12 Abril 2019
O ensaio publicado pelo papa emérito “infelizmente prejudica a imagem de Bento, que no seu artigo demonstra uma visão idiossincrática e limitada da gênese da crise dos abusos sexuais e do estado dos conhecimentos científicos sobre o problema. O pontificado do Papa Francisco, que está lidando com a crise dos abusos, será afetado de modo marginal por essa manobra – arquitetada midiaticamente não por Bento XVI, mas por aqueles que estão ao seu redor”.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em L’HuffingtonPost.it, 12-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Bento XVI rompeu o próprio silêncio sobre os abusos sexuais e de maneira totalmente não ritual. Na noite de 10 de abril de 2019, seis semanas após a conclusão da cúpula vaticana sobre os abusos sexuais convocada pelo Papa Francisco, em uma fase crítica para a Igreja Católica que lida com um escândalo de dimensões globais e epocais, o “papa emérito” deu a conhecer seu próprio pensamento sobre a gênese do fenômeno em um longo ensaio (mais de 5.000 palavras) enviado a alguns meios de comunicação católicos online, que sempre estiveram próximos da sua comitiva e são hostis ao Papa Francisco.
O ensaio de Bento XVI pode ser dividido em duas partes. A segunda parte, a teológica, é uma reflexão sobre a natureza espiritual da Igreja, que sublinha as analogias com a abordagem do Papa Francisco à crise dos abusos sexuais: esta não pode ser resolvida apenas com uma mentalidade burocrática e jurídica, mas também e sobretudo como luta contra um mal espiritual que se revela na forma de abusos sexuais de menores e na cumplicidade da Igreja com os culpados desses atos criminosos.
Em todo o resto, o documento evidencia importantes diferenças em relação à visão de Igreja e à análise do fenômeno por parte do Papa Francisco. Em Ratzinger, a análise histórico-teológica do pós-Concílio – o que aconteceu na Igreja Católica a partir dos anos 1960 – concentrou-se nos efeitos negativos para a Igreja da revolução sexual em termos de decadência moral nas práticas e do surgimento do relativismo na teologia moral.
Essa é uma análise, no mínimo, problemática: coloca o Concílio Vaticano II na origem da decadência moral na Igreja, em uma evidente diferença do modo como o Papa Francisco fala e sempre falou do Concílio. Mas o verdadeiro problema é que, por parte de Bento XVI, identificar nos anos 1960 o início do fenômeno dos abusos sexuais é algo totalmente desmentido por todos os estudos científicos disponíveis em várias línguas e em todo o mundo. A história dos abusos sexuais na Igreja começa bem antes dos anos 1960: ela já se encontra nos escritos dos Padres da Igreja nos primeiros séculos, em termos cunhados de novo e que não se encontram no grego clássico; há uma vasta literatura histórica e jurídica sobre o fenômeno e sobre os instrumentos elaborados pela Igreja para combatê-lo.
Esse ensaio de Bento XVI oferece uma caricatura do período pós-Vaticano II, que foi um período extremamente complexo e contraditório, não desprovido de erros e ingenuidades por parte dos católicos, envolvidos na tentativa de imaginar uma Igreja mais aberta ao mundo: mas a pornografização do pós-Concílio é algo surpreendente por parte de um dos teólogos mais importantes tanto do Concílio Vaticano II quanto do pós-Concílio. Essa peculiar “tese-Ratzinger”, no entanto, não é nova: encontram-se vestígios dela já na carta enviada à Igreja na Irlanda em 2010.
Essa análise também revela outros pontos problemáticos. Há pouquíssima atenção para as vítimas. Oferece-se um julgamento apressado e superficial sobre as responsabilidades da Igreja institucional e do Vaticano entre João Paulo II e o pontificado de Bento XVI. Não há nenhuma assunção de responsabilidade pelos fracassos (o caso do cardeal Bernard Law que se refugiou em Roma para escapar da lei norte-americana) e os trágicos atrasos (o caso de Marcial Maciel e dos Legionários de Cristo) – uma história em que Joseph Ratzinger teve um papel não propriamente secundário como prefeito da Congregação da Doutrina da Fé.
Há um lado pessoal nesse ensaio de Joseph Ratzinger, mas apenas como uma das vítimas: Ratzinger, vítima não dos abusos sexuais, mas dos abusos teológicos por parte da teologia liberal (a referência, frequentemente presente nos escritos ratzingerianos, à “Declaração de Colônia” de 1989). A história é mais complicada.
Por exemplo, em fevereiro de 2012, durante o pontificado de Bento e perto da gestão vaticana da crise dos abusos na Irlanda, foi realizado um congresso sobre a crise dos abusos sexuais na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma: tudo ocorreu no desinteresse das mídias vaticanas, que receberam ordens para não enfatizar a notícia, e sem que o Papa Bento interviesse ou aparecesse nesse congresso, como o Papa Francisco, ao contrário, fez há dois meses.
Depois, há uma segunda questão subjacente à publicação desse ensaio, que é de método e constitucional. O texto de Bento XVI afirma ter pedido a permissão ao Papa Francisco e ao secretário de Estado, cardeal Parolin, que o teria concedido a fim de uma publicação, em alemão, em uma revista do clero bávaro. Na realidade, o texto longo estava disponível e, em uma boa tradução para a língua inglesa, desde a tarde do dia 10 de abril para alguns (mas apenas alguns) meios de comunicação católicos e não católicos que, nos Estados Unidos, fazem parte do aparato conservador e tradicionalista que desde sempre faz propaganda contra o Papa Francisco.
Mais cedo ou mais tarde, isto deverá ser explicado: quem o enviou para certos órgãos de imprensa? Por que para alguns e não para outros? Que informação foi fornecida aos responsáveis da comunicação da Santa Sé? As explicações, de fato, não devem ser buscadas nas mídias vaticanas, que parecem ter sido surpreendidas pela iniciativa, mas por aquela espécie de corte papal paralela que se formou ao redor do papa emérito – desde antes que ele se tornasse emérito.
A publicação desse ensaio e sua tese de fundo logo se tornaram um instrumento nas mãos daqueles que, especialmente nos Estados Unidos, há um ano, estão tentando, com todos os meios, se livrar do Papa Francisco, de uma forma ou de outra. Nos Estados Unidos, há uma tentação de cisma, e a narrativa jornalística sobre a crise dos abusos sexuais faz parte do desenho. Bento XVI talvez não saiba disso, mas quem organizou essa publicação na imprensa com tanto embargo (prontamente violado) sabe muito bem disso. A escolha de privilegiar certos órgãos de imprensa, que se destacaram na campanha contra o Papa Bergoglio a partir de 2013, dá a impressão de que Bento XVI é orgânico a esses ambientes e dá a impressão de que o papa emérito é manipulado e manipulável.
A questão do método também é importante do ponto de vista legal: até agora, Joseph Ratzinger foi, como todos os homens de ponta do Vaticano durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI (começando pelos secretários de Estado, os cardeais Sodano e Bertone), muito reservado sobre os casos ainda em aberto, e especialmente sobre o caso do cardeal estadunidense Theodore McCarrick, excluído do Colégio Cardinalício pelo Papa Francisco em 2018 e expulso do sacerdócio dois meses atrás após um processo canônico.
O silêncio de um papa emérito pode ser justificado como parte da imunidade da qual goza o ex-soberano do Estado vaticano, ou também como a tentativa de não interferir no governo do Papa Francisco. Ora, Bento XVI escreve e publica longos textos. No momento em que o papa emérito intervém na questão dos abusos sexuais, ele levanta perguntas que ninguém até agora havia podido ou querido dirigir àqueles que estiveram na cúpula do Vaticano desde 1981, como ele.
Problemas legais à parte, o problema mais evidente é de natureza eclesial. A tese-Ratzinger sobre os abusos sexuais na Igreja constitui uma contranarrativa que vai alimentar diretamente a oposição ao Papa Francisco e que cria confusão sobre o que fazer neste momento dramático, especialmente em torno de uma questão: a ligação entre abusos sexuais e homossexualidade.
Apesar de os estudos científicos sobre os abusos terem desmentido uma ligação entre orientação homossexual e abusos sexuais, Bento XVI repropõe essa tese que se configura como um caminho alternativo ao proposto pelo Papa Francisco e pela cúpula no Vaticano de dois meses atrás, que vê questão dos abusos como fenômeno de abuso de poder na Igreja, sem colocá-lo dentro de uma tese sobre o papel-chave da revolução sexual para os destinos do catolicismo.
Um fato importante também é o contexto de 2018-2019: essa operação midiática deve ser lida como a continuação da operação Viganò de agosto passado. Bento XVI certamente não pretende que o Papa Francisco renuncie; mas outros, bem situados no complexo jornalístico católico do outro lado do Atlântico [nos Estados Unidos] dotado de bases em Roma, estão tentando isso, e é algo sobre o qual o secretário de Joseph Ratzinger certamente está informado.
A terceira questão é de natureza constitucional sobre o ofício do “papa emérito” na Igreja Católica. De março de 2013 até hoje, a convivência entre papa e emérito havia funcionado sem muitos sobressaltos. Ora, o que quer que o Papa Francisco e as mídias vaticanas digam nos próximos dias, é claro que esse episódio constitui uma lesão: uma ferida no regime de relações entre os dois ofícios. O problema não está entre as duas pessoas, Francisco e Bento, que continuarão se querendo bem como antes, mas entre os dois ofícios e os seus braços operacionais. No mínimo, esse incidente demonstra que pouco importa mudar o sistema de comunicação vaticano, se continua existindo uma corte papal paralela que faz de tudo para dar a impressão de que há um segundo papa ainda em serviço para aqueles que estão descontentes com o papa reinante.
Os papas sempre puderam renunciar. Poucos fizeram isso na Idade Média e quase nunca espontaneamente. Bento XVI inovou o papado renunciando ao vivo, há seis anos, e é provável que isso se repita no futuro. No mundo dominado pelas mídias digitais e pelas mídias sociais, é a instituição do papa emérito que precisa de uma regulamentação que hoje não existe: no momento da renúncia, junto com o papa, também deveria renunciar a sua secretaria, que é reatribuída; o papel de prefeito da Casa Pontifícia deve ser abolido; o papa emérito deve deixar de se vestir de branco; suas relações com a mídia não devem ser deixadas a critério de secretários que têm todo o interesse em prolongar a vida de um pontificado que cessou para todos os aspectos (mas não do ponto de vista midiático).
Esse ensaio publicado nessa quarta-feira infelizmente prejudica a imagem de Bento, que no seu artigo demonstra uma visão idiossincrática e limitada da gênese da crise dos abusos sexuais e do estado dos conhecimentos científicos sobre o problema. O pontificado do Papa Francisco, que está lidando com a crise dos abusos, será afetado de modo marginal por essa manobra – arquitetada midiaticamente não por Bento XVI, mas por aqueles que estão ao seu redor.
Em certo sentido, essa manobra poderia fornecer álibis ao Vaticano de Francisco. Certamente, isso demonstra como a Igreja precisa de uma nova geração de líderes e de um novo pensamento para enfrentar a crise mais grave do catolicismo do nosso tempo.
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Reabre-se o processo contra o Concílio Vaticano II. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU