12 Outubro 2018
“Em geral, as mulheres estão mais interessadas nas surpresas da vida, nos seus apelos e nos seus imprevistos do que nos projetos de carreira. E, sem se colocarem à mostra, desde o início do Evangelho, seguem a Cristo gratuitamente, com afeto incondicional. Tudo isso lhes confere um papel insubstituível na conjuntura atual, em que, para a Igreja, trata-se de reencontrar uma inteligência realmente evangélica do poder como serviço.”
A opinião é da teóloga e biblista francesa Anne-Marie Pelletier, professora do Collège des Bernardins e vencedora do Prêmio Ratzinger 2014, em artigo publicado em L’Osservatore Romano, 01-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estamos assistindo a um enorme terremoto, que faz com que se prevejam réplicas daquilo que já aconteceu em um país como a Irlanda. Desta vez em grande escala, a credibilidade da Igreja corre o risco de entrar em colapso, tornando invisível, ao mesmo tempo, o sinal do Evangelho portado por inúmeros cristãos comprometidos em todo o mundo em obras fundamentais de compaixão, de mediação, de humanização. Mas o que está sendo posto em discussão aqui não é apenas uma questão de sexualidade desviada no clero católico. É a própria instituição que se revela nas suas falhas e nos seus desvios.
Nesse sentido, a franqueza da carta que o Papa Francisco dirigiu ao “povo de Deus” não abole a clareza da Palavra de Deus. O papa confirma, sim, a visão exposta recentemente na Gaudete et exsultate, ao recordar uma verdade fundamental, mas obstinadamente diminuída apesar da Lumen gentium: o chamado à santidade consubstancial ao batismo, portanto, universal, transversal a todas as vocações, para além das distinções hierárquicas que se multiplicaram ao longo da história. A expressão “povo de Deus”, muitas vezes olhada com suspeita após o seu retorno nos textos do Concílio, readquire agora todo o seu peso e a sua urgência.
E é justamente essa realidade teológica que o Papa Francisco crê que deve recordar hoje com urgência, porque é o exato antídoto ao veneno do clericalismo que está por trás dos abusos criminosos de poder.
Esse diagnóstico, que aponta para a fonte dos dramas atuais, para a responsabilidade de uma autoridade desviada em uma instituição eclesiástica prioritariamente masculina, leva a ver nas mulheres, no seio do “povo de Deus”, as primeiras interessadas no apelo do papa a reagir.
São elas, de fato, as primeiras a saber o que são os abusos de poder eclesial. Religiosas ou não, elas conhecem muito bem o olhar arrogante, condescendente, depreciativo dirigido a elas, a obediência imposta por homens que reservam ciosamente para si o prestígio do saber e a autoridade da decisão.
É uma experiência que elas fazem todos os dias. Uma experiência que confirma a memória coletiva de uma palavra que pretendeu controlar a sua consciência e o seu corpo, e que sempre preferiu falar no seu lugar, ao invés de ouvi-las.
É claro que, às margens, mulheres prontas para adotar atitudes clericais. Certamente existem, em algumas comunidades, personalidades femininas predatórias, capazes de arruinar vidas, assim como fazem os homens perversos. Mas, na maioria dos casos, as mulheres têm uma relação diferente com o poder.
Um certo senso feminino da liberdade as livra daquela obsessão pelo poder que atormenta tantos homens. Elas têm uma boa capacidade de considerar com divertido distanciamento o jogo masculino dos títulos, das honras, das cores dos chapéus na instituição eclesial.
Em geral, elas estão mais interessadas nas surpresas da vida, nos seus apelos e nos seus imprevistos do que nos projetos de carreira. E, sem se colocarem à mostra, desde o início do Evangelho, seguem a Cristo gratuitamente, com afeto incondicional.
Tudo isso lhes confere um papel insubstituível na conjuntura atual, em que, para a Igreja, trata-se de reencontrar uma inteligência realmente evangélica do poder como serviço. Porém, tudo isso contanto que uma tradicional desconfiança clerical conceda às mulheres aquela atenção e aquela consideração que até agora lhes foram negadas. E também contanto que a eclesiologia não seja mais apenas pensada, formulada e implementada por homens, que são quase sempre clérigos.
Pois, mesmo creditando a elas a reta vontade de conhecer a Igreja segundo Cristo, é impossível evitar o filtro de uma visão masculina adotada por homens celibatários, educados na ideia da preeminência do sacerdócio ministerial, que os legitima no temível poder de terem direitos particulares sobre os outros.
Daí a urgente necessidade de integrar hoje a inteligência que as mulheres têm da Igreja, a partir da sua experiência do apelo evangélico e da sua fidelidade a Cristo.
Em outras palavras, a eclesiologia agora deve ser formulada a duas vozes, conjugando o masculino e o feminino. É apenas assim que realmente será possível fazer mudanças, que a instituição eclesial poderá se desvincular da representação de um sacerdócio ministerial que continua sempre, em maior ou menor medida, se arrogando hierarquicamente a identidade sacerdotal de toda a Igreja. É assim que o sacerdócio batismal poderá encontrar a sua plena existência e o seu pleno exercício no seio da Igreja.
Correlativamente, o sacerdócio ministerial será restituído à sua verdadeira grandeza, a do serviço da vida e da santidade do povo dos batizados, vivido em uma fidelidade humilde e devota, a imagem de Cristo, que “veio para servir e não para ser servido”.
O terremoto que sacode a Igreja hoje, sem dúvida, deve desembocar o mais rápido possível em disposições disciplinares e jurídicas radicais. Mas, em longo prazo, é preciso fazer uma revisão de fundo da inteligência que a Igreja tem de si mesma e, portanto, do seu governo. A Igreja Católica terá a coragem de fazer essa revolução espiritual? Evidentemente, disso depende a sua credibilidade, ou seja, o seu rosto futuro no meio do mundo.
Nenhuma rendição, nenhuma infidelidade pode desencorajar a fidelidade de Cristo à sua Igreja. Mas a Igreja hoje deve ter a coragem de romper com os hábitos de poder que fazem com que esteja desaparecendo a terra debaixo dos nossos pés.
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Por uma eclesiologia a duas vozes. Artigo de Anne-Marie Pelletier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU