11 Abril 2024
"Foi bonita a festa, pá. Mas os cravos vermelhos de abril murcharam. Quem sabe, em algum lugar, ainda haverá uma semente de alecrim", escreve Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 10-04-2024.
A esquerda mundial assistiu estarrecida ao crescimento da extrema direita nas recentes eleições em Portugal. Depois do Tea Party que projetou Donald Trump entre os republicanos, em 2016 nos EUA, o Brasil foi o laboratório pioneiro da assombrosa ascensão de Jair Bolsonaro e sua corrente neofascista em 2020, mesmo tendo sofrido o flagelo da ditadura militar por duas décadas. E a Argentina sofreu a vitória de Javier Milei, apesar da experiência trágica de genocídio, que vitimou pelo menos trinta mil, entre 1976/82 durante a tirania das Forças Armadas de Videla e seus carrascos.
Como explicar que, no aniversário de meio século da revolução dos cravos, um partido de ultradireita como o Chega, liderado por um aventureiro bufão como André Ventura, possa ter conquistado quase um em cada cinco votos? Só uma alteração profunda da relação social e política de forças pode oferecer uma chave de interpretação para este desenlace. O que nos remete à procura dos fatores econômicos, sociais e políticos que abriu o caminho para esta regressão histórica.
A crise do atual regime semipresidencialista em Portugal não é herdeira do processo revolucionário que se abriu em 25 de abril de 1974. A ruína do governo de maioria absoluta do Partido Socialista é indivisível da aposta estratégica de Antonio Costa que se rendeu às exigências da União Europeia.
Depois de décadas, o atual regime não é herdeiro das liberdades e direitos sociais conquistados pela revolução nos seus intensos dezoito meses. O regime que mantém Portugal como o mais pobre país europeu é o resultado de um longo processo de reação das classes proprietárias. A associação subordinada às decisões de Paris e Berlim foi o contexto da degradação das condições de vida da imensa maioria do povo.
Há cinquenta anos atrás, a insurreição militar do MFA agigantou-se numa revolução democrática, quando as massas populares saíram às ruas, enterrou o salazarismo e foi vitoriosa. Mas a revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada.
Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo, uma disputa em que reina a incerteza. Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso seria anacrônico. É uma ilusão de ótica do relógio da história. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário é mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado.
Revoluções não podem ser analisadas somente pelo desenlace final. Ou pelos seus resultados. Estes explicam, facilmente, mais sobre a contrarrevolução do que sobre a revolução.
As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando “tudo parecia possível”. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um autogolpe de uma fração na cúpula das Forças Armadas, organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de 1975, contra o MFA. A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer aos métodos da contrarrevolução em novembro de 1975, para restabelecer a ordem hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA que fez o 25 de abril.
É verdade que a reação com táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro presidente eleito, em 1976, fosse Ramalho Eanes, o general que colocou as tropas nas ruas no 25 de novembro.
A revolução portuguesa foi, portanto, muito mais do que o fim atrasado de uma ditadura obsoleta. Hoje sabemos que o capitalismo lusitano escapou à tempestade revolucionária. Sabemos que Portugal logrou construir um regime democrático, razoavelmente estável, e que a Lisboa dirigida pelos banqueiros e industriais sobreviveu à independência de suas colônias e, finalmente, se integrou na União Europeia. Poderia, todavia, ter sido outro o resultado daqueles combates, com imensas consequências para a transição espanhola do final do franquismo, a partir de 1977/78.
O que a revolução conquistou em dezoito meses, a reação consumiu dezoito anos para destruir e, ainda assim, não conseguiu anular todas as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores. Depois de ter incendiado durante um ano e meio as esperanças de uma geração de trabalhadores e jovens, a revolução portuguesa colidiu em obstáculos intransponíveis. A revolução portuguesa, a tardia, a democrática, teve o seu momento à deriva, descobriu-se perdida e terminou derrotada. Mas foi, desde o início, filha da revolução colonial africana e merece ser chamada pelo seu nome mais temido: revolução social.
Compreender o passado exige um esforço de reflexão do campo de possibilidades que estava desafiando os sujeitos sociais e políticos que atuavam projetando um futuro incerto. Em 1974, uma revolução socialista em Portugal poderia parecer improvável, difícil, arriscada, ou duvidosa, mas era uma das perspectivas, entre outras, que estava inserida no horizonte do processo.
Já foi dito que revoluções são extraordinárias porque transformam o que parecia impossível em plausível, ou até provável. Ao longo de seus dezenove meses de surpresas, a revolução impossível, aquela que faz aceitável o que era inadmissível, provocou todas as cautelas, contrariou todas as certezas, surpreendeu todas as suspeitas. Esse mesmo povo português que suportou durante quase meio século a mais longa ditadura do continente – abatido, prostrado, até resignado – aprendeu em meses, encontrou em semanas e, em alguns momentos, descobriu em dias, aquilo que décadas de salazarismo não lhe tinham permitido sequer desconfiar: a dimensão de sua força.
Mas, estavam sozinhos. Naquela estreita faixa de terra da Península Ibérica, o destino da revolução foi cruel. Os povos do Estado espanhol só se colocaram em movimento na luta final contra o franquismo quando, em Lisboa, já era tarde demais. A portuguesa foi uma revolução solitária.
A vertigem do processo desafiou a solução bonapartista-presidencial de Spínola em três meses. Spínola foi derrotado com a queda de Palma Carlos da posição de primeiro-ministro, e a nomeação de Vasco Gonçalves e, na sequência, a convocação de eleições para a Constituinte antes das eleições presidenciais.
Um ano depois do 25 de abril de 1974, a carta do golpe militar já tinha sido tentada por duas vezes, e por duas vezes esmagada: no 28 de setembro de 1974 e no 11 de março de 1975. A contrarrevolução precisou mudar a sua estratégia depois da segunda derrota de Spínola.
Três legitimidades disputaram forças depois do 11 de março de 1975: a do Governo provisório sustentado pelo MFA, com o apoio do PC; a do resultado das urnas para a Constituinte eleita em 25 de abril de 1975, em que o PS se afirmou como a maior minoria, mas que poderia ser defendida como uma maioria, quando considerado o apoio dos partidos de centro-direita (PPD) e direita (CDS); e aquela que surgia da experiência de mobilização nas empresas, nas fábricas, nas universidades, nas ruas, a democracia direta da auto-organização.
Três legitimidades políticas, três blocos de classe e alianças sociais, três projetos estratégicos, enfim, uma sucessão de governos provisórios em uma situação revolucionária, com uma sociedade dividida em três campos: o do apoio ao governo do MFA, e duas oposições, uma de direita (com um pé no governo e outro fora, mas com importantes relações internacionais) e outra de esquerda (com um pé no MFA e outro fora, e uma devastadora dispersão de forças).
Nenhum dos blocos políticos conseguia se afirmar por si só durante o verão quente de 1975. Foi então que a contrarrevolução recorreu à mobilização de sua base social agrária no Norte, e algumas partes do centro do país. Mas, a reação clerical reacionária era ainda insuficiente. Portugal já não era o país agrário que Salazar tinha governado.
Apelou, então, à divisão da classe trabalhadora e, para isso, o PS de Mário Soares era indispensável. Recorreu à estratégia do alarme, do medo, do pânico para assustar e insuflar setores da classe média contra a classe trabalhadora. Acima de tudo, a questão prioritária para a classe dominante, entre março e novembro de 1975, foi a recuperação do controle sobre as Forças Armadas.
Foi bonita a festa, pá. Mas os cravos vermelhos de abril murcharam. Quem sabe, em algum lugar, ainda haverá uma semente de alecrim.
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Meio século depois de 25 de abril de 1974. Artigo de Valerio Arcary - Instituto Humanitas Unisinos - IHU