"Dicionário Marielle Franco analisa a estatização da morte no Grande Rio. Com premiação de policiais violentos, massacres tornaram-se cotidianos – e converteram-se em arma contra qualquer tentativa de controle democrático da segurança pública".
O artigo é de Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk, publicado por Outras Palavras, 21-09-2022.
Um dia antes de ser assassinada a tiros na região central do Rio de Janeiro, em 2018, Marielle Franco, cria da Maré, defensora dos direitos humanos e vereadora pelo PSOL na cidade do Rio de Janeiro, entoou em suas redes sociais a pergunta que ecoa em nossos ouvidos até os dias atuais: “Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?”. De lá até aqui, a política de segurança pública do estado do Rio experimentou intervenções federais, operações policiais e programas de militarização que sitiaram as cidades e foram capazes de promover um fenômeno ainda mais perigoso na Região Metropolitana: a expansão das milícias. Segundo o relatório “Mapa Histórico dos Grupos Armados” (2022), produzido pelo GENI/UFF em parceria com o Fogo Cruzado, as áreas dominadas pelas milícias cresceram 387% em 16 anos, e milicianos já dominam mais da metade das áreas controladas por grupos armados na região. Os ilegalismos e a perpetuação da “guerra às drogas” têm produzido graves consequências para a vida dos moradores e moradoras do Rio de Janeiro.
Em tempos decisivos para a democracia, como o período das eleições, precisamos compreender a centralidade que o direito à vida deve ter para o Estado brasileiro e fortalecer construções que sejam capazes de estancar a epidemia de mortes causadas pelas forças de segurança. A defesa do direito à vida não deveria ser uma bandeira de esquerda ou de direita, mas uma pauta urgente, única capaz de sustentar qualquer projeto de democracia. Enquanto os ilegalismos pautarem as estratégias de segurança, a democracia estará em risco. Todes nós somos vítimas desta “guerra” operada pelo Estado.
Foi também entre janeiro de 2019 e maio de 2022 que o Rio de Janeiro presenciou mais de 178 chacinas policiais durante os governos de Wilson Witzel (PSC) e Cláudio Castro (PL). A partir de um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) publicado no Dicionário de Favelas Marielle Franco, apenas entre os anos 2019-2022 foram contabilizadas mais de 752 mortes de civis decorrentes de operações policiais que tiveram como resultado, ao menos, 3 mortes por operação. E quem atira, também é vitimado. Apenas em 2021, 25 policiais foram mortos em serviço no estado do Rio de Janeiro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Em pouco mais de um ano que Cláudio Castro está à frente do governo do estado, foram realizadas três das cinco maiores chacinas da história do estado – e esses números vêm sendo utilizados como plataforma política para sua reeleição. Foram 28 mortes no Jacarezinho em maio de 2021, 24 mortos no Complexo da Penha em maio de 2022 e 17 mortos no Alemão em julho de 2022. Esse alto número de chacinas, por si só, já deveria acender um “alerta” de que algo não anda bem no campo das políticas de segurança pública. Quantas mais mortes serão banalizadas como políticas de estado?
Além dos momentos de terror protagonizados, em especial, pelas Polícias Militar e Civil, operações policiais nas favelas e periferias do Rio de Janeiro significam a interrupção da rotina dos seus moradores e moradoras, a limitação do direito de ir e vir, as invasões de moradias e violações de direitos, o “esculacho” nas ruas e becos e mais incontáveis perdas. A cada dia, os episódios e a espetacularização da violência parecem maiores, como superproduções de cinema. E os impactos são sentidos em toda parte – inclusive, é claro, na própria organização das políticas na cidade. Em 2019, com o fim da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG), as polícias ganharam mais autonomia para a realização de suas operações – a despeito da decisão perpetrada pelo Ministro Edson Fachin durante a pandemia, em 2020. No último mês, em meio à campanha eleitoral, o candidato a deputado federal e ex-secretário da Polícia Civil de Cláudio Castro (PL), Allan Turnowski, é preso por suspeita de envolvimento com o crime. Wilson Witzel (PSC) e Cláudio Castro (PL) também são citados em outros casos de corrupção, aprofundando a grave crise do estado.
Preocupados com o avançar da violência policial e com o agravamento de sua letalidade, quatro organizações lançam ao público um painel com dados sobre Chacinas em Favelas do Rio de Janeiro. Os grupos são o Dicionário de Favelas Marielle Franco (ICICT/Fiocruz), o Grupo CASA (IESP-UERJ), o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e o Radar Saúde em Favelas (Fiocruz). Trata-se de um trabalho em andamento. Mas, no material organizado até o momento, há informações em diferentes formatos sobre chacinas realizadas em favelas e periferias do Rio de Janeiro, com linhas do tempo, levantamento de dados de frequência e número de mortos, artigos e pesquisas acadêmicas, materiais audiovisuais e outros. Além disso, entende-se que além da discussão sobre as chacinas em si, de forma isolada, é importante ampliar os olhares sobre as políticas urbanas, as políticas de segurança pública e o surgimento de alguns movimentos sociais em cada período, como forma de compreender o panorama das políticas no Rio de Janeiro dos últimos anos. Assim, mais de 100 verbetes nos ajudam a seguir os rastros de um estado que é altamente letal e violento – sobretudo em favelas e contra pessoas pobres e negras.
Como o esquecimento é uma das estratégias de normalização da violência, o objetivo desse trabalho conjunto é fortalecer a memória e organizar informações dispersas sobre esse enorme volume de mortes praticadas por agentes estatais no Rio de Janeiro. A ideia de sistematizar os acontecimentos é de preservar a memória de momentos de severa violação dos direitos da população negra e moradora de favelas e periferias, como forma de reivindicar uma mudança nas políticas de segurança pública e denunciar sua intrínseca relação com diferentes ilegalismos. Além disso, há a expectativa que instituições de outros estados venham a participar com a mesma metodologia para construção de um mapa nacional futuramente.
Etimologicamente, a palavra chacina significa o ato de esquartejar e salgar porcos. No Rio de Janeiro, historicamente, o termo assume um sentido político entre moradores de favela, utilizado para classificar massacres, sobretudo de civis, que ultrapassam os já altos parâmetros de violência que caracterizam esses locais. Em geral, esses massacres são diretamente associados a grupos de extermínio, cuja atuação conta com a participação de agentes de segurança da ativa. Finalmente, uma terceira forma de definir as chacinas parte de uma perspectiva estatística e considera toda ação policial com três ou mais mortos civis enquanto tal. A presença das chacinas no cotidiano da vida da população brasileira é um indicativo assustador da violência de estado contra segmentos sociais específicos.
Não podemos esquecer nenhuma das 178 chacinas realizadas pelos governos dos últimos quatro anos no Rio de Janeiro e tantas outras que ocorreram em outras partes do país, uma vez que elas são um analisador de um tempo e espaço em que as vidas de algumas pessoas são um bem sem-valor, usadas como combustível para políticos que se servem do populismo penal e agitam suas bases com as bandeiras da morte, do encarceramento e do aniquilamento das possibilidades de viver com dignidade. E não podemos ignorar: aquele corpo que morre, que é encarcerado ou que tem suas possibilidades de vida aniquiladas é construído a partir de uma estrutura social cujas forças determinantes mais intensas são o racismo e o colonialismo – são os jovens, negros e pobres em sua maioria, reféns de uma realidade que os têm como alvo.
Para conhecer uma dimensão do painel da necropolítica fluminense que tem nas chacinas um importante mecanismo de produção de mortes, acesse o Dicionário de Favelas Marielle Franco e conheça o verbete Chacinas em Favelas do Rio de Janeiro. Leia agora o verbete “A chacina sem capuz e a estatização das mortes“, de Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk, publicado originalmente na revista Piauí, e disponível no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução e seleção: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco | Pesquisa e organização: Grupo CASA (IESP-UERJ); GENI/UFF, Radar Saúde Favelas (Fiocruz) e Dicionário de Favelas Marielle Franco).
Mais de trinta anos após a promulgação da Constituição de 1988, a assustadora frequência das chamadas chacinas policiais, praticadas por policiais em serviço, demonstra que a violência de Estado contra a população pobre, negra e favelada ou periférica é característica intrínseca à nossa “democracia”. No Rio de Janeiro, a ostentação da violência policial em massacres avalizados por autoridades públicas, contra a ordem democrática, parece integrar o fenômeno a que denominamos “desencapuzamento”: a paulatina substituição da atividade criminosa dos grupos de extermínio pela atuação brutal de policiais em serviço, especialmente em operações de incursão em favelas. As chacinas ocorridas na década de 1990 eram praticadas por grupos de extermínio formados por policiais ou ex-policiais, mas resultaram, majoritariamente, de atividades extraoficiais desses agentes. Foi a partir dos anos 2000 que as práticas de extermínio passaram a contar com crescente e escancarado respaldo institucional, tendência que se agravou a partir dos anos 2010 e que encontra hoje o seu ápice.
Três das cinco maiores chacinas policiais da história do Rio de Janeiro ocorreram nos últimos quinze meses, sob a vigência de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu a realização de operações policiais enquanto durasse a pandemia da Covid. A maior delas, que resultou em 28 mortes, ocorreu no bairro do Jacarezinho, em 6 de maio de 2021, foi nomeada pela Polícia Civil de Operação Exceptis, em alusão à excepcionalidade das operações interposta pelo STF. Na ocasião, o representante da Polícia Civil criticou o “ativismo judicial” que estaria “impedindo o trabalho da polícia”. Pouco mais de um ano depois, a chacina da Penha resultou em mais 23 mortes. Segundo o porta-voz da Polícia Militar, a culpa seria do STF, que estaria provocando a “migração de criminosos de outros estados”. Na quinta-feira da semana passada, após a chacina no Alemão, com dezessete mortos, autoridades policiais chamaram defensores de direitos humanos de “narcoativistas”. O presidente da República se pronunciou sobre existirem “áreas protegidas pelo STF” onde “a bandidagem cresce”.
A liminar do STF, alvo dessas acusações, foi proferida no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635, a ADPF das favelas, iniciada por uma coalizão de movimentos de favelas e familiares de vítimas de violência de Estado. A ação assegurou parâmetros legais para a realização de operações policiais, interrompendo uma escalada ininterrupta da violência policial (crescimento de 313% de 2013 até 2019). Em 2020 observou-se a maior redução anual na letalidade policial dos últimos quinze anos (em 34%). Isso ocorreu concomitantemente a uma redução tanto os crimes contra vida (24%), como dos crimes contra o patrimônio (39%), demonstrando que o respeito aos direitos humanos não se opõe ao controle do crime.
A trégua experimentada pelos moradores de favelas em 2020 foi interrompida desde a ascensão de Cláudio Castro ao governo do Rio de Janeiro, quando a liminar do STF passou a ser deliberadamente desobedecida. Segundo dados do datalab Fogo Cruzado, nos últimos anos as ações oficiais produziram quase três vezes mais chacinas (ocorrências com três ou mais mortes), do que a soma de todos os grupos armados (facções do tráfico de drogas e milícias) e vitimaram praticamente o triplo de pessoas. Está em curso um fenômeno de “estatização das mortes”, no qual o peso da letalidade policial no total das mortes violentas foi avançando ao longo dos últimos anos. Em 2021 as polícias foram responsáveis por um terço do total das mortes na região metropolitana do Rio (35%), três vezes o limiar considerado aceitável por parâmetros internacionais (10%) e até mesmo que a média brasileira (12,9%). Não seria de se esperar que com o avanço do regime democrático o uso da força pelo Estado fosse publicamente pactuado e limitado legalmente?
Nossa hipótese é de que, historicamente, as polícias do estado do Rio de Janeiro reagiram com violência e por meio de chacinas às tentativas de controle democrático de sua atividade. As duas gestões de Leonel Brizola (1983-87 e 1991-94) enfrentaram esses problemas. Em seu primeiro governo, procurou impor limites práticos ao exercício arbitrário do uso da força, como a proibição das invasões de domicílio em favelas ou das prisões para averiguação. A polícia reagiu a essas mudanças se recusando a fazer seu trabalho, em uma espécie de greve branca e de chantagem – o suficiente para criar uma sensação de “desordem” que seria amplificada pelos jornais e canais de televisão.
Foi na esteira desse processo que Moreira Franco (1987-91) se elegeu, prometendo acabar com a violência em seis meses. Restituiu à polícia a permissão para exercer a sua discricionariedade autoritária, e esse descontrole potencializou a imersão de agentes policiais em mercados criminais de roubos, sequestros e extorsões. Esse modelo autoritário de polícia foi rechaçado nas urnas em 1990, e Brizola assumiria novamente com a missão de combater os grupos de extermínio dentro da polícia. Grupos de policiais encapuzados responderam ao governo estadual através de massacres como a chacina de Acari (1991); as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, em 1993. O motim policial anunciava uma nova fase de enfrentamento e desestabilização dos governos.
Já no mandato de Marcello Alencar (1995-99), a letalidade policial passou a ser premiada com uma bonificação que chegava a triplicar o salário dos agentes que matavam mais – era a época da gratificação faroeste. Com esse estímulo, as chacinas foram incorporadas ao modus operandi das corporações, tornando-se uma política de Estado. Esse é o momento em que as chacinas passam a mudar de autoria, migrando dos grupos de extermínio para o cotidiano das polícias. Começa aí o processo de “desencapuzamento” das chacinas. Mesmo que em algumas operações os policiais ainda estejam de rosto coberto (numa prática questionável do ponto de vista da transparência do serviço público), o que se vê é que as mortes cometidas por policiais contam com a anuência das autoridades.
Essa trajetória foi brevemente interrompida no governo de Anthony Garotinho (1999-2002) que, sob os auspícios de Luiz Eduardo Soares, investiu na modernização da polícia, até que este fosse exonerado do cargo de subsecretário de Segurança Pública depois de denunciar a chamada “banda podre” da polícia e virar alvo de ameaças desse grupo. Foi então que grupos criminosos de policiais começaram a se organizar sob a forma das milícias, que se tornaram conhecidas durante o governo Rosinha Garotinho (2003-07). É também no mandato de Rosinha que novos dispositivos jurídicos propiciaram o cerco autoritário às favelas: mandados de busca e apreensão genéricos, contra comunidades inteiras, passaram a ser expedidos; o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confere ao testemunho do policial o status de fé pública, a partir da Súmula 70; e os delegados passaram a autuar moradores de favela que protestavam contra a brutalidade policial pelo crime de associação ao tráfico.
O programa das Unidades de Polícia Pacificadora, iniciado no governo de Sérgio Cabral Filho, proporcionou um período de significativa contenção da letalidade policial, pois, com a ocupação permanente de favelas, as operações policiais se reduziram drasticamente. Já o governo de seu sucessor, Luiz Fernando Pezão, foi marcado pela crise política e econômica e a falência fiscal do governo do estado – a letalidade policial e as chacinas em operações subiram drasticamente, concomitante ao aumento de todas as demais ocorrências criminais. Essa piora dos indicadores culminou, em 2018, com uma intervenção federal na segurança pública do estado, coordenada por um general do Exército, e abriu caminho para a chegada ao poder da extrema direita, representada no Rio de Janeiro pela chapa Wilson Witzel/Cláudio Castro.
O primeiro ano do governo Witzel conseguiu atingir a cifra macabra de 1814 mortos pelas polícias e 75 chacinas policiais, os patamares mais elevados de toda a série histórica – tanto a do ISP, a partir de 1999, como a do Geni/UFF, que analisa os dados desde 2007. A extinção da Secretaria de Segurança Pública (Seseg) e da Corregedoria Geral Unificada (CGU) conferiu grau máximo de autonomização às polícias, que passaram a atuar de forma ainda mais brutal. As chacinas se tornaram ainda mais frequentes. Foram sendo fechados os poucos canais de diálogo entre o Estado e a sociedade civil, o que impulsionou a utilização dos meios judiciais como forma de enfrentamento da letalidade policial, como no caso da Ação Civil Pública da Maré e, atualmente, a ADPF das Favelas – no âmbito da qual se conseguiu que o STF circunscrevesse algumas das devidas cautelas durante a atuação das polícias em operações.
Algumas das conquistas populares na justiça e contra as quais a polícia se insurge atualmente são: a solicitação da presença de ambulâncias durante operações; a proibição de utilizar escolas, creches e hospitais como bases operacionais; a exigência de que as cenas dos homicídios sejam preservadas; a prioridade de investigação dos casos envolvendo a morte de crianças e adolescentes; e a investigação independente de homicídios de autoria policial, dentre outras medidas visando à preservação da vida e a observância à lei. Resta saber em que sentido essas conquistas “atrapalham o trabalho policial”. Que tipo de atividade policial é essa que não pode ser submetida a nenhum controle legal?
As políticas de segurança pública baseadas no confronto armado e no extermínio de suspeitos proporcionam custos altíssimos à sociedade e não contribuem para a diminuição da ocorrência de crimes, mas proporcionam retornos eleitorais. Além dos números inaceitáveis de mortos, todos os dias milhares de pessoas são impedidas de comparecer ao trabalho e a escolas, creches e serviços de saúde deixam de funcionar nas áreas onde a polícia realiza operações. Enquanto isso, os grupos armados dispõem de um contingente pronto para substituir agentes do rés ao topo da hierarquia criminal. A ausência de controles sobre as incursões armadas em favelas colabora para a corrupção do aparato policial, pois o uso não regulado da força oficial abre caminho para a obtenção de vantagens privadas.
Defender que as chacinas policiais são eficientes para o controle do crime é negacionismo ou, pior, perversidade. As chantagens e chacinas que se sucedem às tentativas de controle democrático da atividade policial são os maiores sintomas de algo que cresce corroendo as instituições democráticas. Já não se trata mais apenas de uma questão de segurança pública, mas da própria democracia.