24 Julho 2018
Em 23 de julho de 1993, oito meninos de rua foram fuzilados pela polícia do Rio, por motivos que nunca ficaram esclarecidos. Nenhum acusado está preso. Para testemunha da época, o genocídio pernicioso continua.
A reportagem é de Philipp Lichterbeck, publicada por Deutsche Welle, 23-07-2018.
Naquela noite, Yvonne Bezerra de Mello teve uma premonição. "Eu dei a três garotos uma ficha telefônica para eles me ligarem, se acontecesse alguma coisa." E aí ela se despediu do grupo de 70 meninos de rua que dormiam na frente da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro.
Era 23 de julho de 1993. Na época, ela cuidava das crianças abandonadas à própria sorte pelo Estado: o mais novo tinha seis anos de idade, o mais velho, vinte e poucos. "De noite vieram os telefonemas", conta. "Os garotos gritavam: 'Eles estão matando a gente!'"
Hoje, 25 anos depois, Yvonne é uma educadora de renome internacional. Mas aquela noite de sexta-feira marcou sua vida. É a história da chacina da Candelária, que causou indignação internacional, também pelo fato de mostrar um Brasil bem diferente daquele dos cartões-postais: um Brasil impiedoso, brutal e socialmente dividido. "Um país que até hoje existe", comenta Bezerra.
Ela conta a história do massacre em seu apartamento no bairro do Flamengo, na zona sul carioca. De vez em quando, pega velhas fotos para mostrar. "Quando eu cheguei à Candelária, meia hora mais tarde, os corpos estavam caídos na frente da igreja." Os sobreviventes estavam apavorados.
Ao todo, oito jovens entre 11 e 19 anos foram fuzilados naquela noite. Como logo se revelou, os assassinos eram policiais do 5º Batalhão da Polícia Militar do Rio, no qual havia uma espécie de esquadrão da morte que também traficava drogas.
Há diferentes versões sobre o que os levou a massacrar os meninos de rua. Consta que os policiais estariam irritados por eles terem jogado uma pedra contra uma viatura no dia anterior. Além disso, contudo, a educadora está convencida de que se tratou de um acerto de contas: "Os policiais traficavam cocaína, e alguns dos garotos mais velhos os ajudavam." Como havia uma conta aberta, eles resolveram se vingar.
Entre os sete réus do subsequente processo, três policiais foram sentenciados. Um dos acusados foi morto durante o inquérito, ao que tudo indica como "queima de arquivo". No entanto, todos os três condenados estão hoje em liberdade: dois foram soltos antes de cumprir integralmente a pena, enquanto o principal culpado, Marcus Vinícius Emmanuel Borges, está foragido. Dos 300 anos de prisão a que foi condenado, ele cumpriu 18.
"Para esta sociedade, os pobres e os negros não significam nada", comenta Bezerra. Na época, ela foi insultada de cúmplice dos "vagabundos" – os meninos de rua, que incomodavam muita gente. Houve quem descrevesse o massacre como uma limpeza social necessária, afirma.
O 23 de julho de 1993 foi decisivo na vida da pedagoga, pois, a partir de então, passou a dedicar sua vida ao trabalho com as crianças de rua. Ela fundou o conceituado projeto educativo Uerê, que mantém uma escola no complexo da Favela da Maré. No entanto, até hoje ela sofre ameaças, devido a seu engajamento.
A educadora de 61 anos acredita que todos os meninos da Candelária estejam mortos. Durante anos ela manteve contato com eles, mas o último de seus conhecidos foi morto recentemente por uma bala perdida, na Maré. "Nenhum deles chegou aos 50 anos. A vida deles foi sempre marcada pela violência."
Notório entre eles ficou o traumatizado Sandro Barbosa, que no ano 2000 sequestrou um ônibus com uma arma, acabando por morrer asfixiado pela polícia. O filme Ônibus 174, de José Padilha, fala sobre o caso.
Mas existe um sobrevivente daquela noite: Wagner dos Santos, envolvido por acidente no massacre. Depois de terem fuzilado seis adolescentes na Candelária, os policiais procuraram por mais vítimas nas cercanias. Por acaso, Wagner se encontrava próximo a dois meninos de rua, e os policiais tentaram matá-lo também.
Quatro balas o atingiram, uma delas no rosto, mas ele sobreviveu, tornando-se a principal testemunha do processo. Por isso foi vítima de novo atentado: mais uma vez, quatro balas, novamente ele sobreviveu. Hoje com 45 anos de idade, Wagner vive na Suíça, por razões de segurança. "Ele é cego e surdo de um lado do rosto e sofre de traumas severos", relata sua irmã Patrícia Oliveira, sentada num sofá no escritório da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência, organização que ela criou no centro carioca.
Ela diz que seu irmão não acredita em justiça no Brasil. Nada mudou nas circunstâncias que levaram à chacina, a polícia continua matando jovens negros sem sofrer consequências. Wagner dos Santos recebe uma pensão do governo brasileiro equivalente a 420 euros. "Ele quer finalmente deixar para trás a chacina", afirma Patrícia. "Mas como é que ele vai esquecer essa violência?"
Também na opinião de Yvonne Bezerra, nada mudou no Brasil desde 1993, "o Estado e a sociedade toleram o massacre dos pobres". De fato, apenas um mês após a chacina da Candelária, um esquadrão da morte da polícia matou 21 pessoas na Favela Vigário Geral. De 52 réus, sete foram condenados, só um ainda está na prisão.
Até hoje a polícia brasileira continua realizando chacinas contra jovens negros e pobres, sobretudo no Rio de Janeiro. Além disso, há a violência do narcotráfico nas favelas, que o Estado aparenta tolerar. Yvonne Bezerra tem um número na ponta da língua: em 1993, cerca de 11 mil jovens tiveram morte violenta no Brasil. Hoje são 28 mil por ano. É um genocídio pernicioso, afirma.
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Candelária: 25 anos de uma chacina num país que não mudou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU