29 Setembro 2017
Na Audiência Geral dedicada à esperança, o Papa citou o poeta francês que nos "deixou páginas maravilhosas" sobre a segunda virtude teologal. O mesmo que há um século descreveu os dois "grupos de clérigos" (os “clericais-clericais” e os “clericais-anti-clericais”) com os quais é preciso ter cautela ainda hoje, na Igreja e no mundo.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 27-09-2017. A tradução é de André Langer.
O poeta francês Charles Péguy "deixou-nos páginas maravilhosas sobre a esperança". A afirmação foi feita pelo Papa Francisco durante a Audiência Geral desta quarta-feira, 27 de setembro, em que deu continuidade ao seu ciclo de catequese dedicado à segunda virtude teologal. Péguy – recordou o Bispo de Roma (citando a obra Os Portais do Mistério da Segunda Virtude) – “disse que Deus não se surpreende tanto com a fé dos seres humanos, e muito menos com a sua caridade; mas o que realmente o enche de admiração e comoção é a esperança das pessoas: ‘Essas crianças pobres – ele escreve – que diante do presente acreditam que amanhã será melhor’”.
A imagem do poeta, acrescentou o Papa, “faz alusão aos rostos de muitas pessoas que caminhando neste mundo – camponeses, trabalhadores pobres, migrantes em busca de um futuro melhor – lutam tenazmente apesar do amargo e difícil tempo presente, cheio de tantas provações, mas animados tão somente pela confiança de que os seus filhos terão uma vida mais justa e mais serena. Eles lutaram pelos seus filhos, eles lutaram com esperança”.
A irrupção de Péguy nas reflexões do Papa Francisco é como um raio de luz, mesmo nas deprimentes notícias eclesiásticas desses dias. Deus – disse Péguy – se surpreende com os corações dos homens que simplesmente esperam, porque o sinal de que a graça entrou no mundo com Cristo "tem uma força incrível" e mantém viva a esperança como uma pequena chama "vacilante ao sopro do pecado, que treme com todos os ventos, ansiosa ao mínimo sopro". Péguy descreve a esperança como uma "menina de nada" que avança "entre as suas irmãs mais velhas" – as outras virtudes teologais da fé e da caridade – "e ninguém repara nela", perdida "entre as saias de suas irmãs». Mas, na verdade, "ela é a única que faz as outras duas caminhar, puxa-as e faz todos caminharem. Porque nunca se trabalha mais do que pelas crianças".
Assim, usando a imagem da "menina" esperança, o poeta francês intui e volta a propor em nossos tempos “incristãos” (os primeiros "depois de Jesus, sem Jesus") que em todas as épocas e em todas as situações a esperança cristã pode florescer e recomeçar somente se o próprio Cristo realiza um novo gesto de graça, agora, manifestando sua presença operante. "A fé" – escreveu Péguy – "é uma catedral enraizada no solo da França. A caridade é um hospital, um refúgio que recolhe todas as misérias do mundo. Mas sem esperança, tudo isso não passaria de um cemitério".
Vinte séculos de cristianismo, de doutrina de santidade e de teologia seriam coisas mortas e passadas, sem uma nova ação da graça do Ressuscitado. Aparentemente inerme como um botão que floresce no final do inverno: "Sem esse germinar de fim de abril", diz o próprio Deus na obra de Péguy, "sem esse único e pequeno broto de esperança, que obviamente qualquer pessoa pode quebrar... toda a minha criação não seria mais que madeira morta (...). Quando se vê tanta grosseria, a pequena gema terna não parece nada... E, no entanto, é dali que tudo procede". Todo o cristianismo pode tornar-se um passado morto, pretexto e instrumento de chantagens e lutas de poder, se um novo broto não florescer no tronco endurecido da história cristã, se um novo gesto do Senhor não suscitar hoje a esperança, como aconteceu com os primeiros pescadores que se encontraram com Ele no Lago da Galileia.
No martelar cadenciado de seus escritos, "o inclassificável Péguy" – como o descreveu o cardeal Roger Etchegaray – indicou, há mais de um século, que o que contrasta com o dinamismo da graça e da salvação da felicidade cristã não são os pecados dos homens, que, pelo contrário, fazem parte do mesmo "mecanismo", mas as operações de negociação e desnaturalização realizadas por dois "grupos" de clérigos. "Nós – escreveu o poeta francês em Véronique, obra póstuma – nos movemos constantemente entre dois clérigos, caminhamos com cautela entre dois grupos de clérigos: os clérigos leigos e os clérigos eclesiásticos; os clérigos clericais anti-clericais e os clérigos clericais-clericais". Os primeiros – explicou Péguy – negam o eterno do temporal, “querem separar eterno do temporal, do que está dentro do temporal". Enquanto que os clérigos eclesiásticos "negam o temporal do eterno", querem "desfazer, separar o temporal do eterno, do que está dentro do eterno. E tanto uns como os outros não são cristãos, porque a própria técnica do cristianismo, a técnica e o mecanismo de sua mística, da mística cristã é essa: envolver um pedaço de mecanismo no outro; é um encaixe de duas peças, essa especial relação, mútua, única, recíproca, indefectível, não desmontável de um no outro e deste no primeiro; do temporal no eterno, e (mas, sobretudo, coisa mais frequentemente negada e que de fato é a coisa mais maravilhosa) do eterno no temporal».
No início do século passado, Péguy intuía que entre os "clericais leigos" (isto é, os materialistas) e os "clérigos-clericais" (os idealistas, os espiritualistas, aqueles que exaltam o papel da religião), os mais perigosos eram os últimos. Porque os primeiros negavam. Mas os segundos desnaturalizavam. Os grupos clericais que hoje travam batalhas com dossiês e petições e que transformam em campo de batalha inclusive o do Sucessor de Pedro, nem sequer têm a trágica grandeza dos conspiradores que operavam na época de Péguy. Mas eles compartilham com elas o impulso de afastar "o mistério e a ação da graça" das dinâmicas eclesiais. Assim, mesmo os formulários sobre a "Igreja em saída" transformam-se em objetivos estratégicos a serem alcançados com um esforço e um projeto de reforma funcional, e não dirigem a Cristo mesmo a oração para que faça "sair" a Igreja de si mesma e de suas pretensões de auto-suficiência.
Também para os clericais contemporâneos, do tipo que forem, vale o que Péguy escrevia sobre o "partido dos devotos" de seu tempo, sempre ocupado tratando de "opor-se ao trabalho da graça", de "pisotear os jardins da graça" com uma brutalidade aterradora: "Mais uma vez, a graça agirá. Mais uma vez ela já está agindo, meu amigo. Ela agiu. E, mais uma vez, os clérigos vão acreditar que ela agiu apenas para eles, farão como se ela tivesse agido, como se tivesse que agir apenas para eles". Porque eles acreditam que "Deus é seu advogado e basta. Ele está ocupado exclusivamente procurando clientes para eles, obrigando, recrutando para eles. Ele só se ocupa com isso. É seu sargento recrutador".
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Francisco, Péguy e o espanto de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU