Ao abrirem-se as portas para a chegada de um ar renovado e fresco, há também o risco de um vendaval. O tumulto causado traz consigo o cheiro da novidade, mas também afasta e desestabiliza aquilo que já não é tão seguro e firme. Se o vento põe tudo abaixo é porque as estruturas já não se suportavam, eram de tamanha fragilidade que o sopro vem para justamente para gerar novas vidas.
Os Franciscos, tanto o de Assis como o Papa, reconhecendo a insustentabilidade dos ares de seus próprios tempos, puseram os rostos ao ventos da novidade, sem medir as consequências, mas com esperança da fé para seguir dando sustentação à Igreja e à Casa Comum. No dia 06-10-2019 os ventos da Floresta Amazônica chegam a Roma para abrirem as portas do mundo ao Sínodo Pan-Amazônico. O evento traz uma lufada de esperança capaz de sacudir estruturas e renovar a fé daqueles que se sentem sufocados pelas nuvens que tentam impedir o Irmão Sol de iluminar e sustentar a vida em toda sua biodiversidade.
Francisco, o Papa, ao aparecer pela primeira vez na varanda central da Basílica de São Pedro, deixou nas entrelinhas o que seria seu pontificado. Vindo de uma distante Argentina, quase no fim do mundo, apontou que estava no centro da Igreja alguém que perambulou pelas periferias do mundo. O Papa das Periferias assim tem feito. É nesse sentido que o Sínodo Pan-Amazônico expressa a própria de uma Igreja velha de estruturas mal pensadas e inalcançáveis no século XXI ao Povo distante. Francisco aponta na sua primeira exortação apostólica,Evangelii Gaudium, que o “tempo é maior que o espaço”, e demonstra nos seus atos, que o espaço é de fato atingível e encurtado. A Igreja distante exige aproximação por uma conversão pastoral.
Já em 2015, o pontífice descreveu o que seria o espírito, a inspiração do Sínodo Pan-Amazônico: a encíclica Laudato Si’. É nesse documento que estabelece a ecologia integral como o paradigma para o Cuidado com a Casa Comum, com a Criação como um todo. O Sínodo, convocado em outubro de 2017, tem no título essa referência “Sínodo para a Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral”. O coração do processo é estabelecer uma conversão socioambiental, e, portanto, como apontou o Papa, quem não leu a Laudato Si’ jamais entenderá o Sínodo da Amazônia.
Região Pan-Amazônica
Diante da catástrofe climática e econômica, a Laudato Si’ provoca à nova concepção de mundo que o Sínodo tem como objetivo “aterrissar”. Ou seja, estabelecer as linhas concretas para o cuidado do território particular, o pan-amazônico, mas que implica no controle climático e da biodiversidade universal, juntamente com a concepção de outros modelos econômicos que também deem conta da preservação do planeta. Por isso, o Sínodo Pan-Amazônico traz consigo também a exigência da conversão sinodal: a participação descentralizada na Igreja, mas em unidade e colegialidade.
Tal qual a centena de afluentes que se unem ao caminho para formar o rio Amazonas, partindo das diversas periferias do mundo, o pontificado de Francisco tem no Sínodo Pan-Amazônico o encontro dos seus diversos caminhos construídos nesses seis anos. A força da água doce e das florestas que confortam o clima de todo o planeta são partes da estrutura da Casa Comum. Assim é o caminho da Igreja dos Franciscos, do Papa e do de Assis, “tudo está interligado”, é necessário sustentar as estruturas com ar e águas puras que geram a vida.
A abertura que Francisco promove parte da escuta e da esperança de mais de 80 mil pessoas que participaram dos fóruns preparativos deste Sínodo e o exercício do confiança no sensus fidei das populações amazônicas. Ao contrário de amedrontados pela fé diversificada, que brota e floresce em diferentes cantos por diferentes culturas, o Sínodo Pan-Amazônico é a aposta que a Casa Comum se sustentará pela experiência de quem lutou desde sempre para sobreviver.
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A seguir, apresentamos o desenvolvimento do processo, contado pelas páginas do IHU. Convidamos às leitoras e aos leitores para uma aprofundada leitura pelos diversos links disponíveis.
Papa Francisco em Puerto Maldonado, em janeiro de 2018. Foto: Guzmán Negrini
Em maio de 2017, bispos peruanos se encontraram com o papa Francisco no Vaticano, que manifestou a primeira intencionalidade sobre um Sínodo Pan-Amazônico. Conforme descreveu o bispo de Puerto Maldonado, David Martínez Aguirre, o Papa afirmou ser “muito importante que haja um encontro entre nós, bispos da Amazônia, para elaborar linhas comuns e para expressar a riqueza não só ambiental, mas dos povos que habitam essas terras”. Em 15 de outubro de 2017, foi oficializada a convocação do Sínodo, ao final de uma missa na Praça São Pedro, nas palavras do Papa acolhendo o desejo e a voz de diversos pastores e fiéis. “O principal objetivo dessa convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, muitas vezes esquecidos e sem a perspectiva de um futuro sereno, também por causa da crise da floresta amazônica, pulmão de grande importância para o nosso planeta”, proclamou.
Em janeiro de 2018, a viagem papal para o Chile e o Peru ficou marcada pelas turbulências que o papado tem enfrentado. No Chile, os escândalos de abusos e os erros cometidos por Francisco na avaliação e pronunciamento sobre os casos causaram um terremoto na Igreja, que se espalhou para outros cantos do mundo, sem a certeza de como será quando acabar. No Peru, a viagem a Puerto Maldonado confirmou a abertura do processo sinodal para a escuta dos povos amazônicos, pela defesa dos seus territórios e pela construção de uma “Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena”, reafirmando junto aos povos indígenas “uma opção sincera pela defesa da vida, defesa da terra e defesa das culturas”.
Em junho de 2018 o processo sinodal iniciou a expansão para as comunidades amazônicas com a publicação do Documento Preparatório. O teólogo Paulo Suess, em entrevista à IHU On-Line comentou sobre o conteúdo do Documento, que conduziam para as intenções do papa Francisco em criar novos caminhos de evangelização. "Esses novos caminhos, marcados por três cuidados, são o fio condutor proposto para o trabalho do Sínodo Pan-Amazônico: o sujeito (os povos da Amazônia), a microrregião (rosto amazônico) e a macrorregião (novo estilo de vida de toda a humanidade)", explicou Suess.
O documento organizado pela metodologia Ver-Julgar-Agir apresentava uma diversidade de perguntas partindo desde a realidade socioambiental das comunidades às experiências de fé. Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho/RO e presidente do Conselho Indigenista Missionário — CIMI, avaliou o documento e as responsabilidade de colocá-lo em prática: "O agir vai exigir de nós sobretudo uma grande disponibilidade de ouvir os gritos de Deus nos gritos dos pobres, para podermos agir de acordo com o coração de Deus e com o sopro do espírito".
Celebração do Sínodo Pan-Amazônico. Foto: Vatican News
A Rede Eclesial Pan-Amazônica — REPAM também publicou uma versão popular do documento para dinamizar o trabalho de escuta e preparação ao Sínodo nas comunidades.
As assembleias locais, fóruns e encontros sobre o Sínodo reuniram mais de 87 mil pessoas durante os anos de 2018 e 2019. O chamado processo de "escuta sinodal" foi coordenado pelas dioceses da região Pan-Amazônica e pela REPAM. Os debates propiciados a partir do Documento Preparatório procuraram refletir sobre os clamores dando pistas ao trabalho a ser desenvolvido na Assembleia deste mês de outubro.
A IHU On-Line teve como grande parceiro Luis Miguel Modino, padre diocesano espanhol e missionário Fidei Donum, que fez matérias diretas desde o Coração da Amazônia. A partir do trabalho de Modino publicamos em nossas páginas reportagens e entrevistas com índigenas, religiosas e religiosas, padres e bispos que participaram ativamente do processo - nos 9 países amazônicos.
No mês de junho de 2019, o Vaticano publicou o Instrumentum Laboris, o Documento de Trabalho, construído pela secretaria do Sínodo a partir dos relatórios das escutas sinodais. É a partir deste relatório que as discussões da Assembleia dos Bispos será desenvolvida.
A centralidade do documento está na ecologia integral, levando em frente o compromisso levantado pela Laudato Si'. No entanto, a preocupação com a Casa Comum emergiu das assembleias locais. Os problemas relacionados ao desmatamento, à pobreza, falta de serviços básicos às populações amazônicas, relacionam-se com os problemas de ordem eclesial, como a falta de padres e, por consequência, dos sacramentos, sobretudo, os mais ressaltado, da Eucaristia.
O documento deixa explícito a contradição entre a Amazônia exercer um papel central para o clima do planeta e para a biodiversidade, mas ser periférica para o atendimento das necessidades básicas de sobrevivência. Em entrevista à IHU On-Line, dom Roque Paloschi destacou a complexidade e profundidade do documento por trabalhar na perspectiva da integralidade: "Penso que o Instrumentum Laboris está mergulhado no mesmo espírito da Laudato Si’, que é da integralidade, da interligação. Dessa forma, se torna muito difícil destacar um ponto mais importante, visto que eles estão entrelaçados como a trama de uma rede e expressam clamores existenciais".
O teólogo e assessor da REPAM Paulo Suess, também analisou o Documento de Trabalho, em uma aprofundada entrevista à IHU On-Line: "O IL oferece muitas pérolas que configuram um colar bonito: a conversão, um olhar diferente, a encarnação, descentralização sacramental e ministerial, pastoral de presença, plural e profética".
Foi devido à essa pluralidade que a repercussão do IL foi tão polêmica. Cardeais como Gerhard Müller e Walter Brandmüller acusaram o documento, e o processo sinodal, de ser "herético e apóstata". Isso porque o documento faz referências à espiritualidade indígena e à importância da evangelização inculturada.
O problema da falta de padres levantou a possibilidade da ordenação viri probati, isso é, ordenação de homens casados, nesse caso, de comunidades indígenas, reconhecidos por suas comunidades como aptos a distribuir o sacramento da Eucaristia, causando grande debate sobre o celibato. Outra discussão que se levanta no IL é sobre o papel dos ministérios, sobretudo pela grande presença de mulheres protagonizando o serviço pastoral e litúrgico nessas comunidades isoladas.
O Sínodo Pan-Amazônico tomou repercussões de diferentes cunhos. Além das críticas diretas de setores conservadores da Igreja e opositores ao pontificado de Francisco, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro manifestou preocupações pelo levantamento de questões políticas. Pelos setores progressistas, a crítica foi recorrente pelas mulheres. Assim como no Sínodo da Juventude, em 2018, organizações que defendem a igualdade dentro da Igreja levantaram protestos pelo voto feminino.
Entre os conservadores católicos as manifestações de oposição ao processo se destacaram, além dos já citados cardeais Müller e Brandmüller, pelo cardeais Raymond Burke, dos Estados Unidos, e Robert Sarah, da Guiné, e dos movimentos Tradição, Família e Propriedade (TFP) e o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira (Ipco) - que juntos organizaram um site, em quatro idiomas, "Observatório do Sínodo Pan-Amazônico" (o Pan-Amazon Synod Watch), que serve para divulgar artigos de oposição à Assembleia Sinodal.
No campo político, o governo brasileiro assumiu publicamente sobre sua preocupação com "as interferências da Igreja" nas políticas ambientais e indigenistas na Amazônia. O presidente Jair Bolsonaro chegou a admitir que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) está monitorando o processo sinodal. A CNBB foi convidada a ir ao Congresso para falar sobre o desenvolvimento do processo.
No mês de agosto a tensão entre o governo e o Sínodo se aprofundaram depois da polêmica das queimadas na Amazônia. O papa Francisco manifestou em entrevista sua preocupação com o "soberanismo" e na Praça São Pedro, após recitar o Ângelus, de 25-08, foi aplaudido pelo público ao manifestar: “Estamos todos preocupados pelos vastos incêndios que deflagraram na Amazônia. Rezemos para que, com o compromisso de todos, sejam dominados o mais rapidamente possível. Este pulmão de florestas é vital para o nosso planeta”. Devido a repercussão dos incêndios, interlocutores do governo brasileiro admitiram temor de o documento final do Sínodo tecer críticas nominando "governos e políticas públicas".
Por outro lado, mulheres de diferentes organizações cobram da Igreja por maior abertura a participação de religiosas. Será a maior participação feminina da história, porém nenhuma terá direito ao voto. Na quinta-feira, 03-10, a organização Voices of Faith organizou um protesto para que o voto feminino seja admitido no processo.
A REPAM preparou um material para acompanhar e rezar o caminho do Sínodo Pan-Amazônico por 40 dias. Nas palavras do secretário-executivo, Maurício López: "São 40 dias, já que esse número reflete a busca pelo perfeito em Deus, ou seja, para nos prepararmos para que o que é de Deus inunde nossos corações e que o próprio do bom Espírito prevaleça nesse discernimento sinodal. É uma navegação pelos rios do interior de cada um nas águas das boas novas em direção ao Sínodo Amazônico".
Celebração no dia 04-10-2019, dia de São Francisco de Assis, nos Jardins do Vaticano, com os povos indígenas. Foto: Religión Digital
Com uma azinheira de Assis plantada nos Jardins do Vaticano, simbolicamente convertido em um rincão da Amazônia. Na véspera do Sínodo Pan-Amazônico, no dia de São Francisco de Assis, Bergoglio presidiu uma celebração marcada pelos cânticos, a alegria e o contato com a natureza. O pai do cuidado com a natureza foi proclamado por Francisco, acompanhado dos povos indígenas presentes no Vaticano: o patrono do Sínodo da Amazônia.