29 Agosto 2018
Teólogos contemporâneos dizem que certas controvérsias ecoam políticas do Vaticano de séculos passados.
A reportagem é de Brian Roewe, publicada por National Catholic Reporter, 28-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Acusações explosivas de corrupção e má conduta contra altos funcionários do Vaticano na mídia local. Os nomes dos supostos envolvidos estão publicados online, desencadeando debates e investigações acalorados.
Isso foi em janeiro de 2012.
Cartas do arcebispo Carlo Maria Viganò escritas no início de 2011, mas publicadas naquele mês por uma emissora de televisão italiana, tornaram-se as origens do chamado escândalo "Vatileaks".
Esta e outras controvérsias que envolveram o prelado nos últimos anos ecoam na divulgação e reação à publicação de uma carta de 11 páginas de Viganò, em 26 de agosto, que acusa dezenas de oficiais do alto escalão da igreja de encobrimento a respeito de alegações de abuso sexual contra o ex-cardeal Theodore McCarrick, incluindo que o papa Francisco ignorou essas alegações e sabia das sanções contra ele. Na carta, Viganò pediu que Francisco renunciasse.
O fato de um arcebispo ter feito tais acusações públicas contra um papa em exercício, bem como contra um papa emérito, Bento XVI, é sem precedentes na igreja moderna, disse Massimo Faggioli, teólogo e historiador da Igreja da Villanova University. Para uma situação semelhante, seria preciso voltar para o século XV, no fim da Idade Média.
"Isso é algo do qual não me lembro nos últimos quatro, cinco, seis séculos", disse ele.
Faggioli apontou paralelos entre a recente carta de Viganò e suas controvérsias passadas - sua publicação enquanto Francisco se aproximava do fim de sua visita à Irlanda, imitando a divulgação da notícia da reunião do papa com Kim Davis após sua viagem de 2015 aos EUA - mas argumentou que o motivo pode ser traçado até a negação de um solidéu vermelho de cardeal ao arcebispo.
"Realmente não é sobre McCarrick; trata-se de uma velha história que começa sete ou oito anos atrás. Ele se tornou um arcebispo extremamente descontente", disse Faggioli.
Nascido no norte da Itália em uma família rica, Viganò foi ordenado padre em 1968. Cinco anos depois, ele entrou para o corpo diplomático do Vaticano, onde ocupou posições em embaixadas na Grã-Bretanha e no Iraque. Trabalhou mais de uma década (1978-89) na Secretaria de Estado do Vaticano antes de passar os próximos três anos como observador permanente do Vaticano no Conselho da Europa, em Estrasburgo, França. Viganò foi nomeado arcebispo em 1992 pelo papa João Paulo II, que o nomeou núncio apostólico na Nigéria.
Durante grande parte de seus primeiros anos em Roma, Viganò manteve um comportamento discreto, trabalhando principalmente nos bastidores, disse John Thavis, ex-chefe do escritório de Roma do Catholic News Service, que trabalhou em Roma de 1983 a 2012.
Esse comportamento discreto estendeu-se a sua nomeação, em 2009, para um cargo de alto escalão como secretário-geral da governadoria do Estado da Cidade do Vaticano. Lá ele ganhou uma reputação por suas habilidades como reformador financeiro. Ele também enfrentou tensões internas e críticas pelo que alguns viam como microgerenciamento.
Em 2010, e-mails anônimos circularam entre cardeais e embaixadas do Vaticano alegando nepotismo de Viganò na carreira de seu sobrinho, Carlo Maria Polvani, que também trabalhou dentro da Secretaria de Estado do Vaticano. Um comentário no jornal italiano Il Giornale, também anônimo, sugeriu que Viganò tentou controlar os serviços de segurança do Vaticano.
Apesar de ter escrito a Bento XVI pedindo que mantivesse sua posição, Viganò foi nomeado, em 19 de outubro de 2011, como núncio apostólico nos EUA, sucedendo o arcebispo Pietro Sambi, que morreu no início daquele ano. O movimento foi visto como uma negação às suas esperanças de eventualmente ser nomeado presidente do Estado da Cidade do Vaticano e, com isso, ser elevado a cardeal.
Menos de três meses depois, o nome de Viganò apareceu novamente na imprensa italiana.
Em janeiro de 2012, um noticiário de televisão italiano intitulado "Os Intocáveis" detalhou cartas que Viganò escreveu a Bento XVI e a seu Secretário de Estado Tarcisio Bertone alegando corrupção financeira e "abuso de poder" e, entre outras coisas, que o chefe dos Museus do Vaticano estava envolvido em falsificação.
Em sua carta a Bertone, Viganò disse que ele (Bertone) quebrou sua promessa de permitir que ele se tornasse presidente da governadoria do Estado da Cidade do Vaticano depois que o cardeal Giovanni Lajolo se aposentou.
Uma declaração, de fevereiro daquele ano, de Lajolo e do então cardeal Giuseppe Bertello disse que as cartas de Viganò continham alegações baseadas em "avaliações errôneas" ou "temores sem o apoio de prova" e, finalmente, determinou que as acusações eram "infundadas".
Através das cartas do Vatileaks, Viganò se retratou como um delator e um mártir, disse Thavis, mas muitos dentro do Vaticano questionaram a credibilidade do arcebispo.
Enquanto Viganò chegou aos EUA com pouca reputação ideológica, disse Thavis, ele se tornou visto como uma voz relativamente conservadora. Em seus primeiros meses, os bispos William Lori, Samuel Aquila e Salvatore Cordileone - todos os três considerados agressivos "guerreiros da cultura" - foram indicados para arquidioceses em Baltimore, Denver e San Francisco, respectivamente. No final do mandato de Viganò em abril de 2016, o escritor conservador George Wiegel chamou-o de "o melhor núncio que tivemos até agora".
"O arcebispo compreendeu que não havia uma retirada honrosa do que alguns pesarosamente chamaram de 'guerras culturais'. Ele sabia quem havia declarado guerra a quem; que a Igreja não tinha sido o agressor nessa luta; e que a batalha tinha de ser travada, com as ferramentas da razão e da persuasão", escreveu Wiegel.
A participação de Viganò na Marcha pelo Casamento atraiu críticas para o diplomata, que participava de um evento político doméstico. O mesmo aconteceu com o acordo de um encontro durante a visita de Francisco de setembro de 2015 entre o papa e Davis, uma funcionária do condado de Kentucky que cumpriu cinco dias de prisão no início do mês por se recusar a emitir licenças de casamento para casais do mesmo sexo devido a suas crenças cristãs.
Embora a reunião tenha ocorrido em 24 de setembro, horas após o discurso de Francisco para o congresso, as notícias foram divulgadas três dias após a viagem e lançaram uma sombra sobre o que foi anunciado como uma visita bem-sucedida. Da mesma forma, a carta de Viganò foi publicada no último dia do papa na Irlanda.
"Parece quase que projetado para ofuscar o papa, enfraquecer o papa publicamente em um momento em que ele está tentando enviar uma mensagem muito diferente", disse Thavis sobre o momento dos dois eventos.
Notícias mais tarde retrataram Francisco como furioso com Viganò por causa da reunião de Davis, e imediatamente mandaram chamar o embaixador para Roma. Quatro meses depois de apresentar sua renúncia em janeiro de 2016, como é obrigatório aos 75 anos, Viganò foi substituído pelo arcebispo francês Christophe Pierre.
Em julho daquele ano, o nome de Viganò apareceu em documentos divulgados como parte de uma investigação criminal na arquidiocese de St. Paul-Minneapolis: um memorando do delegado da arquidiocese para um ambiente seguro alegou que Viganò como núncio, em abril de 2014, ordenou que dois bispos auxiliares rapidamente arquivassem um inquérito sobre a alegada má conduta sexual com homens adultos do arcebispo John Nienstedt.
De acordo com o memorando, escrito pelo padre Dan Griffith, a investigação de uma firma de advocacia de St. Paul sobre as alegações encontrou evidências "convincentes" contra Nienstedt e autoridades arquidiocesanas concordaram que o arcebispo deveria renunciar. Depois que os bispos auxiliares Lee Piché e Andrew Cozzens repassaram as descobertas a Viganò, o embaixador teria conversado com Nienstedt, que, segundo o memorando, "pode ter convencido o núncio de que as alegações contra ele eram todas falsas" e parte de uma conspiração em resposta a sua oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
O memorando afirma que Viganò então ordenou que a investigação fosse encerrada rapidamente e que os bispos auxiliares destruíssem uma carta que escreveram para ele objetando sua decisão e afirmando que "seria vista, e com razão, como um encobrimento".
Em um comunicado emitido ao Catholic World Report e vários outros portais na segunda-feira, 27 de agosto, Viganò reagiu contra as alegações do memorando escrevendo: "Estas acusações - alegando que ordenei aos dois bispos auxiliares de Minneapolis encerrar a investigação sobre a vida do arcebispo John C. Nienstedt - são falsas".
Viganò disse que sugeriu a Piché e Cozzens que Nienstedt fosse entrevistado antes que a investigação explorasse uma alegação de que ele tinha um caso com um membro da Guarda Suíça. Ele acrescentou que não ordenou que nenhum documento fosse destruído, mas instruiu Piché a "remover do computador e dos arquivos arquidiocesanos" a carta dos bispos a ele "afirmando falsamente que eu sugeri que a investigação fosse interrompida".
Após notícias sobre o memorando publicado, Viganò disse que foi informado que o papa ordenou que o núncio dos EUA, Pierre, deveria iniciar uma investigação sobre sua conduta imediatamente e reportou ao tribunal encarregado de julgar os bispos por possível encobrimento de abuso sexual. Viganò disse que Jeffrey Lena, um advogado americano que trabalhava para a Santa Sé, encontrou documentação na Congregação para os Bispos "provando que minha conduta tinha sido absolutamente correta", com Lena e a nunciatura apostólica dos EUA escrevendo relatórios exonerando Viganò.
Ele acrescentou que informou a Sala de Imprensa do Vaticano, Pierre e o arcebispo Bernard Hebda sobre os relatórios, mas não obteve resposta deles.
Quanto à última carta de Viganò, os historiadores da igreja a veem como uma continuação das traições e brigas internas nos mais altos escalões da igreja, que já vem de longa data, mas dentro de um novo contexto: isto é, abertamente, onde a comunidade católica mais ampla a assiste publicamente em tempo real.
"É como se os Bórgia e os Médici tivessem contas no Twitter", disse Christopher Bellitto, professor de história da igreja da Kean University, em Union, New Jersey.
Bellitto descreveu a história dos primeiros conselhos da igreja do quarto ao sétimo século, repleta de "relatos de pessoas gritando umas com as outras, atirando coisas umas nas outras, lutando umas com as outras, puxando a barba uma da outra". Muitas das cartas de Paulo, acrescentou, constituem pedidos para que os primeiros cristãos parem de brigar uns com os outros. Em um ponto durante o Grande Cisma, no final do século XIV, eclodiram escaramuças entre militares alinhados com o papa em Roma e o papa em Avignon, na França.
Como em muitos outros conflitos da igreja no passado, a carta de Viganò equivale a uma luta pelo poder, disse ele.
"A maior narrativa aqui é que Viganò está, na verdade, demonstrando exatamente o que Francisco diz ser o maior problema, que é o clericalismo", disse Bellitto ao NCR.
Faggioli, o teólogo de Villanova, considerou que Viganò estava aproveitando as divisões na Igreja dos EUA sobre guerras culturais e o pontificado de Francisco, assim como a mídia católica que alimentava esses debates, para acertar as contas pessoais.
"Sua insatisfação realmente é com o Vaticano que o expulsou em 2011 fazendo duas coisas: a primeira, negando-lhe o chapéu vermelho de cardeal; e segundo, expatriando-o para os Estados Unidos", disse ele.
Bellitto disse que, enquanto Viganò está jogando um jogo antigo, viu Francisco recusando-se a comentar a carta, em resposta a perguntas a bordo do avião papal, como uma recusa do papa em se envolver.
"Viganò está jogando, é um jogo que tem 2.000 anos e Francisco está dizendo: 'Eu não estou jogando, tenho outras coisas para fazer'", disse Bellitto.
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Quem é o arcebispo Carlo Maria Viganò? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU