofrimentos. Então, é com eles que partilho todo esse reconhecimento que vem do Brasil e que também vem de entidades do exterior, que nos visitam e que nos ajudam no acolhimento, nos serviços realizados aos migrantes.
Isso também tem projetado a nossa diocese e até mesmo, digo aqui com muito reconhecimento e com humildade, até mesmo a figura do bispo, a nível de CNBB, a nível das dioceses no Brasil. Na última assembleia, dentro da nova configuração da presidência da CNBB, eu fui eleito como segundo vice-presidente. Na verdade, o que nós queríamos como Igreja na Amazônia, tendo em vista o Sínodo, que está se realizando e se realizará de maneira muito específica em outubro próximo, a nossa intenção é que alguém da Amazônia, um bispo da Amazônia, também fizesse parte da nova presidência. Essa era nossa vontade, o nosso diálogo, a nossa conversa, dentre tantas indicações que se faz no processo de eleição da presidência.
A indicação não seria necessariamente o bispo de Roraima, e muito menos eu, Dom Mário Antônio. Mas aí, no prosseguimento das eleições, na modalidade proposta pela CNBB, fui eleito como segundo vice-presidente. Acolhi, digamos assim, com alegria, não pelo fato de ser eleito, mas pela possibilidade de representar a Igreja da Amazônia, por que não a Igreja também de Roraima, nosso regional, Amazonas e Roraima, no contexto nacional da presidência da CNBB.
Creio que é a oportunidade para levar as causas do nosso regional, as causas da migração, as causas da Amazônia, para uma reflexão mais ampla no nosso episcopado. É uma oportunidade, um caminho que eu vejo bastante positivo e que tem já, de alguns anos para cá, bastante abertura na Igreja do Brasil, mas que pode ser efetivado com maior qualidade, com maior presença, e ao mesmo tempo, com mais continuidade nesse processo de evangelização entre os regionais da Amazônia com os demais regionais do Brasil.
No Brasil a gente percebe uma fratura social, um enfrentamento cada vez mais forte entre diferentes posturas. O episcopado brasileiro, na última assembleia, lançava uma mensagem onde se posicionava diante da realidade social. Para alguém que faz parte da presidência da CNBB, como pensa que pode ser o caminho da Igreja do Brasil nos próximos anos e qual pode ser o papel para tentar acabar com esse distanciamento social, inclusive dentro da própria Igreja católica?
A mensagem ao Povo de Deus foi uma mensagem realmente com o espírito do episcopado brasileiro, mas também com o espírito da história da CNBB, junto ao povo brasileiro. O caminho, creio que está bem dilucidado nas diretrizes gerais que aprovamos para este quatriênio, que é cuidar de nossas comunidades. Realmente ter um olhar muito atento aos desafios, mas também às potencialidades de nossas comunidades. Olhar as nossas comunidades como espaço inegável de muitos desafios, mas também como espaço de propostas e respostas para o que se busca na nossa Igreja. Propostas e respostas também de união, de solidariedade, com os desafios pela fragmentação e pela timidez na luta pelas questões sociais.
É certo que precisamos, mais do que nunca, ter um serviço da caridade em nossas comunidades organizado. O serviço da caridade existe, mas é preciso estar organizado para maior efetividade e melhor aproveitamento das forças que são dispensadas e até do financeiro que é investido em tudo isso. É preciso fazer também das nossas comunidades, além do espaço celebrativo, no espírito do processo da iniciação à vida cristã, missionário, ser também um espaço de formação de fé e política. Creio que aqui está um desafio muito grande, de fazer com que as nossas comunidades tenham essa dimensão, sejam sensíveis à necessidade de uma formação no campo da fé e política, utilizando mais e mais aquilo que já temos no belíssimo patrimônio da doutrina social da Igreja.
Creio que nós nos afastamos um pouco dessas lições de justiça social, de compromisso como cidadãos e até mesmo como compromisso de expressão concreta da fé através do estudo, aplicação da doutrina social da Igreja. Penso que o nosso desejo, meu desejo, digamos assim, neste momento, é que realmente as nossas comunidades sejam âmbitos onde a comunidade se reúne, celebra sua fé, se interpela em sua esperança e caridade, mas ao mesmo tempo se compromete por uma caminhada, junto com outras comunidades, no aspecto de luta pelos direitos sociais, pelos direitos fundamentais do ser humano.
Mas isso só vai acontecer se tivermos a capacidade de crescer na formação de fé e política, com muita honestidade e com muita sinceridade, para sermos capazes de incidência política. O que a Campanha da Fraternidade nos propõe neste ano de 2019 é algo desafiante, e que deve ser uma missão por longo tempo, senão por sempre, que é realmente de sermos capazes, de nos unir como comunidade para incidir politicamente, para fazer diferença. Talvez nesse momento esteja muito tímido na realização desses passos, ou às vezes até alguns âmbitos, alguns movimentos, às vezes algumas pastorais e comunidades, até num pequeno retrocesso deste aspecto. Que tudo aquilo que é vivenciado na fé, também possa ter implicação na nossa vida social, na nossa vida política, como expressão de que o Evangelho nos leva a viver uma frutuosa e fecunda união daquilo que somos como pessoas, e ao mesmo tempo como cristãos.
Nas suas palavras, a gente pode dizer que o Papa Francisco tem se tornado uma figura com grande autoridade mundial, sobretudo na resolução de conflitos entre países e na defesa dos excluídos, daqueles que a sociedade coloca do lado de fora. Nesse sentido, poderíamos dizer que a Igreja está recuperando com ele essa autoridade moral, social, que durante algum tempo, como o senhor reconhece, foi perdendo?
O Papa Francisco, ele é um sinal dos tempos na nossa Igreja, é um sinal dos tempos, realmente, nessa vertente de estarmos mais atentos ao real, ao concreto do nosso dia a dia. E isso tem causado, digamos assim, de um lado muita convicção, muita determinação, como também, de outro lado, tem causado um certo espanto para alguns setores que às vezes querem viver de braços cruzados para nossa realidade social, inovadora, da nossa Igreja. Eu creio que o Papa Francisco, ele consegue na sua maneira de ser, com suas falas e testemunhos, com seus gestos de abrir os nossos olhos para aquilo que é essencial.
À luz do Evangelho, a Alegria do Evangelho, que ele nos escreveu, sermos capazes de cuidar da criação, de cuidar da nossa casa comum, à luz da ecologia integral, priorizando a vida humana. Ele nos coloca num momento em que cuidamos de toda a criação, de toda a vida para o nosso próprio bem, ou vamos nos digladiando cada vez mais, vamos intensificando esse contexto de exclusão, e até mesmo aquele salve-se quem puder. O Papa Francisco, ele tem consciência de toda essa dificuldade do mundo de hoje, mas não se acanha em dizer o que realmente é necessário para a vida humana. Até de nos propor uma conversão de vida, voltar para a vida mais simples, uma vida menos ostentosa, um abrir mão, às vezes até de merecimentos e benefícios para que realmente a justiça e os valores do Reino aconteçam plenamente.
O senhor acaba de falar sobre ecologia integral, já falou sobre o Sínodo. A Igreja está nesse processo sinodal, esperando que nos próximos dias, semanas, seja apresentado o instrumento de trabalho que os padres sinodais vão ter em mãos para trabalhar durante a assembleia sinodal. O que o senhor espera do Sínodo para a Amazônia?
O Sínodo para a Amazônia está sendo um processo vivenciado com muito vigor nas nossas comunidades, tendo em vista a coragem, a capacidade de nossas comunidades na proposta de escuta de propor seus desafios e também seus valores e, ao mesmo tempo, de dizer para nós bispos o que realmente precisam e esperam da Igreja católica. Nós estamos agora no processo de estudo do instrumento de trabalho, que está para ser publicado. A gente espera que o instrumento de trabalho realmente nos ajude a fazer com que essa experiência de escuta continue ecoando no processo sinodal, para que em outubro, aquilo que formos aprovar, digamos assim, em consenso entre nós bispos, possa vir ao encontro, não de expectativas, mas de necessidades das comunidades da Amazônia.
Esse é um processo desafiante porque precisamos pensar numa sinodalidade, pensar juntos para que amadureça um consentimento onde seja assumido como compromisso por todos. Vejo que esse é um grande desafio diante das inúmeras, belíssimas e provocantes propostas que vieram através do processo de escuta. Precisamos mais do que nunca que o Espírito Santo nos ilumine e nos encoraje para não abrir mão daquilo que veio de nossas comunidades e que as conclusões possam não apenas contemplar as falas, mas fazer visível as necessidades e a elas responder com muita propriedade, aquilo que propõe o tema do Sínodo, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral.
Mais do que nunca esses novos caminhos têm como ponto inicial, ao meu ver, uma preocupação e um cuidado com as comunidades, prioritariamente com as pequenas comunidades. E o que vale dizer também, essa preocupação com os povos da Amazônia. Depois a ecologia integral, o cuidado que se tem com tudo aquilo que é criado, ter ações que priorizem a vida humana, e consequentemente cada criatura que vive e está presente na Amazônia.
Além de possíveis exortações e documentos posteriores, tem vozes que dizem que a grande riqueza que está aportando o Sínodo para a Amazônia à Igreja é essa mudança no jeito de ser Igreja e aprender a ser Igreja desde a escuta. Pensa que realmente a Igreja pode mudar sua postura, que sempre foi mais docente, discente, e aprender a viver e caminhar a partir da escuta?
Sim, vejo a possibilidade, mas é preciso uma verdadeira conversão ao Evangelho, uma conversão à pedagogia de Jesus, que era sempre aquela de escutar a realidade das pessoas e das comunidades, e perceber que na vida das pessoas e das comunidades a Palavra de Deus já estava presente, já estava impregnada, e dessa realidade fazer sobressair os compromissos de vida e missão. Eu creio que as comunidades da Amazônia, elas nos ensinam bastante isso. Mas ainda são carentes de que esse processo seja efetivado de maneira mais ampla e permanente. Eu acredito nesta pedagogia e digo que para isso é necessário, como já falei, uma conversão ao Evangelho, estar atento à pedagogia de Jesus quando Ele acompanha as pessoas e comunidades nas passagens do Evangelho. Caso contrário, continuaremos oferecendo o que somos e o que sabemos sem considerar devidamente os saberes e as experiências que estão aí presentes em nossas comunidades.
Na convocatória do Sínodo, o Papa Francisco insistiu muito nos povos originários. A presença dos povos indígenas em Roraima é marcante, e o trabalho da Igreja de Roraima durante mais de cem anos com os povos indígenas sempre foi muito comprometido. Qual é a realidade hoje dos povos indígenas em Roraima?
Os povos indígenas em Roraima, de fato, têm na sua história uma luta, como os outros povos do Brasil, mas sobretudo aqui, na defesa para demarcação e homologação de suas terras. E a Igreja sempre se mostrou parceira, acompanhando tudo isso. Hoje nós temos a presença da diocese também na história e na luta das comunidades indígenas, com a presença de missionários e missionárias, a pastoral indigenista, bastante atuante em nossas comunidades. O desafio é termos sempre missionários que permaneçam por um longo tempo no conhecimento da cultura, das lutas, e que também se comprometam juntamente com eles.
Temos expressões, digamos, edificantes nessa história, mas eu creio que precisamos avançar um pouco mais nesse comprometimento com as lutas dos povos indígenas. Ampliando de tal maneira que isso não seja só dos missionários, da pastoral indigenista, ou daqueles que habitam as comunidades indígenas, mas que seja também de toda a Igreja de Roraima. Assim uma opção preferencial pela luta dos povos indígenas de décadas na história de Roraima. Mas essa opção precisa também envolver as comunidades e a sociedade não indígena na luta por esses direitos, diante de tanta necessidade de manter aquilo que já foi conquistado, tendo em vista as ameaças na vida dos povos indígenas.
Nós sempre temos trabalhado para que os povos indígenas permaneçam unidos, todas as etnias que aqui estão, sejam elas nas suas localidades e terras, estejam unidas. Ao mesmo tempo percebemos que precisamos avançar numa proximidade, num trabalho mais organizado com os indígenas que residem na cidade, e que merecem também uma atenção específica por parte da nossa Igreja e de nossas comunidades. Tem bons sinais, mas é preciso avançar para que realmente, o que é de merecimento e de dignidade dos povos tradicionais da Amazônia, dos povos indígenas de Roraima, continue acontecendo.
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“Que o Sínodo possa vir ao encontro, não de expectativas, mas de necessidades das comunidades da Amazônia”. Entrevista com Dom Mário Antônio da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU