10 Julho 2016
“Corrigindo as coisas, podemos permitir que Maria Madalena surja como modelo de seguidora fiel, devotada do Senhor, e como liderança forte e independente na igreja primitiva”, pontua a teóloga.
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Entretanto, a professora de Teologia da Fordham University, de Nova York, Elizabeth Johnson pede uma reflexão com mais vagar e profundidade na análise. “A situação de Maria Madalena tem de ser vista sobre o pano de fundo de um problema mais amplo”, alerta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a teóloga afirma que toda a sistematização e organização dos textos bíblicos se dá no interior de uma sociedade duramente patriarcal. Ou seja, era natural para aquele tempo não se perceber a importância, e sequer a presença, das mulheres. “Os autores focaram sua atenção no que homens importantes disseram ou fizeram, desconsiderando outras pessoas de menor importância, tais como mulheres ou escravos do sexo masculino”, explica. Porém, “o simples fato de mulheres não serem mencionadas em um texto, por exemplo, não quer dizer que elas não estivessem presentes ou atuantes”.
São justamente os movimentos de releituras e análises feministas sobre as escrituras que hoje revelam o verdadeiro papel da mulher entre os integrantes do movimento de Jesus. “Se mulheres são efetivamente mencionadas em um texto, é provável que elas sejam tão importantes que a história não poderia ser contada se elas fossem ignoradas”, completa Elizabeth.
Assim, a teóloga entende que “corrigindo as coisas, podemos permitir que Maria Madalena surja como modelo de seguidora fiel, devotada do Senhor, e como liderança forte e independente na igreja primitiva”. E vai além: “sua liderança desafia a Igreja toda a se converter à participação das mulheres como discípulas em pé de igualdade no século XXI”.
Elizabeth Johnson é professora de Teologia nos programas de graduação e pós-graduação da Fordham University, universidade jesuíta de Nova York, onde leciona Teologia sistemática e Teologia feminista. Integrante da congregação religiosa Irmãs de São José de Brentwood, é ex-presidente da American Theological Society e da Catholic Theological Society. Faz parte do Conselho Editorial dos periódicos Theological Studies, Horizons: Journal of the College Theology Society e Theoforum. Elizabeth também é autora de Ask the Beasts: Darwin and the God of Love (Bloomsbury, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como compreender a figura de Maria Madalena e seu papel na história do cristianismo?
Foto: Wikipedia
Elizabeth Johnson - Tanto quanto podemos depreender das fontes históricas, Maria Madalena foi uma judia do século I cuja liderança dava suporte ao ministério de Jesus e ajudou a fundar a Igreja. Há relatos de que o contato dela com Jesus começou quando ele a curou de uma doença grave. Depois dessa cura, ela se juntou ao grupo de discípulos e discípulas que seguiam Jesus de cidade em cidade na Galileia, absorvendo seus ensinamentos e testemunhando seus atos de compaixão.
O dinheiro dela ajudou a financiar o ministério de Cristo. No fim da vida de Jesus, ela não fugiu, mas, junto com outras mulheres, ficou fielmente junto à cruz e acompanhou seu corpo até a sepultura. Na manhã da Páscoa, o Cristo ressurreto apareceu para ela, incumbindo-a de transmitir a boa nova de sua ressurreição ao resto dos discípulos – o que ela fez. Depois, Madalena esteve presente quando o Espírito Santo desceu em vento e fogo sobre toda a comunidade em Pentecostes, energizando a linguagem de seus membros e fundando a Igreja.
Para usar a terminologia bíblica, ela é tanto uma discípula (alguém que segue) quanto uma apóstola (alguém que é enviado). Com base em sua relação com Jesus, sua liderança em ambos os papéis deu uma contribuição destacada na origem do cristianismo.
IHU On-Line - O que está por trás das confusões em torno da figura de Madalena, associada muitas vezes pela tradição à prostituta regenerada e figura controversa na relação com Cristo e com os apóstolos? Por que se sabe tão pouco sobre sua vida antes de Cristo e depois da crucificação?
Elizabeth Johnson - A identidade de Maria Madalena como líder destacada se perdeu quando pregadores começaram a confundi-la com várias outras mulheres presentes no Novo Testamento. Isso aconteceu do modo mais significativo com a mulher que aparece no capítulo 7 do Evangelho de Lucas. Naquele relato, uma mulher banha os pés de Jesus com suas lágrimas, unge-os com o perfume de seu frasco de alabastro e os enxuga com seus cabelos. Quando os fariseus levantam uma objeção, observando que ela é uma pecadora notória, Jesus os admoesta e a perdoa “porque ela demonstrou muito amor” (Lc 7,47). Em lugar algum Lucas diz que essa mulher era uma prostituta, e em lugar algum ela é identificada como Maria de Magdala.
O relato que se segue imediatamente a este, em Lucas 8, fala de Maria Madalena, dizendo que ela tinha sido curada por Jesus e o seguia. Com o passar do tempo, pregadores começaram a mesclar esses dois relatos em um só, e Maria Madalena se tornou uma prostituta contrita. A imaginação da igreja foi selada com essa ideia quando, no século VI, o Papa Gregório Magno fez um sermão em que disse: “Aquela a quem Lucas chama de pecadora, a quem João chama de Maria, cremos que ela seja a Maria de quem Jesus expulsou sete demônios de acordo com Marcos. E o que significavam esses sete demônios, senão todos os vícios? [...] Está claro, irmãos, que a mulher anteriormente usava o unguento para perfumar sua carne em atos proibidos [...].”.
É muito provável que o Papa Gregório quisesse usar a história para assegurar às pessoas convertidas que seus pecados seriam perdoados. Mas o infeliz resultado foi que a memória de uma apóstola destacada foi misturada com a história de uma pecadora contrita e depois enterrada nela. Maria Madalena, a prostituta pesarosa, foi então contraposta à Virgem Maria. O papel efetivo dela foi esquecido.
"Maria Madalena, a prostituta pesarosa, foi então contraposta à Virgem Maria. O papel efetivo dela foi esquecido" |
IHU On-Line - Por que se sabe tão pouco sobre a vida de Madalena antes de Cristo e depois da crucificação? Tendo em perspectiva também os relatos históricos, em que medida é possível afirmar que os relatos canônicos suprimem a importância dessa figura?
Elizabeth Johnson - A situação de Maria Madalena tem de ser vista sobre o pano de fundo de um problema mais amplo. A pesquisa bíblica feita a partir da perspectiva das mulheres deixa absolutamente claro que a Bíblia foi escrita por homens, para homens, em uma sociedade patriarcal. Por conseguinte, os autores focaram sua atenção no que homens importantes disseram ou fizeram, desconsiderando outras pessoas de menor importância, tais como mulheres ou escravos do sexo masculino.
Um exemplo claro dessa tendência ocorre no relato neotestamentário do episódio em que Jesus alimenta uma multidão que tinha vindo para ouvi-lo pregar. Marcos termina seu relato dizendo: “E os que comeram dos pães eram cinco mil homens” (Mc 6,44). Em contraposição a isso, o relato de Mateus nos mostra um número maior: “Ora, os que comeram eram cerca de cinco mil, sem contar mulheres e crianças” (Mt 14,21). Para a mentalidade patriarcal, mulheres e crianças não tinham importância. Mas elas estavam lá e comeram.
Desenterrando as mulheres
Para corrigir as coisas, os e as biblistas usam uma forma de interpretar a Bíblia que visa libertar a história de mulheres enterrada no texto. Eles e elas usam várias estratégias. O simples fato de mulheres não serem mencionadas em um texto, por exemplo, não quer dizer que elas não estivessem presentes ou atuantes (cf. acima). Se mulheres são efetivamente mencionadas em um texto, é provável que elas sejam tão importantes que a história não poderia ser contada se elas fossem ignoradas; assim, qualquer mulher mencionada é a “ponta do iceberg”, havendo muito mais que poderia ser dito.
Essas e outras ferramentas interpretativas estão permitindo que Maria Madalena, essa “apóstola dos apóstolos”, finalmente tome seu lugar legítimo na História como discípula amada de Jesus e líder proeminente da igreja primitiva.
IHU On-Line - Em que medida é possível associar a história de Madalena, e o sentido que a tradição católica dá à sua história, ao espaço e papel da mulher na Igreja e no cristianismo?
Elizabeth Johnson - Existe uma conexão clara entre a maneira como contamos a história das origens da Igreja e a maneira como vemos os papéis apropriados das pessoas hoje em dia. A redução de uma das mais importantes líderes da igreja primitiva a uma prostituta cobrou um tributo, especialmente para as mulheres, ao reforçar a noção de que as mulheres não devem ser líderes, e sim gratas recebedoras do perdão dado por homens.
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"Os papéis das mulheres na Igreja atual são insignificantes" |
IHU On-Line - Em comparação com o cristianismo primitivo, como analisa o papel dado à mulher na Igreja hoje?
Elizabeth Johnson - Que as mulheres tenham sido líderes nos primórdios do movimento de Jesus é algo que está ficando mais claro e sendo mais comumente aceito entre pesquisadores e pesquisadoras. Uma série de passagens bíblicas descrevem mulheres que exercem diferentes ministérios. No capítulo 16 de sua Carta aos Romanos, Paulo de fato menciona diferentes mulheres que são apóstolas (Júnia), diáconas (Febe), líderes de igrejas que se reuniam em casas (Prisca) e colaboradoras em prol do evangelho (Maria, Pérside e outras).
Escritos não canônicos posteriores também retratam mulheres que desempenham esses papéis. Esses escritos também retratam conflitos em torno da liderança das mulheres entre alguns dos discípulos do sexo masculino. Estudos a respeito de inscrições tumulares antigas também confirmaram que esses títulos designavam mulheres nos primeiros séculos da igreja. Em comparação com isso, os papéis das mulheres na Igreja atual são insignificantes.
IHU On-Line - Como compreender a mística de Madalena, sendo ela uma figura tão presente no ato da crucificação e, depois, a primeira a ver o Cristo ressurreto? Que mensagem está por trás desse momento e por que é ela a primeira testemunha?
Elizabeth Johnson - Todos os quatro evangelhos mostram as mulheres fiéis se fazendo presentes por ocasião da crucificação e do sepultamento de Jesus, bem como junto ao sepulcro vazio no domingo de Páscoa. Elas são o ponto móvel de intersecção dentro de toda a narrativa da Paixão. Sem o testemunho delas, como ficaríamos sabendo o que aconteceu? Pois os discípulos tinham fugido e se escondido.
Sempre gosto de dizer que o Cristo ressurreto poderia ter escolhido qualquer pessoa que quisesse para confiar a ela a boa nova da ressurreição. O fato de que ele escolheu Maria Madalena atesta primeiro – poderíamos supor – o relacionamento estreito que ele e ela tinham e à percepção que ele tinha das capacidades dela. Também é coerente com toda a sua orientação de abençoar e incluir as pessoas marginalizadas em nome de Deus.
Examinemos a cena descrita no capítulo 20 de João. Maria Madalena está chorando do lado de fora do sepulcro, lamentando a perda do corpo de seu amado mestre. O jardineiro (pensa ela) pergunta qual é a razão da aflição dela... e então a chama pelo nome. Ela se vira e fica espantada ao reconhecê-lo. Jesus lhe dá a incumbência com palavras de envio apostólico: “Vai e dize”. A mensagem a ser transmitida é que o relacionamento íntimo que Jesus tem com seu Abba/Pai está agora abertamente disponível para seus discípulos e discípulas: “meu Deus e vosso Deus”. Maria vai e anuncia: “Vi o Senhor”. Chorar, virar-se, dizer – essa mulher está no próprio cerne do relato da ressurreição, de que depende toda a fé cristã. O Prefácio da liturgia do Domingo de Páscoa a cada ano pede a Maria Madalena que ela conte o que viu. Em cada missa pascal no mundo inteiro, ela continua a falar.
Se os papéis de gênero tivesse sido inversos; se os homens tivessem ficado junto à cruz enquanto as mulheres fugiam e se escondiam; se Cristo tivesse aparecido primeiro para um homem e o tivesse incumbido de contar aos outros; então a maneira como a igreja funciona atualmente poderia ser justificada. Entretanto, Maria Madalena e outras mulheres no Novo Testamento rompem essa justificação.
"Sua liderança desafia a Igreja toda a se converter à participação das mulheres como discípulas em pé de igualdade no século XXI" |
IHU On-Line - Como a senhora interpreta a ação do papa Francisco ao elevar a celebração litúrgica de Maria Madalena para condição de festa?
Elizabeth Johnson – Enquanto a maioria das celebrações litúrgicas de santas e santos tomados individualmente durante o ano são formalmente conhecidas como memoriais, aquelas classificadas como festas são reservadas para santos e santas de importância particular, tais como a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Doze Apóstolos. Ao elevar o status do dia de Maria Madalena para a condição de uma festa importante, o Papa Francisco está salientando a relevância dessa mulher, cujo papel como testemunha primordial da Ressurreição é insubstituível.
Colocá-la no mesmo nível de festa concedido aos outros apóstolos dá a ela um status apostólico igual ao dos apóstolos do sexo masculino. Significa honrar a posição dela como figura-chave em nossa história da salvação. Fica claro que há uma conexão profunda entre o papel de Maria Madalena e as conclamações contemporâneas para que as mulheres tenham papéis ampliados na Igreja Católica.
O reconhecimento
Acho que temos de ponderar a enormidade do que aconteceu com Maria Madalena, como a história dela foi subvertida, como ela foi injustamente despojada de seu papel de liderança e como isso teve um efeito duradouro sobre a imaginação da Igreja a respeito do que é certo que as mulheres façam. As implicações disso ainda nos acompanham atualmente. Corrigindo as coisas, podemos permitir que Maria Madalena surja como modelo de seguidora fiel, devotada do Senhor, e como liderança forte e independente na igreja primitiva. Sua liderança desafia a Igreja toda a se converter à participação das mulheres como discípulas em pé de igualdade no século XXI.
Por João Vitor Santos | Tradução Luis Sander
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As faces femininas num cristianismo sem véu. Entrevista especial com Elizabeth Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU