17 Fevereiro 2020
A exortação “Querida Amazônia” é um texto embebido de poesia, e sabe-se que a poesia abre espaços que vão bem além das palavras, o que é um bom critério hermenêutico para entender também aquilo que não é dito no texto.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 14-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há decepção com a exortação pós-sinodal do papa em conclusão do Sínodo para a Amazônia. Esperava-se uma abertura sobre o ministério sacerdotal de homens casados e também sobre o acesso das mulheres à sagrada ordem do diaconato, o que, ao invés disso, não existiu, apesar do fato de o documento final votado pelo Sínodo dos Bispos, no número 111, ter proposto a ordenação de homens casados “idôneos e reconhecidos pela comunidade” e, no número 102, ter reconhecido “a ministerialidade que Jesus reservou para as mulheres”.
Seria equivocado, porém, reduzir a atenção apenas a esses dois pontos quando o texto do papa, “Querida Amazônia”, é de uma riqueza extraordinária e expressa uma intensidade de envolvimento e de amor por uma terra e pelos pobres que nela habitam como nenhum papa jamais havia manifestado até agora. Trata-se de um texto embebido de poesia, e sabe-se que a poesia abre espaços que vão bem além das palavras, o que é um bom critério hermenêutico para entender também aquilo que não é dito no texto.
Nunca se havia visto um papa que, em um documento magisterial, assumisse uma poesia assim:
“Do rio, fazes o teu sangue (…).
Depois planta-te,
germina e cresce
que tua raiz
se agarre à terra
mais e mais para sempre
e, por último,
sê canoa,
barco, jangada,
solo, jarra,
estábulo e homem”
(“Llamado”, do peruano Javier Yglesias, 2007).
Deve-se dizer, acima de tudo, que a renúncia do papa a apressar a reforma da Igreja sobre esses dois temas cruciais certamente responde à preocupação de não dar pretextos para um cisma na Igreja, depois da intimidação do livro do cardeal Sarah endossada por um ex-papa que, segundo a doutrina romana, havia sido infalível até o dia 28 de fevereiro do ano passado e por um cardeal que, sem ser infalível, havia sido presidente dos bispos da Igreja italiana de 1991 a 2007.
Certamente se tratava de uma situação nova: nunca havia acontecido que um papa infalível ontem interferisse nas decisões de um papa infalível hoje; é algo que só podia acontecer depois de 1870, e, de fato, aconteceu hoje. Por isso, seria necessária uma bela norma canônica para regular o status dos ex-papas.
Em todo o caso, Francisco escolheu com sabedoria, sob chantagem, descontentando os fiéis, mas satisfeito por ter ativado um processo, que é muito mais do que ocupar um espaço. E o papa foi muito atento para deixá-lo aberto precisamente através da escolha que fez com a sua exortação.
Esta não substitui e, por isso, não cancela o documento final do Sínodo onde aquelas aberturas estavam contidas. De fato, o papa escreve na sua exortação apostólica que não quer “repetir e substituir” as conclusões do Sínodo, mas sim expressar as suas ressonâncias provocadas nele e, ao mesmo tempo, “apresentar de maneira oficial” aquele documento final “no qual colaboraram muitas pessoas que conhecem melhor do que eu e do que a Cúria Romana a problemática da Amazônia”, que é como dizer: deem ouvidos a essas pessoas.
Para corroborar essa leitura, veio a declaração do cardeal Czerny, secretário especial do Sínodo para a Amazônia, na coletiva de imprensa no Vaticano de apresentação do texto do papa. Ele disse que se trata de “uma carta de amor’. É um documento do magistério, pertence ao magistério ordinário do sucessor de Pedro. O documento final do Sínodo, por sua vez, é composto por propostas que os Padres votaram e confiaram ao Santo Padre.
Pois bem, o papa autorizou a sua publicação com os votos expressos, apresentou-o oficialmente e encorajou a lê-lo na íntegra. Isso significa, concluiu o cardeal, que, além da autoridade magistral formal, ele assume “uma certa autoridade moral, e ignorá-la seria uma falta de obediência à legítima autoridade do Santo Padre, enquanto – acrescentou astutamente – achar difíceis alguns pontos não seria considerado uma falta de fé”. O que é como dizer que, se o cardeal Sarah acha difícil fazer padres os homens casados, nem por isso se deve pensar que ele não tem fé.
O secretário especial do Sínodo concluiu que “as lições” que vêm do documento sinodal e da exortação “Querida Amazônia” devem ser aplicadas além da Amazônia: “Elas tocam toda a Igreja e todo o mundo, mesmo que de modo não uniforme”.
Nunca um Sínodo dos Bispos, muito menos um Sínodo local, teve tal reconhecimento da sua autoridade e da sua autonomia. Isso significa que o jogo não está encerrado e quando, na exortação do papa, está escrito que os povos amazônicos precisam da celebração da eucaristia e que é urgente fazer com que eles não sejam privados dela, assim como do sacramento do perdão, é claro que o caminho permanece aberto ao sacerdócio sem celibato.
Não por acaso, o papa especifica que a única coisa que distingue o sacerdócio católico é a ordem sagrada, e não, como alguns pensam, “o poder, o fato de ser a máxima autoridade da comunidade”. Do mesmo modo, se poderia continuar, não é o celibato que o distingue.
E, quanto às mulheres, é surpreendente a motivação edificante e feminista dada pelo papa para não cooptá-las à ordem sagrada: seria reducionista, seria pensar nelas apenas de modo funcional, se se considerasse que a Igreja, para desfrutar do seu carisma, tivesse que ordená-las, quando, “sem as mulheres, ela desmorona”. São elas que, também na Amazônia, mantiveram a Igreja de pé. E agora é preciso fazer de tudo, exceto clericalizá-las. Há aqui o eco de uma discussão, aberta também entre as mulheres.
A carta do papa, portanto, pode parecer não como um momento de recuo no conflito aberto na Igreja, mas sim como um extraordinário ato de governo.
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“Querida Amazônia”, uma carta de amor. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU