29 Agosto 2017
"O termo "inculturação" assumiu assim sua própria conotação principalmente no nível teológico como sinal de interpenetração entre o cristianismo e as culturas, em um confronto proveitoso, gloriosamente atestado no passado pelo encontro entre a teologia cristã dos primeiros séculos e a poderosa herança clássica greco-romana. Um fenômeno já antes presente no cruzamento e até mesmo na osmose entre os vários textos bíblicos e as diferentes culturas nomádica, mesopotâmica, cananeu-fenícia, persa, helenística e romana", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, que comenta duas obras recentemente editadas sobre o diálogo inter-religioso hindu-cristão, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 27-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
É um neologismo que, na forma "aculturação", apareceu pela primeira vez em 1880 em um relatório sobre contatos entre os índios norte-americanos e o ambiente circunstante anglo-saxão protestante e foi criado para o ‘Bureau of Ethnology' por John Wesley Powell. Com variantes semânticas, ora mais leves, ora mais marcadas, transformou-se aos poucos no termo paralelo "inculturação" que, em um ensaio do American Anthropologist de 1935, foi assim definido: "São todos os fenômenos que ocorrem quando entre grupos de indivíduos com diferentes culturas estabelecem-se por um longo tempo contatos primários, provocando uma transformação nos modelos culturais de um grupo ou de ambos os grupos". Tendencialmente o termo "aculturação" teve por algum tempo uma conotação negativa: a cultura hegemônica não se dobra à osmose, mas tenta impor a sua marca sobre a mais fraca, criando um choque degenerativo ou uma verdadeira forma de colonialismo.
De forma menos abstrata, basta pensar à ideologia eurocêntrica que impôs não só sua herança epistemológica, mas também o seu modelo prático e econômico ao "sistema mundo", muitas vezes revelando-se na África e na Ásia como a interface do colonialismo. Nesse processo, o cristianismo também foi arrastado para se tornar um dos componentes aculturantes. Compreende-se, assim, o fenômeno de reação constituído pelos movimentos "reavivalistas", ou por formas de nacionalismo, etnocentrismo, indigenismo e populismo, fenômeno tão vigoroso a ponto de levar muitos observadores a variar a terminologia de "globalização" para "glocalização".
É com esse pano de fundo que se explica por que a Igreja contemporânea tenha preferido evitar o termo "aculturação", substituindo-o por "inculturação" para descrever a oba de evangelização (o termo "aculturação" neste sentido foi utilizada pela primeira vez pelo jesuíta Pierre Charles em um artigo em 1953) e os jesuítas, com seu Superior Geral Pedro Arrupe, ofereceram na década de 1970 a maior contribuição temática a respeito.
João Paulo II, na Slavorum Apostoli de 1985, definia a “inculturação” como "a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao mesmo tempo, a introdução dessas culturas na vida da Igreja". Um duplo movimento dialógico de troca, portanto, segundo o qual - como o próprio Papa havia dito aos bispos do Quênia em 1980 - "uma cultura, transformada e regenerada pelo Evangelho, produz por sua própria tradição expressões originais de vida, de celebração e de pensamento cristão".
O termo "inculturação" assumiu assim sua própria conotação principalmente no nível teológico como sinal de interpenetração entre o cristianismo e as culturas, em um confronto proveitoso, gloriosamente atestado no passado pelo encontro entre a teologia cristã dos primeiros séculos e a poderosa herança clássica greco-romana. Um fenômeno já antes presente no cruzamento e até mesmo na osmose entre os vários textos bíblicos e as diferentes culturas nomádica, mesopotâmica, cananeu-fenícia, persa, helenística e romana.
Esta longa premissa apenas visa enquadrar e não justificar como certa a riqueza e o interesse que podem revestir a coleção de um decálogo de estudos coordenados por Sandra Mazzolini, professora da Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, fundada em 1627 pelo Papa Barberini, Urbano VIII, justamente com o olhar direcionado aos alunos das Igrejas dos países de missão. A gama de temas reunidos na obra é definitivamente multicolorida, pois parte ab ovo, com a representação dinâmica da categoria "inculturação", para depois proceder ao longo de estradas fenomenológicas, penetrando, por exemplo, em terras africanas para examinar o sugestivo modelo da palavra, uma prática tradicional que designa "uma assembléia popular no âmbito familiar e social, em que é debatido tudo o que diz respeito à vida do indivíduo ou de toda a comunidade".
Mas o espectro maior dos ensaios aborda as questões nodais que se enredam em torno da inculturação, vista - como o título geral explica - em seu esforço para promover o encontro entre o Evangelho e as culturas, começando precisamente pelos próprios dados bíblicos. É, portanto, interessante descobrir como os teólogos africanos abordam o tema rotulando-o, porém, sob a categoria "reconstrução", pela qual se tenta elaborar "uma visão integradora e uma abordagem holística para o evangelho entendido como evangelho de libertação religioso-cultural, sócio-política e econômica".
Mas é também significativa a referência para a transcultura gerada pela civilização digital, assim como é o enxerto do delicado capítulo dos direitos humanos, muitas vezes modulados de acordo com parâmetros éticos alheios às culturas indígenas, ou o embaralhamento acelerado das cartas causado pelas migrações. Também há uma tentativa de examinar a ansiedade provocada pela nova catequese missionária e para validar criticamente um instrumento eclesial, embora essencial, como foi o Diretório Geral para a Catequese de 1997. Não falta nem mesmo um rápido olhar para o futuro, com um questionamento sobre o “homem inédito”, sobre uma “ecologia humana integral” e a necessidade de "um diferente imaginário cultural, social, ético e religioso".
E nos atrevemos a adicionar, também, as ainda hipotéticas, mas iminentes, perspectivas do pós/transumanismo.
No apêndice acrescentamos outro produto da mesma Universidade Urbaniana, criado em colaboração com uma instituição indiana de Mumbai, que é um dicionário que visa reunir os vocábulos para o diálogo inter-religioso hindu-cristão. A estrutura dos verbetes é clássica e certamente não temos condições de avaliar a seção hindu, um patrimônio teológico-literário confiado a um arco-íris linguístico (sânscrito, línguas dravídicas, especialmente tamil e as neo-arianas). Desfilam 192 verbetes, alguns que já entraram também na nossa linguagem, outros mais gerais ("conceito de Deus na filosofia indiana", "divindades maiores e menores e seres sobrenaturais", "hermenêutica hindu", "pária", "livre arbítrio", "secularismo", "templo hindu" e assim por diante). Claro que o cristão ocidental entra nesse mundo cultural e sagrado como um viajante fascinado e destinado a descobrir surpresas.
Menos explicativa, pelo menos na edição italiana, é a sequência lexical cristã que nem sempre perfaz a função "comparativa" (evidentemente, em um sentido geral, considerando a diversidade dos paradigmas culturais e epistemológicos) e, dessa forma, para muitos verbetes é menos útil para o leitor cristão que pode encontrar várias entradas desse volume mais específicas em dicionários bem mais encorpados. Esta seção cristã poderia, ao contrário, ser significativa para o leitor hindu em uma eventual versão para o inglês.
As nossas restrições, obviamente, não se aplicam aos retratos dos personagens cristãos que desenvolveram o diálogo inter-religioso com um horizonte tão fascinante e que estão devidamente apresentados no dicionário: refiro-me ao jesuíta Roberto de Nobili, aos beneditinos Bede Griffiths e Henri Le Saux, a Jules Monchanin e ao famoso Raimon Panikkar. No entanto, globalmente fica evidente a necessidade de um autêntico encontro intercultural entre o hinduísmo e o cristianismo, que está sendo incubado para uma verdadeira inculturação (lema que no dicionário recebe uma explicação demasiado concisa e até frugal).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Evangelização e "inculturação". Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU